Em um dos últimos episódios da décima nona temporada de um seriado bastante conhecido, Law and Order: Special Victims Unit, somos apresentados para um suposto estupro, envolvendo dois adolescentes em uma escola de necessidades especiais. Tanto o “agressor” quanto a “vítima” possuíam condições que tornavam o caso mais complexo que o normal.
A menina, em específico, havia sido diagnosticada ainda criança com distrofia muscular, fazendo com que apenas se locomovesse através de uma cadeira de rodas, além de ter desenvolvido epilepsia e leucemia, posteriormente. Sua mãe, bastante dedicada, passa dia após dia cuidando da filha, justamente por ela precisar de uma atenção diferenciada. Mesmo assim, ambas têm consciência da luta que enfrentam e são grandes aliadas nessa jornada. Entretanto, uma das detetives passa a desconfiar dos comportamentos da mãe e, investigando, chega em uma surpreendente verdade: a filha não tem doença nenhuma e sequer faz ideia disso. Por sua vez, a progenitora a mantém em uma rotina de consultas e remédios, sempre relatando sintomas que não existem e trocando de médicos até achar aqueles que “comprem” sua fantasia. Esse é um caso tão peculiar que é possível nos perguntar como que os responsáveis pensaram em algo deste tipo. Mas a ideia não está tão longe da realidade assim. Em junho de 2015, algo semelhante aconteceu no estado de Missouri, nos Estados Unidos, mas de uma forma muito mais trágica. Gypsy Rose Blanchard, durante toda a sua vida, foi levada a acreditar que tinha leucemia, distrofia muscular, convulsões e deficiência auditiva e visual, se tornando impossível levar uma vida comum para uma criança, que gostaria de sair e brincar com seus amigos. Isso ainda era reforçado pelo fato de estar atrelada a uma cadeira de rodas e precisar se alimentar através de tubos, além de que já havia sofrido várias cirurgias para minimizar os danos de sua suposta condição de saúde (PEREIRA, 2018). Gypsy e a mãe, Dee Dee, também eram grandes companheiras e cativavam a simpatia de todos que as conheciam. Ganharam, de uma ONG, a construção da casa em que moravam, já adaptada para o cotidiano que levavam. Viajaram também para o Disney World e conheceram uma cantora famosa, através de uma fundação que procura realizar sonhos de crianças que tem alguma doença grave e/ou terminal (DEAN, 2016). Mesmo com as dificuldades, o carinho e o apoio de todos que conviviam com elas faziam com que fossem, de certa forma, felizes. Com a adolescência, como seria de se esperar, Gypsy começou a não aceitar tão facilmente quanto antes o que sua mãe falava. Chegou a fugir de casa, mas foi logo encontrada por Dee Dee. Certa vez, em um site de relacionamentos, conheceu um homem com quem começou a conversar, contando suas percepções e sentimentos, visto que ela sabia que conseguia andar e se alimentar sozinha, mas, ainda assim, acreditava ser muito doente. Com o desenvolvimento dessa relação, que deveria ser mantida em segredo da mãe, os dois começaram a fantasiar a morte de Dee Dee. Até que, um dia, a fantasia passou para a realidade (DEAN, 2016). Com um post no Facebook, em que apenas estava descrito “The bitch is dead” (“A vaca está morta”), as atenções voltaram-se à casa das duas. A mãe foi encontrada sem vida alguns dias depois, quando iniciaram as buscas pela filha. Gypsy, então, estava na casa do namorado, sem seus remédios ou sua cadeira de rodas. Com o desenrolar das investigações, os dois foram condenados, mas sem precisar cumprir prisão perpétua ou pena de morte. Quando foi questionada em relação à sua sentença, Gypsy (que nunca sequer soube sua real idade, mas já havia atingido a maioridade), simplesmente alega que sentia-se mais livre na prisão do que quando morava com a mãe (DEAN, 2016). Tanto na série televisiva quanto no caso verídico, uma síndrome foi mencionada: de Munchausen. Essa condição, considerada como uma doença psiquiátrica, é descrita, brevemente, como uma produção intencional de sintomas (MOURA et. al., 2000). Uma das formas de manifestação é nomeada de Síndrome de Munchausen por Procuração, em que os sintomas são determinados a um terceiro. Normalmente, a mãe é a perpetradora, simulando preocupação e cuidado à criança; as consequências vistas são de natureza tanto psicológica quanto física e podem, em casos mais severos, provocar a morte da “vítima” (TRAJBER et. al., 1996). Comumente, essa atribuição de doenças ao filho (a), mesmo intencional, nem sempre é consciente e de fácil prevenção, pois pode acontecer de forma compulsiva, sendo desenvolvida uma história crível e complexa, que faz com que a atenção seja chamada para si. E são justos esses ganhos secundários (como a casa e a viagem para a Disney) que acabam por serem responsáveis também na manutenção da síndrome, que acomete um, mas que não existe sem o outro. Por isso, acabe sendo de tão difícil percepção e diagnóstico. No caso relatado, assim como pode ser visto também no episódio de Law and Order, houveram tantas mudanças de moradia e de médicos, que nunca houve um prontuário completo da criança. A maioria das informações eram advindas da mãe e, através dos sintomas relatados, passados tratamentos para condições que não existiam e que não eram comprovados em exames, mas resultados da insistência e desespero da progenitora. A comprovação de que Dee Dee sofria desta condição nunca poderá ser realizada, mas, conforme as investigações foram sendo finalizadas, a síndrome de Munchausen por Procuração estava presente no cotidiano das duas. Depoimentos de diversos médicos e equipes de saúde que trataram Gypsy, assim como de seu pai, madrasta e dos vizinhos, levam a crer que a menina, de fato, acreditava (durante a maior parte de sua vida) ser doente e precisar de cuidados que somente sua mãe podia prover, pois era ela quem sabia exatamente o que ela necessitava. Atualmente, não vemos mais tantas notícias sobre ela. Possivelmente, a jornada de descobertas sobre si mesma será longa ainda, mas uma coisa é certa: mesmo encarcerada, há uma liberdade nela que nunca antes havia sido permitida de sentir. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS DEAN, Michelle. "Ela teria sido uma mãe perfeita para alguém que estivesse realmente doente". 2016. Disponível em: <https://www.buzzfeed.com/michelledean/dee-dee-e-gypsy?utm_term=.ebqyX7jv7#.kx7edJ2WJ>. Acesso em: 25 fev. 2018. MOURA, Egas; OLIVEIRA, Maria J.; GUEDES, Margarida; MACHADO, Anthonio. Síndrome de Munchausen por procuração. In. Saúde Infantil. nº22. Setembro. 2000. Hospital Pediátrico de Coimbra. Disponível em: <http://saudeinfantil.asic.pt/images/download-arquivo/2000%20-%202%20-%20Setembro%20-%2022/rsi-2000-setembro.pdf#page=71>. Acesso em 25 fev. 2018. PEREIRA, Natália. Dee Dee e Gypsy mostram a relação mais perturbadora entre mãe e filha. 2018. Disponível em: <https://www.fatosdesconhecidos.com.br/dee-dee-e-gypsy-mostram-relacao-mais-perturbadora-entre-mae-e-filha/>. Acesso em: 25 fev. 2018. TRAJBER, Zelic.; MURAHOVSCH, Jayme; CANDIO, Sergio; CURY, Roberto; GOMIDE, Cláudia; KLEIN, Eduardo; TOFOLO, Valdemir. Síndrome de Munchausen por procuração: o caso da menina que sangrava pelo ouvido. Jornal de Pediatria. Vol.72, nº1. 1996. Disponível em: <http://www.jped.com.br/conteudo/96-72-01-35/port.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2018. Comments are closed.
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