Artigo do Colunista Khalil Aqui, sobre importante tema relativo a presunção de inocência, no RE 123.5340. Vale a leitura! '' É absolutamente pacífica no Supremo Tribunal Federal a compatibilidade do art. 593, III, d, do Código de Processo Penal com o art. 5º, XXXVIII, c, da Constituição Federal[4]. Ainda que se reconheça que a maior parte deles verse sobre recursos da acusação, é cediço e compartilhado por todos os ministros o entendimento expresso na sucinta ementa do HC 115.977: “A soberania do Tribunal do Júri não é absoluta, cabendo observar o disposto no artigo 593, inciso III, do Código de Processo Penal”. Por Khalil Aquim Execução antecipada da pena. Nos últimos anos, o debate deixou de ser exclusivo dos que estudam e atuam diretamente com o processo penal, se inserindo até mesmo nos almoços de domingo e mesas de bar (antes, claro, da pandemia de covid-19), reflexo da judicialização da política, da midiatização do judiciário e da extrema polarização da sociedade, que reduz temas complexos a posições “petralhas” e “bolsominons”. Assim, o debate jurídico que se desenrolou sob argumentos técnicos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 até a mudança de posição pelo Supremo Tribunal Federal no HC 84.078 em 2009 (diante da alteração da legislação processual penal em 2008), e renasceu a partir da mudança de posicionamento no HC 126.292 em 2016, foi definido pelo plenário do STF nas ADCs 43, 44 e 54, mas tratado por grande parte da sociedade como mero “pedido de liberdade do ex-presidente Lula”. A despeito da equivocada politização do tema, o Supremo chegou a uma decisão em ação constitucional, após anos de variações de entendimentos, sedimentando enfim que o princípio de presunção de inocência não pode ser mitigado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, reconhecendo a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal. Entretanto, transcorridos menos de seis meses, o tema volta ao plenário (agora virtual) da corte, no julgamento do RE 1.235.340, onde se definirá a constitucionalidade da execução imediata da pena quando das condenações impostas pelo tribunal do júri. Para compreender a lógica da discussão, os pontos conflitantes com o recém-decidido e o que os diferencia, é válida a análise dos argumentos carreados pelo voto do relator, Min. Roberto Barroso. Suspenso por pedido de vista do Min. Ricardo Lewandowski, o julgamento do RE 1.235.340 iniciou com voto do relator, pela procedência, e dos ministros Dias Toffoli (acompanhando o relator) e Gilmar Mendes (divergindo). Os argumentos elencados no voto do relator, com todas as vênias pelo reducionismo que este espaço impõe, podem ser resumidos a oito[1]: 1) proteção à vida; 2) soberania dos veredictos; 3) as anulações do júri são estatisticamente irrelevantes; 4) os tribunais não podem substituir a decisão do júri; 5) “Viola sentimentos mínimos de justiça, bem como a própria credibilidade do Poder Judiciário, que o homicida condenado saia livre após o julgamento, lado a lado com a família da vítima”; 6) os tribunais podem conceder efeitos suspensivos aos recursos quando houver “indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos”; 7) “A exequibilidade das decisões tomadas pelo corpo de jurados não se fundamenta no montante da pena aplicada, mas na soberania dos seus veredictos. (…) Necessidade de interpretação conforme à Constituição, com redução de texto, para excluir do art. 492 do CPP, com a redação da Lei no 13.964/2019, o limite mínimo de 15 anos para a execução da condenação imposta pelo corpo de jurados”; e, no caso específico, 8) “prisão que se impõe como imperativo de ordem pública”. Iniciando pelo último, sobressai uma mistura de conceitos apresentada pelo relator. Ao final do item nº 8 de seu voto, ao abordar o caso concreto, menciona a necessidade de prisão como “imperativo de ordem pública”. Os atentos já puderam perceber a linha de raciocínio que se toma, mas não é demais ressaltar. “Ordem pública” é conceito intrínseco à prisão preventiva, de ordem cautelar. Não pretendo adentrar nas discussões sobre o conceito da tal “ordem pública” (para isso indico os trabalhos primorosos do amigo Paulo Silas), mas apenas apontar o ponto de partida: se há fundamento para prisão preventiva, prenda-se preventivamente. Tal fundamento foi igualmente utilizado pelo min. Barroso no julgamento das ADCs 43, 44 e 54, mormente quando do julgamento da medida cautelar, onde argumentou que “ainda que não houvesse fundamento direto na Carta de 1988, com o esgotamento das instâncias ordinárias, a execução da pena passa a constituir exigência de ordem pública (art. 312, CPP), necessária para assegurar a credibilidade do Poder Judiciário e do sistema penal”[2]. Não se pode confundir, porém, como consolidado após o julgamento de mérito das ADCs, execução da pena com prisão preventiva, mormente quando se quer utilizar fundamentação da segunda - individual e cautelar - para se determinar a execução imediata da pena - abstrata e definitiva. Na sequência, tomemos os argumentos acostados nos itens nº 1 e 5 do voto do relator: ser o direito à vida “expressão do valor intrínseco da pessoa humana” e de que “viola sentimentos mínimos de justiça, bem como a própria credibilidade do Poder Judiciário, que o homicida condenado saia livre após o julgamento, lado a lado com a família da vítima”. Assentar que a proteção à vida está insculpida no art. 5º da Constituição e por isso merece proteção elevada é informação insuficiente. No mesmo caput consta, como garantia de similar patamar de proteção constitucional, a liberdade, que ora se ataca. Assim, verifica-se que os argumentos são de ordem moral, e não jurídica. Dito de outro modo: um crime de latrocínio, de competência de juízo comum, ataca também a vida (ainda que seja um crime contra o patrimônio). Assim, com a garantia de presunção de inocência - agora sedimentada após o julgamento das ADCs 43, 44 e 54 -, condenados por latrocínio saem “livres após o julgamento”, possivelmente “lado a lado com a família da vítima”. E condenados a penas ainda superiores às cominadas pelos juízes presidentes dos tribunais do júri. Perceba-se, assim, a fragilidade do argumento. Impende ressaltar, por óbvio, que não se desconhece a dor das vítimas e nem se está aqui minimizando os efeitos disso. Os índices de homicídios no Brasil são estarrecedores, e a proporção dos que são de fato apurados e processados é muito aquém do que o necessário para uma segurança pública efetiva. Em podcast recente, dois brilhantes promotores do Ministério Público do Estado do Paraná, por quem guardo grande respeito e admiração, reforçaram o peso do argumento[3]. Reconheço o alarmante índice de criminalidade, respeito e me compadeço da dor das famílias. Mas não é este o ponto. Não é este o objeto. Assim, o que se está buscando demonstrar é a falácia do argumento em si. A suposta “credibilidade do judiciário” foi debatida no julgamento das ADCs 43, 44 e 54, e foi argumento refutado. Deste modo, se o argumento não é válido para crimes também gravíssimos como estupro e latrocínio, não pode vir a ser invocado nos crimes contra a vida, eis que o fundamento é absolutamente o mesmo. Ressalte-se, ainda, que o próprio Supremo tem entendimentos sumulados acerca da inidoneidade da motivação das decisões calcadas na percepção subjetiva da gravidade abstrata do delito. Destaca-se a Súmula 718: se “a opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”, como pode o mesmo Supremo admitir que a opinião sobre a gravidade em abstrato do crime de homicídio pode, por si só, ser fundamento para a execução antecipada da pena? Outro dos argumentos apontados nas ADCs 43, 44 e 54 e aqui novamente levantados pelo min. Barroso diz respeito à análise de dados estatísticos, indicados no item nº 3 de seu voto. De partida, o posicionamento aqui adotado é o de rejeição completa do argumento. A prisão indevida de uma única pessoa deveria ser motivo muito mais que suficiente para a manutenção da presunção de inocência - como assentado nas ADCs. Não obstante isso, em leitura detalhada da análise realizada pelo ministro, é possível verificar inferências que podem induzir a erro, de modo que os dados devem ser analisados de outra forma. Segundo dados apontados pelo relator, “no período compreendido entre janeiro de 2017 e outubro de 2019, foram proferidas 15.411 sentenças pelo Tribunal do Júri, no estado de São Paulo. De todas as sentenças, menos da metade foram alvo de recurso (7.477). Sendo que o Tribunal anulou 305 sentenças, a pedido da defesa, e 225 sentenças, a pedido da acusação. Isto é, de todas decisões proferidas pelo Júri, em apenas 1,97% dos casos houve a intervenção do Tribunal de segundo grau para, a pedido do réu, devolver a matéria para a análise do Júri”. Não se pretende aqui questionar estes dados. Tomando-os por verdadeiros, é necessário reforçar que, nas palavras do próprio ministro, menos da metade dos julgamentos pelo tribunal do júri foram alvo de recurso. Ou seja, para mais de cinquenta porcento dos casos o trânsito em julgado se opera dias após o julgamento, e a execução da pena poderá se dar de modo célere, independente da almejada execução imediata da pena. Sigamos além. Afirmar que apenas 1,97% dos casos são reformados para anular o julgamento em benefício do réu diz muito menos do que parece, e mais ilude do que esclarece. Lembremos, ab initio, a informação anterior, de que menos da metade dos processos são objeto de recurso. Assim, a estatística mais que dobra: 4,08% dos casos recorridos são reformados em favor da defesa para determinar novo julgamento. Como um dos pontos tratados no presente julgamento é justamente a análise da soberania dos veredictos, não se pode ignorar as anulações de julgamentos a pedido do Ministério Público, que correspondem a 3,01% dos processos em que houve recurso. Somadas as anulações a pedido da defesa e do parquet, podemos verificar que 7,09% das apelações oriundas do tribunal do júri no Estado de São Paulo são providas para determinar novo julgamento. Sem o fornecimento de dados discriminados pelo relator, porém, não há como verificar se todas as apelações buscavam efetivamente a anulação do julgamento. Ao realizar o cálculo apenas entre os recursos que o tenham almejado, portanto, o percentual de êxito deve ser ainda maior. Apesar de não haver no voto do relator os dados completos, impende reforçar mais um ponto. Ainda que a reforma de mérito se restrinja à alínea d do inciso III do art. 593, há ainda outras hipóteses, não abarcadas nos dados apontados. A alínea c, por exemplo, versa sobre dosimetria penal. Tomemos o exemplo de alguém que venha a ser condenado pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada (art. 121, §2º, I, c/c art. 14, II), e que venha a ser condenado à pena mínima. O quantum de redução pela tentativa (de um a dois terços) pode fazer com que o condenado inicie o cumprimento em regime fechado, semiaberto ou mesmo aberto. Partindo de um exemplo singelo, não quantificado na análise jurimétrica do ministro Barroso, é plenamente verificável que muitos mais do que os supostos 1,97% apontados pelo relator serão afetados por esta decisão. Tampouco devem prevalecer os argumentos apontados nos itens nº 2 e 4 do voto do relator, que se apoiam na soberania dos veredictos e na inviabilidade de tribunais substituírem as decisões dos jurados. Novamente (peco pelo excesso): a presunção de inocência foi sedimentada e consolidada quando do julgamento das ADCs 43, 44 e 54. Inadmissível, portanto, mitigá-la em um procedimento específico, ainda mais procedimento insculpido na Constituição da República no rol de direitos e garantias fundamentais, em que se assegura a plenitude de defesa. É absolutamente pacífica no Supremo Tribunal Federal a compatibilidade do art. 593, III, d, do Código de Processo Penal com o art. 5º, XXXVIII, c, da Constituição Federal[4]. Ainda que se reconheça que a maior parte deles verse sobre recursos da acusação, é cediço e compartilhado por todos os ministros o entendimento expresso na sucinta ementa do HC 115.977: “A soberania do Tribunal do Júri não é absoluta, cabendo observar o disposto no artigo 593, inciso III, do Código de Processo Penal”. Deste modo, ainda que nos apegássemos apenas e tão somente a uma das hipóteses de recurso em face das decisões condenatórias proferidas após julgamento pelo Tribunal do Júri, já é possível verificar que o próprio STF reconhece que decisão soberana não significa decisão imutável[5]. Ademais, como apontado acima, não se pode desconhecer das outras hipóteses de alteração da decisão condenatória. Além das hipóteses de análise do mérito pelos Tribunais, que pode culminar em novo julgamento, há hipóteses de discussão da dosimetria da pena (que, conforme já mencionado, pode ter enormes consequências para cada caso), de divergência entre decisão dos jurados e do juiz presidente (situações não comuns, mas tampouco raras como se imagina, especialmente no tocante à quesitação de qualificadoras) e, principalmente, de nulidades. O argumento seguinte levantado pelo ministro Barroso em seu voto, na esteira do art. 492, §3º, CPP, fundamenta sua visão pela possibilidade de execução imediata da pena também na possibilidade de o Tribunal suspender a execução provisória quando houver “indícios fortes de nulidade ou de manifesta contrariedade à prova dos autos”. O maior problema, nesse caso, é o fator temporal. Há aqui duas hipóteses: a de ocorrência de nulidade e a de manifesta contrariedade à prova. Inicialmente, reforça-se que é bastante improvável que qualquer delas seja reconhecida pelo juiz presidente da sessão do júri. Afinal, se o magistrado que preside a sessão verifica e reconhece alguma nulidade, a decisão mais coerente seria a dissolução do conselho de sentença, e não um reconhecimento tardio para corroborar com a tese de alguma das partes e anular o júri realizado. Da mesma forma a manifesta contrariedade (nos casos que beneficiem o réu). Se houver absoluta ausência de provas, ou absoluta comprovação de tese atestando eventual excludente de ilicitude, por exemplo, o magistrado deveria ter impronunciado o réu ou o absolvido sumariamente. Assim, o reconhecimento da manifesta contrariedade às provas dificilmente se dará pelo mesmo magistrado que o pronunciou (lembremos todo o arcabouço teórico que trabalha a necessidade de um processo penal acusatório, a teoria da dissonância cognitiva e tanto mais). O Tribunal ad quem, por sua vez, pode e deve analisar nulidades e mérito do recurso. A questão maior, no caso, é o decurso do tempo, os dias ou até mesmo as semanas que o réu passará preso até a análise da liminar na apelação. Lembrando que, segundo o art. 492, §6º, tal análise se dará após as contrarrazões do Ministério Público. Sem pensar em eventual negativa de liminar, ou nos casos em que o mérito versa exclusivamente sobre dosimetria e o réu permanecerá preso em regime mais gravoso. Nessa toada, o último ponto tratado pelo ministro Barroso é mais uma afronta devastadora: vai além das alterações advindas com a chamada Lei Anticrime no art. 492, I, e, do Código de Processo Penal, e reconhece a inconstitucionalidade do parâmetro de 15 anos ali definido, decidindo pela possibilidade de execução imediata da pena qualquer seja o quantum estipulado. Sobre isso há mais uma série de coisas a se dizer, muito a criticar e muitas reflexões a propor, mas meu espaço se esgota, meu tempo se esvai e a paciência de quem lê também. Sintetizando, então, o objetivo da coluna de hoje foi o de trazer à discussão, um a um, os argumentos suscitados pelo relator ao propor a execução imediata da pena nos crimes julgados pelo tribunal do júri. Em outros termos: se o plenário do Supremo decidiu há poucos meses pela constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, a mitigação da presunção de inocência somente poderia se dar se houvesse circunstâncias distintas das definidas nas ADCs 43, 44 e 54, o que, ao menos a partir dos argumentos elencados pelo min. Barroso, não é possível afirmar. Khalil Vieira Proença Aquim Advogado Criminalista Professor de Direito Penal da Faculdade Inspirar; Mestrando em Teoria e História da Jurisdição na Uninter; Membro do Conselho Estadual da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas - Apacrimi; Ex-presidente da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR (gestão 2016/2018). NOTAS: [1]Disponívelem: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/4/6DAC9D4C675685_barroso.pdf. Acessado em 18/05/2020. [2] ADC 43 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 05/10/2016. Parágrafo 60 do voto do min. Barroso. [3] Podcast “Julgados e Comentados”, episódio 15: “Prisão imediata após condenação no Tribunal do Júri”. Publicado em 14/05/2020. [4] A título meramente exemplificativo, aponta-se um julgado de relatoria de cada um dos onze ministros que atualmente compõe o STF: min. Dias Toffoli: HC 112.268/SP; min. Luiz Fux: HC 111.867/ES; min. Celso de Mello: AgReg no RHC 132.632/PR; min. Marco Aurélio: HC 115.977/DF; min. Gilmar Mendes: HC 112.472/MG; min. Ricardo Lewandowski: RHC 118.273/ES; min. Cármen Lúcia: HC 134.412/RO; min. Rosa Weber: RHC 124.554/PE; min. Roberto Barroso: HC 173582/PR; min. Edson Fachin: RE 1172033/AM; min. Alexandre de Moraes: AgReg no RE com Ag 1.093.983/SP. [5] Em que pese o recente reconhecimento de repercussão geral no ARE 1.225.185, em que se discute se a soberania dos veredictos é violada ao se modificar uma absolvição assentada em resposta ao quesito genérico obrigatório, discussão que reforça o debate sobre a extensão da soberania dos veredictos.
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