A promulgação da Constituição Federal de 1988 rompeu com o regime ditatorial e inaugurou o Estado Democrático de Direito no Brasil. O constituinte originário, por sua vez, inseriu no texto constitucional um extenso rol de direitos e garantias fundamentais com o intuito de afastar os tempos sombrios que antecederam à vigência da atual Carta Magna. O principal objetivo, contudo, foi o de promover um Estado protetor, pautado na dignidade da pessoa humana, declarando-a, inclusive, como princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio.
Preliminarmente, cabe ressaltar que o nosso atual Código de Processo Penal é de 1941, logo, ele foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Assim, o CPP foi elaborado em tempos de ditadura, mais precisamente, na vigência da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Todavia, essa recepção não foi em sua totalidade, haja vista que alguns de seus dispositivos afrontavam os preceitos constitucionais e democráticos. Segundo Thiago Minagé (2017, p. 36):
Assim, o Processo Penal possui uma estrutura orientadora composta por normas e princípios e a inobservância destes podem resultar em nulidade processual. Um dos princípios que sustentam essa conjuntura é a obrigatoriedade, considerado regra no ordenamento jurídico penal, o qual consiste no dever de agir do Ministério Público nas ações penais públicas. Entretanto, esse princípio vem sendo relativizado pelo princípio da barganha, modelo advindo dos Estados Unidos, denominado por plea bargaining. Segundo Alexandre Morais da Rosa (2016, p. 285) ao se referir ao sistema de colaboração premiada no Direito dos EUA, leciona que “O efeito da barganha é a redução dos casos penais, repercutindo na eficiência do sistema penal, dizem eles, dando maior capacidade de enfrentamento de casos complexos”. Frisa-se, que a barganha é um método utilizado para conseguir o desfecho da infração penal, por meio do qual é celebrado um acordo entre o Parquete o agente infrator. Negocia-se o abrandamento consensual da pena mediante a confissão e colaboração do investigado sem que haja a necessidade de levar esses casos ao Poder Judiciário. Todavia, o “modismo” de internacionalização de técnicas e instrumentos legais, principalmente advindos do sistema de Direito common law, pode ocasionar certo colapso no nosso sistema que é regido pelo civil law. É necessário analisar o princípio da barganha sob a ótica do sistema processual penal pátrio para não incorrer em afronta aos ditames de ordem constitucional, ferindo os princípios e garantias que permeiam o solo do nosso ordenamento jurídico. Conforme expõe Alexandre Morais da Rosa (2017, p. 285):
Nesse cenário, amplia-se, também, o princípio da oportunidade – exceção ao princípio da obrigatoriedade –, pois o órgão ministerial poderá optar pelo acordo de não persecução penal nos casos cabíveis, declinando a sua obrigatoriedade à discricionariedade. É relevante lembrar que a oportunidade é a exceção, permitida à luz da legalidade. No tocante a obrigatoriedade Gustavo Henrique Badaró (2008, p. 81) explica que “[...] quando o Ministério Público recebe o inquérito policial ou quaisquer outras peças de informação, e se convence da existência de um crime e de que há indícios de autoria contra alguém, estará obrigado a oferecer a denúncia”. No entanto, com a Resolução nº 181 do Conselho Nacional do Ministério Público, alterado pela Resolução nº 183, que dispõe sobre a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público, admitiu-se ao Parquet, nos casos de crimes sem violência ou grave ameaça e nos crimes com pena mínima inferior a quatro anos, a celebração do acordo de não persecução penal, compreendido como espécie de transação penal. Por se tratar de alternativa à ação penal, o objetivo principal é a obtenção de acordos nos crimes menos graves por meio da colaboração do autor da infração, dando ênfase às “soluções mais rápidas” para esses delitos, redirecionando assim, uma maior atenção aos crimes de maior complexidade. Desse modo, o investigado deverá estar acompanhado por seu advogado no momento da confissão da prática delituosa. Com efeito, este ato ensejará uma sanção consensual mais branda e, após o cumprimento do acordo, o arquivamento da investigação. Aplica-se, aqui, o princípio da barganha em face ao princípio da obrigatoriedade. Entretanto, há o risco da confissão retornar como rainha das provas, haja vista que na modalidade da Resolução em comento, esta ganha maior relevância e se investe de certo peso. De acordo com o caput do artigo 18 da Resolução nº 181 do CNMP, alterado pela Resolução nº 183[1]: Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática,mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: (grifo nosso) Partindo da leitura do dispositivo supramencionado, percebe-se a valoração da confissão. Num primeiro momento, a Resolução em questão tinha como intuito normatizar o poder investigatório do Ministério Público, embasado na decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal que negou provimento ao RE nº 593.727/TO, com repercussão geral reconhecida. Por meio dessa decisão, afirmou-se, a base constitucional do poder investigatório do Parquet, considerando a sua autoridade própria, bem como decidiu pela regulamentação da matéria que versa sobre seu procedimento próprio por meio de lei[2]. Assim, até a vigência da regulamentação, a atuação investigatória do Ministério Público estaria amparada pelas normas processuais penais. Todavia, durante a criação da Resolução nº 181, o Conselho Nacional do Ministério Público foi mais além e inseriu uma figura (acordo de não persecução penal) que excedeu os limites do procedimento de investigação criminal, estabelecendo um instrumento eliminador da instauração da ação penal, mitigando a obrigatoriedade. Por meio da celebração do acordo entre o Parquete o autor da infração, este confessa o crime e se necessário, repara o dano (§ 2º, art. 18 do CNMP), em troca do abrandamento da pena, dispensando a ação penal. Ainda, conforme se observa no parágrafo 4º, do artigo supracitado, “realizado o acordo, a vítima será comunicada por qualquer meio idôneo, e os autos serão submetidos à apreciação judicial”. Tem-se nesse dispositivo uma afronta aos preceitos constitucionais do artigo 5º, LIV da Carta Magna. Leia-se que a celebração do acordo será submetida à apreciação do juiz, enquanto o correto seria a homologação do magistrado em vez da “mera apreciação”, haja vista que nesta modalidade o juiz apenas se incube de efetuar previamente uma análise jurídica do termo já pactuado entre o Parquete o agente infrator, afastando a jurisdicionalização adequada do devido processo penal. Segundo o magistério de Francesco Carnelutti (1999, p. 65) “el delito es um desorden y el processo sirve para restaurar el ordem; esta es la intuición”. Desse modo, é concedido ao Ministério Público o controle e a efetivação do acordo. Ainda, “se o juiz considera incabível o acordo, bem como inadequadas ou insuficientes as condições celebradas, fará remessa dos autos ao Procurador-Geral do Ministério Público ou órgão superior interno responsável por sua apreciação [...]” (§ 6º, art. 18 do CNMP), podendo divergir do entendimento do magistrado e pedir pela realização do acordo, independentemente da concordância do juiz. Ocorrerá, assim, o arquivamento, logo após o cumprimento do disposto no acordo. Em linhas conclusas, apesar do intuito do acordo de não persecução penal ser de acelerar o encerramento dos casos que implicam em crimes menos graves, aplicando a penalização consensual e mais branda e com o posterior cumprimento, o arquivamento da investigação, é necessário analisar o regramento desse instituto sob a ótica constitucional. Todo cuidado é pouco para não cairmos na tentação do “modismo da internacionalização a todo custo”, e com isso ferir os preceitos de ordem constitucional como já foi observado acima. Talvez, estaríamos diante do Processo Penal do futuro, mas um futuro que pode se inspirar num passado sombrio, retornando a confissão como rainha das provas. Jacksanderson Farias Rizatti Advogado e Professor de Direito Processual Penal Aicha de Andrade Quintero Eroud Graduanda em Direito do Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu- Cesufoz. Membro Fundadora do Instituto de Estudo do Direito – IED. Membro Associado do International Center for Criminal Studies –ICCS. Membro da Comissão Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais. Membro da Comissão Especial de Estudos de Direito Penal Econômico do Canal Ciências Criminais. Membro do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras – IDESF. REFERÊNCIAS: BRASIL.Conselho Nacional do Ministério Público/Resolução nº 181.Acesso em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolu%C3%A7%C3%A3o-181.pdf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.Acesso em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=291563 BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito processual penal: Tomo I. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. CARNELUTTI, Francesco. Las miserias del processo penal. Tradução: Santiago Sentís Melendo. – Santa Fé de Bogotá, Colômbia: Editorial Temis S.A., 1999. MINAGÉ, Thiago M. Prisões e medidas cautelares à luz da constituição: o contraditório como significante estruturante do processo penal.– 4. ed. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 2017. ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3ª ed. rev. atual. e ampl. – Florianópolis: Empório do Direito, 2016. [1]BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público.http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolu%C3%A7%C3%A3o-181.pdf. Acesso em: 07 de set. de 2018. [2]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=291563. Acesso em: 07 de set. de 2018. Comments are closed.
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