“O Casamento”, de Nelson Rodrigues, é um romance pesado. Pesado no sentido de ser explícito, sujo, visceral. Uma obra polêmica que chegou a ser censurada pouco tempo depois de ter sido lançada. Seja como for, a leitura é uma boa pedida, já que de qualquer modo acabará por surpreender o leitor. Fica apenas registrado o aviso aos desavisados: o choque ocorrerá no decorrer da leitura, de modo que aos de estômago fraco é interessante uma preparação (respirar fundo) antes de iniciar a leitura. O livro conta a história da vida familiar de Sabino. Na verdade não há como pontuar sobre qual a história que é narrada no livro, já que são várias as que são contadas. No entanto, estão todas as narrativas envoltas no fato do casamento de Glorinha, filha de Sabino. Pouco antes da cerimônia, Sabino descobre pelo Dr. Camarinha (médico da família) que seu genro foi flagrado beijando outro homem. O que fazer? O genro deve ser confrontado sobre o episódio? Glorinha merece saber do ocorrido? O casamento deve prosseguir? São esses e diversos outros questionamentos que Sabino, desesperado, passa a fazer enquanto aguarda pelo dia do casamento de sua filha mais querida. Glorinha é a preferida. E tal predileção esconde algo bastante perturbador. Mesmo sendo o casamento de Glorinha o mote da obra, as histórias polêmicas que se cruzam são diversas. Traições, incesto, crimes, loucura e muito sexo se fazem presentes constantemente. Cada personagem que é apresentado no livro tem o seu íntimo desvelado. Seus segredos mais obscuros são confidenciados ao leitor através de narrativas bastante detalhadas e sem pudor algum. A vida como muitas vezes ela é. Esteja então o leitor preparado para suportar descrições em tal sentido. Dentre tantos episódios que são narrados no livro, há aquele sobre o cometimento de um crime. Noêmia, secretária de Sabino, é assassinada por seu amante, Xavier, após uma discussão sobre o término do relacionamento destes. O crime se dá no ambiente de trabalho da vítima, ou seja, no escritório de Sabino. Não bastassem os diversos problemas que Sabino vinha enfrentando (o dilema sobre a descoberta do ocorrido com seu genro, as pressões e extorsões praticadas contra si pelas próprias filhas, o pequeno caso que tivera com a secretária...), passou a ter uma nova preocupação: um assassinato em seu escritório. Para a polícia, não havia suspeito em concreto. Aparentemente um crime que não teria solução, em que pese a pequena suspeita que recaíra sobre Xavier, a qual infelizmente não poderia ser abordada diante do suicídio deste. O tormento de Sabino é tamanho que este sequer aproveita o momento do casamento de sua filha. Preocupações, frustrações e desespero o assolam. No transcorrer da cerimônia de casamento, Sabino se dirige à delegacia. O local estava cheio de repórteres. Sabino aproveita o momento e pede para que a imprensa o ouça, quando assim declara: “Vim, aqui, confessar o meu crime. Eu, Sabino Uchoa Maranhão, matei, ontem, no meu escritório, por ciúmes, a minha secretária Noêmia. Essa moça era minha amante e esteve comigo, na tarde de ontem, num apartamento [...]. Eu sou o assassino! Era minha amante. Atirei o punhal no mar. Sou o Assassino.”. A confissão é mentirosa, claro. Mas isso fica claro apenas para o leitor. Sabe-se que o assassino de Noêmia foi Xavier, o qual após o crime ainda matou a esposa e cometeu suicídio. Mas algo levou Sabino a se acusar falsamente. Os leitores têm pistas no próprio livro, mas as respostas podem ser diversas. O fato é que a confissão falsa serviu como um meio para Sabino lavar a própria alma. Talvez descarregar de tal modo todas as suas frustrações, objetivando alguma forma de superação da angústia. O livro inclusive encerra dando a assim entender, pontuando que após a confissão Sabino “era feliz”. Nelson Rodrigues não nos contam que aconteceu com Sabino. A única parte verdadeira em sua confissão é quando mencionou o caso com a secretária. Sobre o assassinato, tomou indevidamente para si a autoria. Teriam descoberto a farsa? Sabino se arrependeu da mentira em algum momento e tentou voltar atrás? Chegou a ser processado? Condenado (com base apenas na confissão?)? Sua pena foi cumprida? Avancemos para um plano mais amplo. O que leva a alguém confessar falsamente? Quais os fatores que poderiam contribuir para que alguém tome para si a autoria de algo que não foi por este mesmo alguém praticado? Acusar-se falsamente encontra algum respaldo explicativo? Nucci destaca em uma de suas obras os fundamentos da confissão, classificando 21 razões que podem levar alguém a confessar um crime, admitindo assim a própria culpa enquanto acusado no âmbito do processo penal. Dentre estas, constam também hipóteses de confissão não legítimas, ou seja, autoacusações falsas – o caso de Sabino em “O Casamento”. Assim pontua Nucci:
Daí que todo cuidado na investigação e na condução do processo é pouco.Há tempos que a confissão deixou de ser a “rainha das provas”. O processo penal é um fenômeno complexo e deve ser analisado, estudado e conduzido da forma devida (zelosa, criteriosa, respeitosa...). No caso de Sabino, creio que se a investigação e/ou o processo fossem conduzidos de maneira escorreita, sua culpa seria afastada. A farsa seria escancarada e Sabino teria de explicar os motivos que o levaram a fazer o que fez. Não bastasse todo o alvoroço que causaria, Sabino poderia ainda responder por outro crime, mas desta vez um delito que de fato praticara. Digo do crime especificado no Código Penal como “Auto-acusação falsa”, elencado no artigo 341, o qual Delmanto define como o crime no qual “o agente se atribui a prática de crime (doloso ou culposo, mas não basta contravenção) inexistente (que não houve) ou praticado por outrem (cometido por terceira pessoa e se coautoria ou participação do agente)”. Assim tendo de fato procedido Sabino, já que se acusou de crime que não fora por si praticado, incorreu na prática do artigo 341 do Código Penal. Só não sei dizer se, caso descoberto, Sabino também confessaria o crime que de fato praticara. Em tal situação, talvez o “era feliz” que encerra o livro deveria ser substituído por algo mais adequado à condição vivenciada por Sabino. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia BIBLIOGRAFIA CONSULTADA DELMANTO, Celso. et al. Código Penal Comentado.8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal.2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. RODRIGUES, Nelson. O Casamento. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |