Artigo do colunista Iuri Machado e Lia Curial no sala de aula criminal, vale a leitura! '' O julgado em estudo possibilita análise sob diversas perspectivas, mas uma em especial chama a atenção, pois deveria se tratar de um caso fácil, qual seja: a remessa dos autos à instância revisional, conforme fácil apreensão pela leitura do art. 28-A, § 14º, do CPP. Ocorre que a negativa em remeter os autos para revisão vem crescendo Brasil afora, sendo que no Superior Tribunal de Justiça se encontra um julgado em específico sobre o tema, o HC 602.131, da 6ª Turma. Nele, o Ministro Sebastião Reis Jr. indeferiu liminar pleiteada, sob o fundamento de que não seria possível oferta do acordo em processos de tráfico, pois a pena mínima não seria inferior aos 4 anos''. Por Iuri Machado e Lia Curial 1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL
TJPR - 3ª C.Criminal - 0031297-09.2020.8.16.0000 - Cascavel - Rel.: Juiz Antonio Carlos Choma - Rel.Desig. p/ o Acórdão: Juíza Ângela Regina Ramina de Lucca - J. 06.08.2020 Ementa do julgado: HABEAS CORPUS - PACIENTE DENUNCIADA PELOS CRIMES TIPIFICADOS NO ART. 33, CAPUT, C/C 40, INCISO VI, AMBOS DA LEI 11.343/2006 E NO ART. 310 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO - INSURGÊNCIA CONTRA A RECUSA DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM OFERECER O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E DO INDEFERIMENTO POR PARTE DO MAGISTRADO EM ENCAMINHAR OS AUTOS À INSTÂNCIA DE REVISÃO MINISTERIAL - NECESSIDADE DE APLICAÇÃO DO ART.28-A, §14, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL EM ATENÇÃO ÀS DIRETRIZES INTRODUZIDAS PELA LEI 13.964/19 E TENDO EM CONTA O PROCESSO PENAL BRASILEIRO COMO SENDO DE ESTRUTURA ACUSATÓRIA - INVIABILIDADE DE APRECIAÇÃO PELO JUIZ ACERCA DO MÉRITO SOBRE O CABIMENTO DO ACORDO - QUESTÃO A SER ANALISADA EXCLUSIVAMENTE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONDIÇÃO DE TITULAR DA AÇÃO PENAL PÚBLICA – SUSPENSÃO DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO E ENCAMINHAMENTO À INSTÂNCIA DE REVISÃO MINISTERIAL COMO MEDIDA QUE SE AFIGURA ADEQUADA NO CASO EM APREÇO – HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 2 O CASO A paciente foi denunciada pela prática dos crimes previstos nos artigos arts. 33, caput, c/c 40, inciso VI, da Lei 11.343/2006 e no art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro, por fato ocorrido em 31/05/2019, ocasião em que teria entregue a direção do veículo automotor ao seu filho de 15 anos de idade e que trazia consigo 100 buchas de cocaína. Em sua resposta à acusação, pleiteou a remessa dos autos ao Ministério Público para oferta do acordo de não persecução penal (em diante, acordo) e, em caso de negativa da Promotoria, a remessa dos autos à Procuradoria de Justiça, nos termos do art. 28-A do Código de Processo Penal. A promotoria atuante se negou a oferecer o acordo e o juiz se negou a remeter os autos ao órgão superior, sob fundamento de que: Por outro lado, ao revés do que sustenta a Defesa, não se mostra possível, desde logo, afirmar categoricamente que a acusada faz jus ao benefício previsto no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas, já que a apreciação dessa matéria requer aprofundamento no conjunto probatório, o que somente poderá ser realizado após a produção da prova em juízo, ao término da fase instrutória. Por esse mesmo motivo, aliás, é que o pedido de remessa dos autos à Procuradoria-Geral de Justiça deve ser indeferido. Afinal de contas, se há lastro probatório mínimo a embasar a causa de aumento e, ao mesmo tempo, não se faz possível, ao menos por ora, dizer que o tráfico imputado à acusada se amolda ao privilegiado, lógica e consequentemente não há o preenchimento dos requisitos para a obtenção do benefício despenalizador inserido no novel art. 28-A, do CPP, diante da soma das penas mínimas abstratamente cominadas aos delitos Foi impetrado Habeas Corpus em face da decisão supra, requerendo-se a concessão da ordem, a fim de que os autos fossem remetidos à instância revisional do Ministério Público. Ordem ao final concedida. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO A Relatora, dra. Angela R. R. Lucca, teceu considerações acerca do acordo, ressaltando que o mesmo deve ser analisado dentro da nova ótica processual penal acusatória, positivada no art. 3º-A, mas que já havia sido escolha do constituinte (“é inegável o entendimento de que a Constituição Federal conferiu ao processo penal pátrio estrutura acusatória”). Consignou que por se tratar de norma penal mais benéfica deveria retroagir e que apesar de a nova redação do art. 28 estar suspensa por medida cautelar do Ministro Fux, a disposição do art. 28-A, § 14º, do CPP é muito similar à antiga redação do art. 28, que determina a remessa dos autos à Procuradoria-Geral quando da discordância do julgador com a promoção do arquivamento. Deixou claro que o acordo deve ser firmado entre as partes e que ao juiz cabe tão somente o papel de controlador da legalidade, conforme art. 28-A, § 5º, do CPP. De tal modo, o juiz não pode participar da negociação, “o que deve ser considerado também no caso da recusa em oferecer a proposta”. Assim, segundo a Relatora, quando o juiz se nega a remeter os autos à instância revisora, acaba por se confundir com o acusador, porquanto a oferta ou não do acordo cabe exclusivamente ao Ministério Público. Corroborando seu entendimento, citou o Habeas Corpus Criminal 2044741-96.2020.8.26.0000, da 6ª Câmara de Direito Criminal do TJSP, que julgou a mesma situação de recusa da remessa à instância revisora: E se o investigado, ou denunciado, tem direito à garantia constitucional quanto ao duplo grau de jurisdição, embora aqui não se trate de decisão judicial, necessário se faz, até mesmo em observância do comando legal (art. 28-A, § 14) que seja a matéria submetida à instância revisora do Ministério Público, sob pena de, assim não sendo observado, ser desprezado ou ignorado todo o novo sistema trazido pela Lei no 13.964/2019. Por tais motivos concedeu a ordem de habeas corpus. 4 PROBLEMATIZAÇÃO O julgado em estudo possibilita análise sob diversas perspectivas, mas uma em especial chama a atenção, pois deveria se tratar de um caso fácil, qual seja: a remessa dos autos à instância revisional, conforme fácil apreensão pela leitura do art. 28-A, § 14º, do CPP. Ocorre que a negativa em remeter os autos para revisão vem crescendo Brasil afora, sendo que no Superior Tribunal de Justiça se encontra um julgado em específico sobre o tema, o HC 602.131, da 6ª Turma. Nele, o Ministro Sebastião Reis Jr. indeferiu liminar pleiteada, sob o fundamento de que não seria possível oferta do acordo em processos de tráfico, pois a pena mínima não seria inferior aos 4 anos. Em parecer, o MPF afirmou que: “Cabe órgão ministerial justificar expressamente o não oferecimento do ANPP, o que se verifica no caso dos autos, não havendo falarem ausência de fundamentação idônea ou constrangimento ilegal em razão do indeferimento do pedido de remessa dos autos à Procuradoria-Geral de Justiça” Apesar de o mérito ainda não ter sido julgado, percebe-se que o Superior Tribunal de Justiça e vários juízes estão realizando juízo de valoração sobre o direito de revisão sobre a não oferta pela promotoria da respectiva Vara Criminal. Assim, necessário se perguntar: Pode o julgador fazer juízo de mérito sobre a remessa ou não dos autos à instância revisora? Via de regra, a resposta deve ser negativa: o órgão jurisdicional não pode fazer juízo sobre a remessa ou não dos autos à instância revisional do órgão acusador. Para além de argumentações contrárias, esta assertiva tem suas razões no fato incontroverso de que o acordo, incluído no Código de Processo Penal Brasileiro pela Lei nº 13.964/2019, introduziu na sistemática processualista penal um novo modelo de justiça criminal negocial. Esse novo modelo - que incrementa e prestigia a esfera de negociação exclusiva das partes, como já acontece na transação penal, na suspensão condicional do processo (o chamado sursis processual) e no acordo de delação premiada[1] - adequa-se à estrutura acusatória de matriz constitucional na qual o juiz se abstém de exercer papel de protagonista na gestão da prova. À vista disso, segundo magistério de BRASILEIRO (2020, p. 238), é importante destacar o papel fundamental exercido pelo ministério público no modelo acusatório a partir do inegável controle que o órgão desempenha no exercício da ação penal, “visto que retira do juiz quaisquer funções de natureza pré-processual (ou investigatórias), preservando, assim, o que lhe é mais caro, sua imparcialidade”. Sob perspectiva semelhante, PACELLI (2020, p. 9) enfatiza que “a igualdade de partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial”. Ou seja, ao Ministério Público compete legitimamente a pretensão acusatória, na qual também se inserem os mecanismos de justiça penal negocial, enquanto que ao juiz subsiste a função de julgar e de garantir “a máxima eficácia dos sistemas de direitos do réu” (LOPES, 2020, p. 1203). E é somente investido na função de garantir a eficácia dos direitos de quem sofre uma persecução penal que o órgão julgador está autorizado a atuar com protagonismo, sob pena de transformar a atividade judicante em ação inquisitorial. Nessa esteira, há muito se discute a necessidade de compatibilização de vários artigos do Código de Processo Penal, que é de 1941, com o princípio dispositivo, pois como já dito, o protagonismo judicial não é compatível com as diretrizes do modelo acusatório. Veja que o compromisso com um sistema de base acusatória que veda a iniciativa do juiz está voltado à preservação dos direitos fundamentais e garantias individuais de todos os cidadãos, de sorte que tanto os processos legislativos quanto os métodos de interpretação e de aplicação da lei devem observar rigorosamente o modelo constitucional-acusatório. Nesse sentido, caminhou bem o legislador que por meio do art. 28-A, § 14º, do CPP instituiu uma nova sistemática no que diz respeito à recusa do Ministério Público em oferecer o acordo. Notem que a redação do art. 28-A, § 14º, do CPP, de forma expressa e taxativa, determina que, quando houver recusa do parquet em ofertar o acordo, deverá o juiz remeter os autos à instância superior revisional do órgão acusador. Em outras palavras, a vontade do legislador à luz do princípio constitucional-acusatório foi retirar do magistrado o poder de decidir, de intervir nesse novo espaço de consenso que foi inaugurado pelo acordo na dinâmica do processo penal brasileiro. Qualquer outra posição contrária deve ser encarada como uma resistência daqueles que não querem abandonar as práticas arcaicas de um processo criminal primitivo. Notem que defender a iniciativa do órgão julgador, que no caso do art. 28-A, § 14º, do CPP corresponderia à possibilidade do juiz valorar previamente se promove ou não a remessa ao órgão revisor acusatório, é o mesmo que permitir a sua investidura na função de acusador em grau hierárquico superior, visto que teria que analisar, em um espaço de negociação, se o promotor agiu ou não de maneira correta dentro das competências e legitimidade inerentes à acusação para decidir se determina ou não a remessa. Ora, por uma questão lógica de correspondência, de compatibilidade e de segurança que se espera de um sistema de normas, admitir-se que ficará ao critério do juiz decidir se promoverá a remessa à instância revisora - quando houver recusa no oferecimento do acordo pelo parquet - também terá que ser aceita a intervenção do magistrado nos casos de oferecimento do acordo. Especialmente porque a admissão do controle judicial quanto a remessa ou não pelo órgão julgador pressupõe aceitar que há uma subordinação do Ministério Público em relação ao juiz. E se há uma subordinação do órgão acusatório para os casos de recusa, caso remanesça essa interpretação equivocada do art. 28-A, § 14º, do CPP, haverá também uma sujeição para todos os casos, inclusive de oferta, pois o controle passa a ser exercido pelo juiz e não mais pelo órgão acusatório, ferindo de morte a independência funcional do ministério público, cuja previsão é constitucional. Ocorre que não é essa a exegese e aplicabilidade teleológica que se espera do dispositivo. Primeiro porque dentro de uma estrutura verdadeiramente acusatória é proibida a iniciativa por parte do juiz. Segundo porque não se assevera razoável que o órgão julgador se sub-rogue nas funções do ministério público, quanto mais numa esfera privativa de negociação, restando incontroverso que é vedado o controle judicial por parte do magistrado. Vale destacar, inclusive, que ainda que a recusa se dê com fundamentação idônea, o juiz não está autorizado a inspecionar a validade do argumento, a relevância das razões ou a sua pertinência, cuja gestão está exclusivamente a cargo do órgão revisor ministerial. Logo, como forma de preservar a sua própria independência, quando houver recusa do Ministério Público em oferecer o acordo - seja essa recusa fundamentada ou não - ao juiz subsiste tão somente o dever de remeter os autos à instância revisora ministerial a quem compete o juízo acusatório. Por fim, essa remessa obrigatória, que se justifica na exclusividade do Ministério Público em exercer o juízo acusatório, deve ocorrer se o magistrado for provocado pela defesa ou mesmo quando esta restar inerte, pois ao órgão julgador, como já mencionado, compete garantir “a máxima eficácia dos sistemas de direitos do réu”. Lia Curial Advogada Criminal. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. e-mail: [email protected] Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-PR. Ig: @prof_iurimachdo REFERÊNCIAS LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020. NOTAS: [1] Institutos previstos na Lei nº 9.099/95 e na Lei nº 12.850/2013, respectivamente.
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