Artigo do colunista Iuri Machado no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Uma coisa é a independência, outra é o interesse em determinados momentos processuais. Dúvida, de igual modo, não temos todos, todos nós, de que o órgão ministerial possa, digamos, pedir desclassificação, ou pedir ao juiz que absolva o réu. O que não me parece saudável nem elegante – hem, Ministro Carvalhido? – é o representante voltar sobre os seus próprios passos, ou outrem, em nome ministerial, desdizer o que já se havia dito em benefício do réu. Em tal momento, o que está faltando é interesse para assim se agir''. Por Iuri Machado Há alguns anos, algo um tanto inusitado ocorreu em julgamento do Plenário do Tribunal do Júri de Curitiba: em sua sustentação, o Ministério Público requereu a absolvição de acusado denunciado pela prática do crime de homicídio simples na sua forma tentada. Nada obstante os pleitos do Ministério Público e da Defesa, o acusado foi condenado pelo Conselho de Sentença.
Fixada a pena no mínimo legal, qual seja 4 anos, o Juiz Presidente determinou a conclusão dos autos após o trânsito em julgado para análise da prescrição da pretensão punitiva (que incidiria no caso concreto). Sendo certa a prescrição, o mesmo presentante do Ministério Público que requereu aos jurados a absolvição do acusado acabou por interpor recurso de apelação criminal, desta feita, pleiteando pelo aumento da pena fixada. Recurso que, se fosse provido, poderia impedir o reconhecimento da prescrição. Ante tal situação processual, o Juiz Presidente entendeu por não conhecer do recurso interposto por ausência de interesse processual: Desta forma, se ainda não guarda unanimidade as consequências do pedido de absolvição feito pelo acusador em face do Estado-juiz (especialmente diante do que dispõe o art. 385 do CPP), dúvida não pode existir quanto à impossibilidade do mesmo membro do parquet buscar em grau recursal o recrudescimento da punição do réu quando anteriormente houver pedido a sua absolvição. Seria o mesmo que o ressuscitar da própria pretensão desistida! Assim, considerando que o recurso manejado pelo parquet nestes autos carece de um interesse direto na reforma ou modificação da sentença, uma vez que o órgão ministerial pretende levar ao Tribunal o reexame de matéria divorciada de sua pretensão inicial, não conheço do recurso de apelação interposto à fl. 774. (2015) A tal fenômeno, denominou-se “bipolaridade interpretativa”,pois o mesmo presentante do Ministério Público não poderia agir contra seu próprio pedido. Sobre o tema, o Ministro Nilson Naves proferiu voto que, sucinto, merece leitura : Uma coisa é a independência, outra é o interesse em determinados momentos processuais. Dúvida, de igual modo, não temos todos, todos nós, de que o órgão ministerial possa, digamos, pedir desclassificação, ou pedir ao juiz que absolva o réu. O que não me parece saudável nem elegante – hem, Ministro Carvalhido? – é o representante voltar sobre os seus próprios passos, ou outrem, em nome ministerial, desdizer o que já se havia dito em benefício do réu. Em tal momento, o que está faltando é interesse para assim se agir. Não é, data venia, caso de se invocar a independência a fim de se dar legitimidade a tais procedimentos. Feita uma coisa, feita está; desfazê-la significa ou ter dois pesos e duas medidas, ou lhe conferir sabor lotérico, porque um representante pode não recorrer, outro pode. (HC 39.780/RJ, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, Rel. p/ Acórdão Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 09/06/2009, DJe 10/08/2009) Muito embora o julgado acima esteja conforme um sistema acusatório e respeite o devido processo legal substancial, doutrina e jurisprudência, majoritariamente, afirmam que um membro do Ministério Público não fica vinculado às manifestações realizadas por outros membros da instituição no decorrer da persecução penal, em virtude do princípio da independência funcional. Mas, ressalte-se, não fica vinculado às manifestações de outros colegas de parquet. Quando o mesmo presentante do Ministério Público age num sentido, não pode, após, pleitear em sentido diverso. Tal constatação é necessária, porquanto o exercício da advocacia constantemente pode apresentar situações inusitadas. Imagine um caso hipotético em que o Ministério Público tenha oferecido a denúncia pela pela prática de crimes de furtos qualificados e, de forma abusiva, tenha imputado o concurso material (art. 69 do CP) em vez de continuidade delitiva (art. 71 do CP), o que pode acarretar em inúmeras consequências processuais. Ao final da instrução, tenha opinado pela procedência da pretensão punitiva, porém requerido o reconhecimento da continuidade delitiva de todos os crimes imputados. Por sua vez, a defesa, ante o pedido do Ministério Público, percebe que a continuidade delitiva possibilitaria a oferta do acordo de não persecução penal, vez que, conforme determina a legislação[1], minorantes e majorantes devem ser consideradas para análise da pena mínima e consequente oferta do acordo, requerendo, assim, a aplicação do instituto (que, ressalte-se, deveria ter sido ofertado quando do ajuizamento da ação penal). Nada obstante a opinião pelo crime continuado em suas alegações finais, o mesmo presentante do Ministério Público, após o requerimento defensivo, se manifesta no sentido de que: o acusado praticava os atos de forma reiterada, elemento que indica a conduta criminal habitual, reiterada ou profissional por parte do acusado e de acordo com a denúncia este praticou o crime de furto qualificado por 5 vezes, comprovando tratar-se de uma conduta habitual. Poderia o presentante do parquet negar o pedido de oferta de acordo com tal fundamento, i.e., poderia agir contra sua opinião em alegações finais? Qual seria a saída para defesa? Duas constatações são necessárias: uma de aspecto material e outra processual. Quanto a material, deve-se ressaltar que a habitualidade delitiva não se confunde com a continuidade delitiva. Esta, como se sabe é uma ficção jurídica, na medida em que “o direito penal brasileiro encampou a teoria da ficção jurídica para justificar a natureza do crime continuado (art. 71 do CP). Por força de uma ficção criada por lei, justificada em virtude de razões de política criminal, a norma legal permite a atenuação da pena criminal” (STF, HC 91.370, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, j. 20.05.2008). Seus requisitos objetivos são: a) crimes da mesma espécie; b) pluralidade de condutas delituosas; c) interligação de condutas por circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução e outras semelhantes. Somados aos requisitos objetivos, a jurisprudência, com suporte doutrinário, tem defendido a existência de liame subjetivo, bem como ausência de habitualidade delitiva: “É assente na doutrina e na jurisprudência que não basta que haja similitude entre as condições objetivas (tempo, lugar, modo de execução e outras similares). É necessário que entre essas condições haja uma ligação, um liame, de tal modo a evidenciar-se, de plano, terem sido os crimes subsequentes continuação do primeiro. O entendimento desta Corte é no sentido de que a reiteração criminosa indicadora de delinquência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado.” (STF, RHC 93.144, Rel. Min. Menezes Direito, 1ª Turma, j. 18.03.2008). A habitualidade delitiva não tem definição pelo Código Penal (muito embora o tenha no Código Penal Militar[2]), porém a jurisprudência tem entendido que ocorre quando “apesar de não configurar reincidência, a existência de outras ações penais, inquéritos policiais em curso ou procedimentos administrativos fiscais é suficiente para caracterizar a habitualidade delitiva e, consequentemente, afastar a incidência do princípio da insignificância.” (STJ, AgRg no HC 578.039, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, j. 01.09.2020). O instituto da continuidade delitiva, assim, não se confunde com a reiteração criminosa, conforme, ainda, dizeres da Ministra Ellen Gracie: “Para a caracterização do crime continuado faz-se necessária a presença tanto dos elementos objetivos quanto subjetivos. 2. Constatada a reiteração habitual, em que as condutas criminosas são autônomas e isoladas, deve ser aplicada a regra do concurso material de crimes” (STF HC 101049/RS - Rio Grande do Sul. Julgamento: 04/05/2010 Órgão Julgador: Segunda Turma. Public 21-05-2010). Constatada a continuidade delitiva devem ser aplicadas, por analogia, as súmulas 723 do STF e 243 do STJ, para fins de análise da pena mínima e consequente oferta ou não do acordo, conforme lição de Leonardo Schimitt de BEM: Por fim, quanto às infrações cometidas em concurso material, formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência do aumento mínimo ou da maior redutora, não igualar ou superar os quatro anos, também poderá incidir o acordo. Nestes contextos, aplica-se por analogia a Súmula 723 do Supremo Tribunal Federal e a Súmula 243 do Superior Tribunal de Justiça. (2020, p. 228). A continuidade delitiva deveria ter sido apontada por ocasião da denúncia, mas se, de forma abusiva, não o foi, “essa avaliação, ainda que decorra da instrução, é a ele precedente” (BEM, 2020, p. 227), razão pela qual, a pena mínima não poderia ser óbice ao acordo. Quanto ao aspecto processual, cabe destacar o objeto do processo penal, conforme lição de Gustavo BADARÓ: “o objeto do processo penal não é a imputação, mas sim aquilo que foi imputado, ou seja, o objeto dessa imputação” (apud LIMA, 2020, p. 379). Assim, o julgador não fica vinculado ao pedido do Ministério Público em suas alegações finais, mas sim ao objeto de imputação da denúncia (conforme art. 385 do CPP). Ocorre que o acordo é prerrogativa institucional do Ministério Público e não um direito subjetivo do acusado. Com a recusa na oferta, a saída legal seria a remessa dos autos ao órgão superior (art. 28-A, §14 do CPP), porém seria esta a melhor saída? Pergunta que se faz necessária devido às inúmeras variantes que o jogo processual pode trazer. O órgão superior poderia reconhecer o abuso da denúncia em não apontar a continuidade delitiva e determinar que outro membro do parquet oferecesse o acordo, assim reconhecendo a bipolaridade interpretativa, ou poderia reforçar a tese abusiva do concurso material, negando a oferta do acordo, o que poderia acarretar consequências no julgamento do mérito pelo magistrado. Conforme leciona Alexandre Morais da ROSA, atuar no processo penal demanda preparação para o imponderável e para surpresa: “A tática ou estratégia depende do lugar do jogo em que você está. Há uma dinamicidade incapaz de ser pressuposta em sua totalidade (sempre a informação será incompleta).” (2018). Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-PR. Ig: @iuri_vrmachado REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEM, Leonardo Schmitt de. Os requisitos do acordo de não persecução penal. Acordo de não persecução penal. Leonardo Schmitt de Bem, João Paulo Martinelli (organizadores). 2. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. ROSA, Alexandre Morais da. Como usar a Teoria dos Jogos no processo penal? Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-13/limite-penal-usar-teoria-jogos-processo-penal>. Acesso em 07.02.2020. Bipolaridade interpretativa: MP pede absolvição em julgamento e recorre para majorar a pena. Recurso não conhecido em decisão proferida pelo Juiz de Direito Daniel R. Surdi de Avelar. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/bipolaridade-interpretativa-mp-pede-absolvicao-em-julgamento-e-recorre-para-majorar-a-pena-recurso-nao-conhecido-em-decisao-proferida-pelo-juiz-de-direito-daniel-r-surdi-de-avelar>. Acesso em 06.02.2021. NOTAS: [1] Art. 28-A, §1º: “para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto” [2] Criminoso habitual ou por tendência Art. 78. Em se tratando de criminoso habitual ou por tendência, a pena a ser imposta será por tempo indeterminado. O juiz fixará a pena correspondente à nova infração penal, que constituirá a duração mínima da pena privativa da liberdade, não podendo ser, em caso algum, inferior a três anos. Limite da pena indeterminada § 1º A duração da pena indeterminada não poderá exceder a dez anos, após o cumprimento da pena imposta. Habitualidade presumida § 2º Considera-se criminoso habitual aquêle que: a) reincide pela segunda vez na prática de crime doloso da mesma natureza, punível com pena privativa de liberdade em período de tempo não superior a cinco anos, descontado o que se refere a cumprimento de pena; Habitualidade reconhecível pelo juiz b) embora sem condenação anterior, comete sucessivamente, em período de tempo não superior a cinco anos, quatro ou mais crimes dolosos da mesma natureza, puníveis com pena privativa de liberdade, e demonstra, pelas suas condições de vida e pelas circunstâncias dos fatos apreciados em conjunto, acentuada inclinação para tais crimes.
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