Artigo do Colunista Khalil Aquim, com importantes e necessárias reflexões sobre o sistema prisional em tempos de pandemia, vale a leitura! '' Necessário assinalar que, no ano de 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro ao julgar medida cautelar na ADPF 347[6], anotando a ocorrência de violações generalizadas de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica, convertendo-se as penas privativas de liberdade em penas cruéis e desumanas, em afronta a diversos dispositivos constitucionais (artigos 1º, III, 5º, III, XLVII, e, XLVIII, XLIX, LXXIV, e 6º), normas internacionais reconhecedoras dos direitos dos presos (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais como a LEP e a LC 79/1994''. Por Khalil Aquim “Amanhã talvez os fantasmas cobrem aquela escolha.
Ou hoje até, talvez.” (André Prando) Em uma de suas obras magistrais, afirmou o colombiano Gabriel García Márquez que “nunca hubo una muerte más anunciada”[1] do que a morte de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario. Tantos foram os avisos e tantos os que já sabiam com antecedência do homicídio que o juiz instrutor do processo fez constar em suas anotações que “nunca le pareció legítimo que la vida se sirviera de tantas casualidades prohibidas a la literatura, para que se cumpliera sin tropiezos una muerte tan anunciada”[2]. No Brasil de 2020, porém, muitas mortes foram ainda mais anunciadas do que a de Santiago Nasar. A pandemia de covid-19, assim reconhecida pela Organização Mundial da Saúde – OMS – no dia 11 de março deste ano[3], afetou mais de uma centena de países em todos os continentes e, ainda que até hoje sobre as medidas preventivas, individuais e coletivas, desde o mês de março dois pontos já eram sabidos: a) o novo vírus tem potencial de contágio extremamente alto; e b) o novo vírus pode ser letal, mesmo que o nível de letalidade seja ainda hoje discutido. Dizendo de outro modo, a transmissão é agressiva, e (em maior ou menor proporção) o novo coronavírus mata. Atentando ao cenário pandêmico e às medidas preventivas indicadas pela OMS, no dia 16 de março o Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD – requereu, em pedido incidental nos autos de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, que os juízos competentes adotassem procedimentos de cautela para a população carcerária. Assim, a partir das individualidades de cada preso e das especificidades de cada caso concreto, deveria ser analisada a possibilidade da concessão de liberdade condicional, conversão em prisão domiciliar, substituição das prisões preventivas por medidas cautelares diversas ou progressão antecipada da pena. Em sede liminar, no dia 17 de março o ministro Marco Aurélio negou seguimento ao pedido por reconhecer ilegitimidade da parte, mas, de ofício, conclamou os juízos de execução a analisarem, ante a pandemia chegada ao país, as providências sugeridas. No dia seguinte, porém, o plenário do Supremo negou o referendo à matéria de fundo do pedido, vencidos os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes[4]. Paralelamente à manifestação do Supremo, o Conselho Nacional de Justiça editou em 17 de março a Recomendação nº 62/2020[5], recomendando a juízes e tribunais a adoção de medidas preventivas à propagação do novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativos. Nela são indicadas uma série de medidas a serem avaliadas por juízes de execução penal, de instrução criminal e de varas da infância e da juventude, de modo a buscar viabilizar liberdades condicionais, conversão de prisões cautelares em outras medidas alternativas, utilização de monitoramento eletrônico, prisões domiciliares e antecipação da progressão de regime, dentro de uma série de requisitos expostos, sempre a partir das condições individuais que possibilitem a adoção das medidas. Verifica-se, entretanto, que antes mesmo de o CNJ padronizar o funcionamento dos serviços judiciários durante a pandemia por meio da Resolução nº 313/2020, em19 de março, já havia sido expedida aos magistrados a Recomendação CNJ nº 62, que instrui a análise individual de cada caso para que se verifique a possibilidade de aplicação das medidas mencionadas. Necessário assinalar que, no ano de 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro ao julgar medida cautelar na ADPF 347[6], anotando a ocorrência de violações generalizadas de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica, convertendo-se as penas privativas de liberdade em penas cruéis e desumanas, em afronta a diversos dispositivos constitucionais (artigos 1º, III, 5º, III, XLVII, e, XLVIII, XLIX, LXXIV, e 6º), normas internacionais reconhecedoras dos direitos dos presos (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais como a LEP e a LC 79/1994. Justamente por isso a petição do IDDD foi incidental à ADPF 347. Afinal, ainda que a decisão tenha sido um marco na introdução das audiências de custódia e na determinação de destinação do Fundo Penitenciário, o cenário de estado de coisas inconstitucional não foi em nada solucionado. Segundo os dados informados pelo Departamento Penitenciário Nacional em abril deste ano (Infopen 2019)[7], a população carcerária total em dezembro de 2019 era de 748.009 pessoas (excluindo os presos em delegacias de polícia), número em muito superior ao total de vagas, eis que todo o sistema penitenciário brasileiro comporta apenas 442.349 presos, faltando assim vagas para 312.925 presos. Não se pode esquecer, ainda, que cerca de 30% da população carcerária (229.823 pessoas) é composta por presos provisórios, presumidamente inocentes, ressalte-se. Num momento em que aglomerações são cenários de risco de contaminação, percebe-se, de plano, a necessidade de aplicação das medidas propostas pelo IDDD e pelo CNJ. A situação se revela ainda pior ao revelar, no mesmo relatório, que milhares de presos padecem de doenças graves e transmissíveis[8]. Foi nesse cenário que no dia 08 de abril se confirmou o primeiro caso de covid-19 em uma unidade prisional brasileira. A partir daí, o que sucedeu repete o descrito na obra de García Márquez: “la gente sabía que Santiago Nasar iba a morir, y no se atrevían a tocarlo”[9]. A partir do último relatório do CNJ, divulgado em 15 de julho, no sistema prisional foram já confirmados 7.220 presos contaminados com covid-19, além de 4.772 servidores dos estabelecimentos (policiais penais, agentes de cadeia e afins). Os óbitos confirmados já somam 141, sendo 66 presos, 61 servidores do sistema prisional e 14 servidores do sistema socioeducativo[10]. Dos presos que vieram a óbito, dois tomaram as mídias sociais nos últimos dias, e por motivos, ainda que distintos, idênticos. São os casos de Lucas Morais da Trindade e de Nelson Meurer. Lucas Morais da Trindade era um homem negro de 28 anos que, em 28 de novembro de 2018, foi preso em flagrante portando pouco menos de 10g de maconha, apontado por isso como incurso no art. 33 da Lei nº 11.343/06. Em primeiro grau, houve condenação a uma pena privativa de liberdade de 5 anos e 4 meses. Pendia ainda análise do recurso de apelação. Foram impetrados ao menos dois habeas corpus perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais[11] e um perante o Superior Tribunal de Justiça[12] já durante o cenário pandêmico atual. O último não chegou a ser apreciado. O ministro Rogerio Schietti remeteu os autos ao Ministério Público Federal para manifestação no dia 30 de julho, mas o retorno com parecer se deu apenas no dia 06 de julho, quando Lucas já havia falecido. Nelson Meurer foi deputado federal pelo Partido Progressista e, em 29 de maio de 2018, foi condenado pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal a 13 anos e 9 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, sendo o primeiro parlamentar condenado no âmbito da operação lava jato. Aos 77 anos, era portador de diversas comorbidades relacionadas e agravadas pela idade avançada, notadamente hipertensão, diabetes e problemas renais. Já havia solicitado a prisão domiciliar anteriormente, com base na fragilidade de saúde. Reiterou o pedido, agora com o risco de contágio pelo novo coronavírus, sendo denegado no dia 02 de abril pelo ministro Edson Fachin, que entendeu haver condições de cuidados apropriados na unidade prisional, voto vencedor na apreciação do colegiado. A defesa do apenado ainda buscou apresentar agravo regimental, que acabou denegado em votação que estava empatada: na abstenção da ministra Cármen Lúcia, o regimento à época previa que seu voto seria computado acompanhando o relator. No início de julho foi novamente buscada resposta do Supremo, encontrando como óbice o recesso forense e o alegado não enquadramento nas hipóteses de atuação excepcional da presidência da corte. Faleceu em 12 de julho. Trindade e Meurer pouco tinham em comum. O primeiro é o alvo padrão do sistema prisional brasileiro. Homem, jovem, negro, usuário de drogas. Menos de 10 gramas de maconha, pouco mais de 180 reais em espécie, e preso preventivamente, tratado como traficante perigoso e violento. Não teve sua culpa confirmada, e nem sua presumida inocência respeitada. O segundo, por sua vez, é o objeto de desejo do fetichismo lavajatista. Político de relevo nacional, muitos recursos (em especial financeiros), condenado exemplarmente pelos atuais pecados capitais de corrupção e lavagem de dinheiro. Ao final, buscou ao menos ter o direito a um final de vida digno, uma despedida humana de seus familiares. A maior conexão entre ambos não se deu em vida, mas na morte: vítimas de um sistema punitivista que assistiu, passivo e negligente, suas mortes anunciadas. Ao longo das aventuras de Dom Quixote, um duque e uma duquesa concedem a Sancho Pança a ilha de Baratária para governar. O governo foi de apenas uma semana, e tudo não passava de uma armação para divertimento do casal, mas os protagonistas da obra de Cervantes não o imaginavam, acreditando efetivamente se tratar de uma real governança. Antes da despedida, o engenhoso fidalgo manchego dá a seu fiel escudeiro primorosos conselhos para assumir o cargo. Dentre eles, alguns conselhos para operadores do Direito de hoje: “Hallen en ti más compasión las lágrimas del pobre, pero no más justicia, que las informaciones del rico. Procura descubrir la verdad por entre las promesas y dádivas del rico como por entre los sollozos e importunidades del pobre. Cuando pudiere y debiere tener lugar la equidad, no cargues todo el rigor de la ley al delincuente; que no es mejor la fama del juez riguroso que la del compasivo. Si acaso doblares la vara de la justicia, no sea con el peso de la dádiva, sino con el de la misericordia.”[13] É há muito sabido que a crueldade do sistema de justiça criminal brasileiro é pungente, especialmente para com a população pobre. Isso não quer dizer, porém, que o equilíbrio do sistema se dará ao tratar os ricos com a mesma brutalidade. Muito pelo contrário: direitos fundamentais devem ser assegurados a ricos e pobres, aos defendidos por advogados particulares assim como aos assistidos pela Defensoria Pública, a partir também de atuação mais humana do Ministério Público e observação e respeito às garantias pelo Judiciário. Dados divulgados pelo CNJ indicam que até o final de maio cerca de 32 mil presos haviam sido gratificados com alguma medida proposta na Recomendação n° 62/2020[14]. A grosso modo, o número corresponde a: a) pouco mais do que o número total de presos com outras enfermidades de alto contágio; b) pouco mais de 10% do número de presos provisórios; e c) menos de 5% do total de presos. Um dos beneficiários da medida foi Fabrício Queiroz, amigo do presidente da República, que obteve do presidente do Superior Tribunal de Justiça decisão liminar para converter sua prisão preventiva em prisão domiciliar, decisão estendida também a sua companheira, Márcia Aguiar[15]. Ao analisar o habeas corpus, o ministro João Otávio de Noronha fundamentou sua decisão na Resolução nº 62/2020 CNJ, considerando o câncer que acometeu o paciente e a atenção constante que requer, garantindo também a presença e os cuidados de sua companheira, aplicando medidas cautelares distintas da prisão. A despeito da sólida discussão sobre a concessão de prisão domiciliar a Fabrício Queiroz e Márcia Aguiar, eis que foi ele preso na casa de terceiro, supostamente escondido, enquanto ela estava ainda foragida, não é este o ponto que aqui se propõe. A análise do presidente do STJ (sem fecharmos os olhos para as críticas que devem ser feitas para eventual atuação política direcionada) é exatamente a análise que todos os magistrados deveriam fazer com todos os presos brasileiros. Desde o ano de 2011 há expressas na legislação processual penal brasileira ao menos nove medidas cautelares diversas da prisão, restando claro no art. 282, §6º, CPP, que a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar. Com o advento da Lei nº 13.964/19, alterou-se a redação do dispositivo, que agora prevê que “o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”. Ainda assim, menos de 5% da população carcerária foi beneficiada com as medidas de prevenção à propagação de covid-19 propostas pelo CNJ. A pergunta que não se consegue responder de fato é: como os casos de Lucas Trindade e Nelson Meurer puderam ser tão negligenciados? Todos foram avisados, todos sabiam. Sobre os dois, sobre os outros 64 presos mortos pelo novo coronavírus e sobre os 75 servidores mortos. Lembremos que o sistema de justiça criminal não é cruel apenas para com os presos, mas também para com suas famílias e, ainda, para com os que nele trabalham, vivem e, nestes casos, morrem. Assim como os personagens descritos por García Márquez, todos sabiam. Seus vizinhos sabiam. Sua madrinha sabia. No mercado, todos sabiam. A polícia sabia. O padre sabia. A cozinheira de sua própria casa sabia. E ninguém se dignou a impedir o anunciado. Nem membros do Ministério Público, nem juízes, nem desembargadores, nem ministros. Ninguém. Já assim o era com outras doenças, com outras epidemias regionais. O novo coronavírus expõe apenas em escala geral o que antes se escondia em unidades espalhadas, mas de modo genérico. As 141 mortes já confirmados decorrentes de covid-19 no sistema prisional são irremediáveis. As famílias enlutadas não serão reparadas por notas de pesar, explicações ou condolências. É passado o tempo de o Judiciário reconhecer seu papel de corresponsabilidade para com a crise do sistema carcerário e escolher adotar uma postura de respeito para com a dignidade da pessoa humana, sob pena de continuar a contribuir com um cenário de morte a olhos vistos. Afinal, como bem diz o poeta capixaba, amanhã talvez os fantasmas cobrem as más escolhas. Ou hoje até, talvez. Khalil Vieira Proença Aquim Advogado Criminalista Professor de Direito Penal da Faculdade Inspirar; Mestrando em Teoria e História da Jurisdição na Uninter; Membro do Conselho Estadual da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas - Apacrimi; Ex-presidente da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR (gestão 2016/2018). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E NOTAS: [1] “Crónica de una muerte anunciada”. 11ª Ed. Debols!llo, España, 2012. p. 61. [2] “Crónica de una muerte anunciada”. 11ª Ed. Debols!llo, España, 2012. p. 114. [3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-03/organizacao-mundial-da-saude-declara-pandemia-de-coronavirus [4] ADPF 347 TPI-Ref, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 18/03/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-165 DIVULG 30-06-2020 PUBLIC 01-07-2020 [5] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf [6] ADPF 347 MC, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016. [7] http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/infopen [8] 9.113 casos de tuberculose, 8.523 casos de HIV, 6.920 casos de Sífilis, além de 4.156 casos de outras comorbidades. http://depen.gov.br/DEPEN/depen-lanca-infopen-com-dados-de-dezembro-de-2019 [9] “Crónica de una muerte anunciada”. 11ª Ed. Debols!llo, España, 2012. p. 118. [10] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/07/Monitoramento-Semanal-Covid-19-Info-15.07.20.pdf [11] Autos nº 0641397-55.2020.8.13.0000 e 0738029-46.2020.8.13.0000. [12] RHC nº 129140 / MG [13] Miguel de Cervantes. “El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha”. Segunda Parte, Capítulo XLII. Ed. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1983. Pág. 787. Na tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo: “Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não justiça do que as queixas dos ricos. Procura descobrir a verdade por entre as promessas e dádivas do rico, como por entre os soluços e impotunidades do pobre. Quando se puder atender à equidade, não carregues com todo o rigor da lei no delinquente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso que do compassivo. Se dobrares a vara da justiça, que não seja ao menos com o peso das dádivas, mas sim com o da misericórdia”. [14] https://www.cnj.jus.br/judiciario-registra-baixos-indices-de-reentrada-de-pessoas-soltas-em-razao-da-pandemia/ [15] HC 594360/RJ.
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |