Artigo do colunista Iuri Machado no sala de aula criminal, acerca da retroatividade da lei nº 9.099/95 e a omissão normativa a aplicação de institutos despenalizadores, vale a leitura! "A omissão normativa acerca da aplicação dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 à Justiça Militar jamais poderiam ser interpretados de modo a ampliar o poder punitivo, razão pela qual os Tribunais Superiores firmaram o entendimento de que o art. 90-A não seria aplicado conforme o art. 2º do Código de Processo Penal, mas sim conforme o princípio da irretroatividade da lei penal prejudicial, na medida em que impossibilitou aplicação de institutos despenalizadores, refletindo, assim, no direito à liberdade''. Por Iuri Machado 1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL RHC 74606, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 08/04/1997, DJ 23-05-1997 PP-21755 EMENT VOL-01870-01 PP-00058. Ementa do julgado: EMENTA: RECURSO EM HABEAS-CORPUS. CRIME DE LESÃO CORPORAL CULPOSA PRATICADO POR SOLDADO DA AERONÁUTICA: NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO. 1. Os arts. 88 e 91 da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099, de 26.09.95), que exigem representação do ofendido para a instauração de processo-crime, aplicam-se a todos e quaisquer processos, sejam os que digam respeito às leis codificadas - Código Penal e Código Penal Militar - ou às extravagantes, de qualquer natureza. 2. Recurso em habeas-corpus conhecido e provido para anular o processo-crime a que foi submetido o paciente-recorrente, ressalvando-se, contudo, que poderá o mesmo ser renovado com o aproveitamento dos atos processuais indicados na lei, caso a vítima, devidamente intimada na forma prevista na parte final do art. 91 da Lei nº 9.099/95, ofereça representação no prazo de trinta dias. 2 O CASO Cuida-se de recurso ordinário em habeas corpus, interposto contra decisão do Superior Tribunal Militar, que negou ordem de habeas corpus lá impetrada, em que se almejava a nulidade de processo criminal no qual o paciente havia sido denunciado pela prática do crime de lesão corporal culposa, prevista no art. 210 do Código Penal Militar, e que não teve aplicado os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, em especial a representação no prazo legal de 30 dias. O Procurador-Geral da República se manifestou pelo provimento do recurso, cuja transcrição parcial, apesar de longa, se faz necessária vez que utilizado como relatório e fundamento do recurso ordinário: 5. Primeiramente, impõe-se reconhecer que a Lei nº 9.099/95 entrou em vigor em 26.11.95, alcançando, portanto, o processo penal instaurado contra o paciente. Registre-se ainda que quando da entrada em vigor da referida lei, não se havia falar ainda em trânsito em julgado de decreto sentencial. Daí porque é inegável que os dispositivos da Lei nº 9.099/95, na medida em que representem normas penais mais benéficas ao réu, deveriam ser aplicados ao processo penal, pelo princípio da aplicação imediata da lei penal benéfica. 6. E a representação de que trata o artigo 88 da Lei nº 9.099/95 constitui, à toda evidência, instrumento destinado a viabilizar processos de despenalização de condutas, já que subordina o exercício da ação penal pública por crime de lesão corporal, que antes era incondicionada, à delação postulatória do ofendido, tudo com a finalidade, no dizer do Eminente Ministro CELSO DE MELLO, de “forjar um novo modelo de Justiça Criminal, que privilegie a ampliação do espaço de consenso, valorizando, desse modo, na definição das controvérsias oriundas do ilícito criminal, a adoção de soluções fundadas na própria vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal” (Inq. 1055-3-AM, QO, DJU 24.05.96). 7. Aqui cabe colacionar NELSON HUNGRIA para dizer que “se a lei nova, diversamente da lei anterior, subordina a ação pública à representação, cria, certamente, uma situação de favor para o réu e, assim, mesmo em relação aos fatos pretéritos, se já está em curso a ação do Ministério Público, não prosseguirá, salvo no caso de exigência de representação, se o respectivo titular a apresentar no prazo legal, sob pena de decadência (in “Comentários ao Código Penal”, v. 1). […] 11. Por último, não é desnecessário lembrar que esse Colendo Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre a questão da aplicabilidade imediata dos dispositivos da Lei nº 9.099/95 nos processos em curso, mesmo em fase recursal, apenas respeitada a coisa julgada material, que tramitarem perante quaisquer órgãos judiciários e tribunais. Vale a pena conferir excertos do voto do Eminente Ministro-Relator CELSO DE MELLO, proferido na Questão de Ordem suscitada nos autos do Inquérito nº 1055-Am, em 24.04.96 cujos termos pede-se vênia para transcrever: […] 12. Postas todas essas questões, é forçoso reconhecer que assiste razão ao recorrente, na medida em que não foi observada a exigência contida nos artigos 88 e 91, ambos da Lei nº 9.099/95. 13. Ante todo o exposto, o parecer é no sentido do provimento do recurso para suspender o processo-crime a que responde o recorrente, por inobservância da Lei nº 9.099/95 procedendo-se a intimação da vítima, sob pena de decadência, nos termos da 2ª parte do artigo 91 daquele diploma normativo. A Turma deu provimento ao recurso por unanimidade. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO O Relator, Ministro Maurício Corrêa, constatou os marcos temporais do processo: a) fatos ocorrido em 05/06/96; b) denúncia recebida em 10/07/96; c) vigência da Lei nº 9.099/95 em 26/09/95. Assim, percebeu que os fatos em apuração teriam ocorrido após a vigência da nova lei. Com base nos artigos 88 e 91 da Lei nº 9.099/95, afirmou que o instituto da representação deveria ser aplicado a qualquer processo, não importando a origem do diploma legal (Código Penal, Código Penal Militar, Legislação Extravagante), pois a pretensão punitiva do Estado não poderia ser regida por norma processual desfavorável ao acusado (tais quais normas que não exigem a representação), ante a localização do dispositivo legal. Consignou, ainda, que seria incontestável que a espécie e quantidade de pena deveria guiar aplicação da sanção pelo Estado e não as dificuldades de natureza processual, “pois, caso contrário, restaria desvirtuada a própria finalidade do direito instrumental, que passaria a ter o condão de obstaculizar as possibilidades de despenalização”. Assim, com base no parecer do Ministério Público Federal, acolheu o recurso do acusado e anulou o processo, a fim de que a vítima fosse intimada a representar. 4 PROBLEMATIZAÇÃO As disposições legais da Lei dos Juizados Especiais Criminais não continham nenhuma ressalva com relação a aplicação de seus institutos despenalizadores, sendo que somente com Lei nº 9.839, de 27 de setembro de 1999, foi inserido o Art. 90-A, que vetou expressamente a aplicação da legislação no âmbito da Justiça Militar. Apesar da omissão normativa, muitos Tribunais se negavam a aplicar os institutos sob fundamento de que comprometeriam a hierarquia e disciplina dos militares, ainda, porque a legislação militar seria especial, prevendo tão somente a ação penal pública incondicionada. Assim, a questão que se fez quando da entrada em vigor da Lei nº 9.099/95 era: a omissão normativa poderia ser interpretada em prejuízo dos acusados? Tal questão é de importância singular, vez que, atualmente, temos discussão similar: a Lei Anticrime nada dispôs acerca da retroatividade de dois institutos de natureza mista, representação e acordo de não persecução penal, levando muitos doutrinadores a afirmarem que a ausência de disposição legal acerca da retroatividade deveria ser interpretada no sentido de que a mesma não seria cabível (para alguns, ocorrendo variação de entendimento acerca do marco temporal, em especial o oferecimento da denúncia), pois, caso fosse intenção do legislador, o teria feito de forma expressa, da mesma forma que fez com a fixação de prazo de 30 dias para representação, no art. 91 da Lei nº 9.099/95, no que se convencionou chamar de condição de prosseguibilidade. Tal entendimento, data venia, não condiz com a interpretação de um direito fundamental (art. 5º, inc. XL, da CF/88). Importante ressaltar que para o Ministro Maurício Correa, a representação teria natureza “meramente processual”, nada obstante, seus efeitos nitidamente materiais, que deveriam prevalecer, sob pena de desvirtuar a finalidade do direito instrumental. Não por outro motivo, acolheu inteiramente (como relatório e fundamentação) o parecer do Procurador-Geral da República, que ressaltou que os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 teriam aplicação imediata, sendo aplicado, inclusive “nos processos em curso, mesmo em fase recursal, apenas respeitada a coisa julgada material, que tramitarem perante quaisquer órgãos judiciários e tribunais”. E a lógica da argumentação parece ser razoavelmente simples, i.e., se uma lei é de natureza processual mista de natureza benigna, porquanto suscetível de acarretar na extinção da punibilidade, deve ser aplicada mesmo a fatos ocorridos antes de sua vigência. A omissão normativa acerca da aplicação dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 à Justiça Militar jamais poderiam ser interpretados de modo a ampliar o poder punitivo, razão pela qual os Tribunais Superiores firmaram o entendimento de que o art. 90-A não seria aplicado conforme o art. 2º do Código de Processo Penal, mas sim conforme o princípio da irretroatividade da lei penal prejudicial, na medida em que impossibilitou aplicação de institutos despenalizadores, refletindo, assim, no direito à liberdade. No que concerne à Lei Anticrime e sua retroatividade, tem-se que não se pode realizar interpretação do art. 5, XL, da CF/88, a partir da omissão normativa, afinal, estamos diante de uma normal constitucional de eficácia plena. Se existe norma que limita o poder punitivo e que não foi objeto de limitação por parte do legislador, sua interpretação deve ser realizada de forma a ampliar o jus libertatis. Consoante lição de POLASTRI LIMA, acerca da necessária representação aos processos em curso quando da vigência da Lei nº 9.099/95, “outra interpretação deste dispositivo legal incidiria em flagrante inconstitucionalidade por afrontar o princípio da retroatividade da lex mitior”. (2009, p. 77). Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-PR. REFERÊNCIAS POLASTRI LIMA, Marcellus. Curso de Processo Penal, vol. I, 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |