Muito se tem debatido, ao longo dos últimos anos, principalmente após a promulgação da CR de 1988, sobre o tema. Todavia, nada – ou muito pouco – mudou. Os melhores processualistas do país discutem, criticam, escrevem... E nada. A pergunta que fica talvez seria essa: ainda precisamos falar sobre os sistemas processuais penais? Ou: adianta insistir em falar sobre?
Quero logo registrar que o presente escrito tem como referência ou é fruto de estudos a partir da leitura do compilado do mestre Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “Observações sobre os sistemas processuais penais: escritos do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho – vol. 1”, motivo pelo qual se citará, com frequência, o autor. De um ponto inicial, o que todos sabem: não há que se falar em um sistema puro. Todos são mistos (e há uma falácia – ou insuficiência – ou hipocrisia - tremenda em afirmar que ele assim o é, para justificar não ser ele inquisitório). Enfim, há que se constatar aquilo que Jacinto, há muito, defende, a partir de Kant: não se é misto o sistema porque se têm princípios reitores mistos; do contrário: são mistos porque, apesar do princípio reitor ser dispositivo (ou acusatório) ou inquisitório, há, inevitavelmente, elementos do outro sistema a ele agregados[1]. Desde essa premissa, impende definir, para descobrir o sistema essencialmente adotado no processo penal brasileiro, se o princípio reitor é inquisitório ou acusatório. É ele (o princípio fundante) que definirá se o sistema é um ou outro (sempre levando em consideração, formalmente falando, que todo sistema é misto). E esse princípio unificador está calcado justamente na gestão da prova: isso parece claro quando se imagina que o processo penal é o instrumento que se destina a um fim, ou ainda, que ele (o processo penal) é o caminho necessário para se chegar a uma pena. Resumindo (porque todos sabem): no sistema acusatório, a produção da prova está nas mãos unicamente das partes (Ministério Público e acusado), enquanto a figura do juiz (imparcial) se mantém distante. Já no sistema inquisitório, o juiz ocupa o protagonismo na causa: sai em busca de provas para fundamentar a decisão (que não raras as vezes já, antes, a tomou). Vamos, então, ao estatuto que rege o processo penal: Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada. Nas palavras do professor Jacinto, “é visível o teor inquisitorial do texto. O princípio da acusação e o princípio da disposição do conteúdo do processo, ambos afeitos ao Ministério Público, cedem ao predomínio do juiz que, contra a vontade expressa da parte, pode condenar e conhecer agravantes”[2]. Isso sem falar na possibilidade que o CPP dá ao juiz para decretar prisão preventiva de ofício (art. 311) e outros tantos dispositivos legais que mostram que o sistema processual penal é inquisitório (embora, claro, tenha elementos – secundários e insuficientes – acusatórios). De outra banda, temos uma Constituição que determina claramente um processo acusatório, que cerca o acusado de diversas (e necessárias) garantias frente ao Estado. Código de Processo Penal de 1941 – regido pelo sistema inquisitório – de um lado; e Constituição Federal de 1988 – que opta pelo sistema processual acusatório – de outro. É o que Jacinto reclama: “... no Brasil, o sistema acusatório é um imperativo constitucional (com a força que esta expressão tem, poder-se-ia arriscar dizer) do qual não se pode abrir mão, mesmo depois de se ter passado mais de vinte e cinco anos da CR/88 e ainda se conviver com a estrutura do CPP, indiscutivelmente inquisitorial[3]”. Eis aí a decepção: malgrado uma Lei Maior defina que ele (o sistema) assim não o seja, não conseguimos, agora depois de 30 anos (5 depois do escrito supracitado), superar um processo penal inquisitorial! Os motivos são muitos e variados... Vive-se épocas de decisionismo arbitrário e um ativismo judicial sem precedentes, onde juízes decidem (ou falam d)o que querem, de qualquer coisa. Passam por cima de leis, da Constituição, enfim... Terra de ninguém! Esse é outro tema, que daria outro artigo. O professor Lênio Streck que o diga! O professor Coutinho fala dessa luta: “Depois de oito séculos – não se deve duvidar -, a superação do sistema processual inquisitório não é tão simples e nem haveria de ser. Sendo uma opção política por excelência é, também, ideológica e, assim, serve sobremaneira aos sentidos que aproveitam a alguns, em geral os detentores do poder ou seus fantoches. O dilema dessa gente, hoje, é a Constituição (antes de tudo), a qual tratam de tentar driblar pela via de uma hermenêutica marota que autoriza, inclusive, exegeses inconstitucionais. A luta deles – sabe-se bem – não é simples. Mas como estão do lado do poder tendem a dificultar imensamente e com todas as forças a efetivação da Constituição. O preço que se paga pelo atraso – também se sabe – diz com uma moeda muito cara: a carência de cidadania. Mas assim caminha a humanidade...”[4] Enfim, não pretendo alongar o debate com essa coluna. O espaço é curto e a crítica longa... Afinal, retomo à pergunta que dá título ao escrito: ainda precisamos (ou: vale a pena?) falar sobre sistemas processuais penais? Jacinto responde: “o que se tem é uma mera crise, em que pese grave, gravíssima. E o processo penal pode se livrar dela, ainda que se deva aceitar a permanência de cicatrizes bem visíveis. O referido prognóstico é possível porque a CR está viva e há de se ter esperança de que se terá razão suficiente para impedir o pior, ou seja, a manutenção do interregno e, em um plano mais amplo, quem sabe, um metafórico ‘estado de natureza’ hobbesiano”.[5] Me junto à Jacinto e tantos outros. Afinal, prefiro crer no que Victor Hugo, certa vez, disse: “Não há nada como o sonho para criar o futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã”. Edson Luiz Facchi Junior Especialista em Ciências Criminais Membro da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR Advogado criminal [1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Para passar do sistema inquisitório ao sistema acusatório: Jouissance, In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais. Organizadores: Marco Aurélio Nunes da Silveira e Leonardo Costa de Paula; Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 88. [2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda..., p. 89. [3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Por que sustentar a democracia do sistema processual penal brasileiro?, In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais. Organizadores: Marco Aurélio Nunes da Silveira e Leonardo Costa de Paula; Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 110. [4] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda..., p. 111. [5] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Advocacia criminal e a deterioração do sistema inquisitorial atual, In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais. Organizadores: Marco Aurélio Nunes da Silveira e Leonardo Costa de Paula; Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 170. Comments are closed.
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