Artigo do colunista Iuri Machado no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Ao afirmar que o termo não passa de um boletim de ocorrência mais elaborado, colocou-se, definitivamente, em xeque a maioria esmagadora dos procedimentos que tramitam nos Juizados Especiais Criminais. Isto porque grande parte da doutrina, há muito tempo, questiona a falta de qualquer critério na avaliação dos termos que chegam ao Juizado Especial Criminal e que, apesar da falta de elementos informativos, têm designada audiência de oferecimento de transação penal''. Por Iuri Victor Romero Machado Em recente decisão, tomada na ADI 3.807, ao analisar a constitucionalidade do art. 48, § 2º e 3º, da Lei nº 11.343/06 (Lei de Drogas), o Supremo Tribunal Federal acabou por tratar da natureza jurídica do termo circunstanciado de inquérito policial ou termo de ocorrência (em diante, termo), o que não era o objeto principal do julgamento.
Estava em debate a constitucionalidade do termo poder ser lavrado pela autoridade judicial, vez que a legislação determina o imediato encaminhamento ao juízo competente e, somente na ausência de autoridade judicial, a lavratura do termo circunstanciado pela autoridade policial. A solução aparentava ser de fácil resolução, vez que há muito tempo a doutrina (majoritária) trata o termo circunstanciado como meio de investigação de menor complexidade. Por todos, veja-se Henrique Hoffmann: Nesse sentido, o termo circunstanciado de ocorrência exsurge como mais uma espécie de procedimento investigatório da polícia judiciária. A Lei dos Juizados Especiais, como não poderia deixar de ser, manteve nas mãos do delegado de polícia a função de conduzir a investigação criminal, ao dispor que a “autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado” (artigo 69 da Lei 9.099/95). (disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set-29/academia-policia-termo-circunstanciado-lavrado-delegado. Acesso em 15.08.21). Trata-se de investigação de menor complexidade, pois o termo é destinado a apurar as infrações de menor potencial ofensivo, i.e., aquelas que tenham penas que não ultrapassem dois anos (art. 61 da Lei nº 9.099/95). O legislador, ao normatizar as atribuições da autoridade policial (Lei nº 12.830/13), esclareceu que a expressão “Ao delegado de policial cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei”, diz respeito (dentre outros) ao termo, ou seja, afirmou que este é meio de investigação a ser conduzido pela autoridade policial, veja-se: “E o outro procedimento é o termo circunstanciado de ocorrência, que se aplica para aqueles casos de delitos de menor potencial, e que está previsto na Lei 9.099/95” (parecer 409/2013). Assim, ante a natureza (até então tida como) investigativa do termo, parecia existir pouca dúvida doutrinária sobre a inconstitucionalidade do art. 43, §2º e 3º, da Lei de Drogas. Ocorre que, nada obstante o consenso doutrinário, o STF reconheceu a constitucionalidade dos dispositivos legais, conforme seguinte ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 3º DO ART. 48 DA LEI N. 11.343/2006. PROCESSAMENTO DO CRIME PREVISTO NO ART. 28 DA LEI N. 11.343/2006. ATRIBUIÇÃO À AUTORIDADE JUDICIAL DE LAVRATURA DE TERMO CIRCUNSTANCIADO E REQUISIÇÃO DOS EXAMES E PERÍCIAS NECESSÁRIOS. CONSTITUCIONALIDADE. INEXISTÊNCIA DE ATO DE INVESTIGAÇÃO. INOCORRÊNCIA DE ATRIBUIÇÃO DE FUNÇÃO DE POLÍCIA JUDICIÁRIA AO PODER JUDICIÁRIO. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. (ADI 3807, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-201 DIVULG 12-08-2020 PUBLIC 13-08-2020). A fim de possibilitar a lavratura do termo pelo judiciário, o STF afirmou que o mesmo não é atividade investigativa, tampouco de atribuição privativa da autoridade policial. Segundo a posição vencedora do STF, o termo seria “peça informativa com descrição detalhada do fato” (posição defendida pela doutrina minoritária, dentre outros Badaró). O Ministro Barroso afirmou ainda que: “A mera lavratura do termo circunstanciado em juízo não torna o magistrado um inquisidor. Tampouco viola a garantia de imparcialidade. Quando lavra o termo, a autoridade não emite nenhum juízo de valor sobre as narrativas apresentadas”. Com este posicionamento, o STF firmou o entendimento de que “havendo disponibilidade do juízo competente, o autor do crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006 deve ser até ele encaminhado imediatamente”. Percebe-se que a posição adotada pelo STF acaba por gerar inúmeros problemas de ordem prática, para além da possibilidade de termos um juiz instrutor na Lei de Drogas (podendo gerar questões acerca do Sistema Acusatório). Quiçá, o maior problema seja que o STF não limitou a natureza jurídica do termo tão somente à Lei de Drogas, vez que se referiu ao mesmo de forma genérica, inclusive, citando doutrina que trata da Lei nº 9.099/95. Ao afirmar que o termo não passa de um boletim de ocorrência mais elaborado, colocou-se, definitivamente, em xeque a maioria esmagadora dos procedimentos que tramitam nos Juizados Especiais Criminais. Isto porque grande parte da doutrina, há muito tempo, questiona a falta de qualquer critério na avaliação dos termos que chegam ao Juizado Especial Criminal e que, apesar da falta de elementos informativos, têm designada audiência de oferecimento de transação penal. A transação, de forma extremamente simplificada, é um instituto negocial aplicado aos crimes de menor potencial ofensivo, em que o noticiado aceita cumprir uma pena restritiva de direito ou pagar uma multa negociada com o presentante do Ministério Público (art. 76 da Lei nº 9.099/95), a fim de não ser dada continuidade à persecução penal. Para que seja ofertada a transação penal, é necessário que sejam preenchidos pressupostos de admissibilidade, quais sejam: que seja crime de menor potencial ofensivo; não ser caso de arquivamento; não ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; não ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de 5 (cinco) anos, pela transação penal; antecedentes, conduta social, personalidade do agente, bem como os motivos e circunstâncias do delito favoráveis ao agente. No que concerne ao debate, importa o pressuposto “não ser caso de arquivamento”. Conforme acima apontado, a doutrina critica a falta de avaliação dos termos que chegam aos Juizados. Por todos, veja-se, respectivamente, LIMA e LOPES JR.: Infelizmente, devido à grande quantidade de processos criminais que tramitam perante os Juizados, é sabido que esse requisito não é analisado detidamente por ocasião do oferecimento da proposta de transação penal. Porém, é o próprio art. 76 da Lei nº 9.099/95 que diz expressamente que a proposta só deve ser oferecida quando não for caso de arquivamento do termo circunstanciado. (2020, p. 1565) Importante sublinhar, ainda, que a transação penal não é uma alternativa ao pedido de arquivamento, senão um instituto que somente terá aplicação quando houver fumus commissi delicti e o preenchimento das demais condições da ação processual penal. Infelizmente, no lugar onde mais deveria se realizar a filtragem processual, com uma enxurrada de ações penais sendo rejeitadas, é exatamente onde menos se controlam as condições da ação (prática de fato aparentemente criminoso – fumus commissi delicti; punibilidade concreta; legitimidade de parte; justa causa). (2020, p. 1197) A crítica doutrinária é de total acerto, vez que o Ministério Público só poderia propor a transação penal quando não for caso de arquivamento, i.e., quando presentes as condições da ação penal, quando convencido da materialidade e da autoria do crime, o que não ocorre na maioria esmagadora dos casos que chegam aos Juizados, conforme constatou o Ministro Gilmar Mendes no julgamento do Habeas Corpus nº 176.785-DF, cujo fundamento merece ser lido: Há relatos de casos em que a proposta de transação penal é apresentada ao imputado sem qualquer análise prévia do acusador sobre os fatos narrados e seu mínimo embasamento probatório: “Comprova este argumento a última entrevista acima transcrita, onde o operador admite que até quando não existem provas, ele oferece a transação penal. A inversão dos ritos por ele assumida (primeiro oferece a transação penal, depois busca as provas) demonstra que procedem as afirmações já apresentadas sobre o caráter inquisitorial da transação penal e a inversão da presunção de inocência, que transformam o instituto – de origem despenalizadora – em punição/castigo”. (ALMEIDA, Vera Ribeiro de. Transação penal e penas alternativas. Uma pesquisa empírica nos Juizados Especiais Criminais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 158). Ou seja, pode-se chegar ao absurdo cenário em que, após o oferecimento da transação penal pelo Ministério Público e a recusa do imputado, o caso seja arquivado por inviabilidade da denúncia, seja por atipicidade da conduta, prescrição, falta de justa causa etc. Isso não pode ser aceito, primeiro porque o acusador somente deve propor a transação em casos onde eventual denúncia posterior seja viável, sabendo que haverá um controle efetivo pelo juiz em caso de aceite ao acordo. Da fundamentação, percebe-se que há manifesto abuso na forma de proceder do Ministério Público (que pode, inclusive, incidir nas sanções do art. 30 da Lei de Abuso de Autoridade) e complacência por parte do Judiciário, que deveria não homologar os respectivos acordos de transação e, de pronto, trancar os termos. Após esta sucinta explicação sobre a ADI e sobre o abuso na oferta de transações sem que exista justa causa fundamentada, chega-se ao grande problema criado pelo STF: se o termo não passa de uma peça informativa, i.e., se não é meio de investigação policial, qual valor pode ser dado ao mesmo para que seja formada a justa causa necessária para persecução nos Juizados Especiais Criminais? O boletim de ocorrência é, em sua essência, uma notícia crime registrada perante a autoridade policial para que esta tome as providências cabíveis para a apuração do fato. Ao equiparar o termo ao boletim de ocorrência, acabou por se limitar a uma interpretação gramatical daquele, afinal: a) termo: peça no qual certo ato é formalizado; b) circunstanciado: detalhado, pormenorizado; c) ocorrência: acontecimento. Nada obstante, o STF ignorou que o termo era previsto em lei como procedimento de investigação a ser conduzido pela autoridade policial, pois, quando da ocorrência de um fato criminoso de menor potencial ofensivo, esta deveria envidar esforços a fim de provar materialidade e autoria. Sabe-se das inúmeras dificuldades operacionais das policias civis Brasil afora em conduzir investigações (falta de efetivo e recursos materiais), mas não se pode, por falta de estrutura estatal, transformar investigações em meros registros. A importância na devida tipificação, no apontamento das devidas diligências é crucial para que o termo seja bem conduzido. A decisão no sentido de que o termo se trata de mera “peça informativa” faz com que os crimes de menor potencial ofensivo, quando desacompanhado de provas cautelares, irrepetíveis e antecipadas, deva necessariamente ser arquivado por ausência de justa causa, vez que desacompanhado de investigação. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-PR. Ig: @iuri_vrmachado REFERÊNCIAS: COSTA, Humberto. Parecer 409/2013. Senado Federal. Disponível em: < https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3933511&ts=1594007102296&disposition=inline>, Acesso 15.08.21. HOFFMANN, Henrique. Termo circunstanciado deve ser lavrado pelo delegado, e não pela PM ou PRF. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-set-29/academia-policia-termo-circunstanciado-lavrado-delegado>. Acesso em 15.08.2021. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020. LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
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