Na semana passada trabalhei nesta coluna uma hipótese de abordagem para as relações entre os meios de comunicação em massa e os processos de criminalização (aqui). Recomendo a leitura prévia daquele texto como base para compreensão deste.
Neste momento, pretendo dar continuidade ao oferecimento de experiências capazes de confirmar a hipótese aventada, ou seja, de que a mídia[1] “funciona com mecanismos aptos a serem percebidos como uma terceira via dos processos de criminalização. Ao exercer, concomitantemente, os dois processos (criminalização primária e secundária), ela pode ser compreendida como gênese de um processo de criminalização terciária. Se quisermos, uma concentração dos dois processos anteriores, criando um terceiro mais efetivo, mais veloz, mais insidioso e mais minucioso”. Atentemos ao processo de criminalização de condutas a serem categorizadas como “terrorismo”. Vejamos se a mídia desempenhou um papel decisivo no processo que originou a Lei 13.260/206 (Lei Antiterrorismo) no Brasil. Vejamos também se encontramos a mídia operando processos de criminalização secundária na aplicação deste dispositivo. Quais os fundamentos para criação de uma lei contra o terrorismo no Brasil? Não se pode afirmar sua necessidade apontando uma lacuna punitiva no que diz respeito às condutas por ela tipificadas. Uma leitura atenta da lei revela que o que lá foi descrito como ato terrorista apenas qualifica a lesão corporal ou o homicídio (ou a ameaça destes). Quando muito, criminaliza ações que podem ou não estar ligadas à prática do terrorismo. Note-se, por exemplo, a tipificação de condutas como “transportar” ou “guardar explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa” (art. 2º, § 1º, I). Não é difícil pensar em exemplos em que o transporte ou guarda de substâncias com mera capacidade de destruição em massa são feitos de forma lícita ou, ainda que ilícita, sem conexão alguma com a preparação de atos terroristas. Quando o artigo 2º da Lei 13.260/16 pretende definir o que será considerado terrorismo, faz uso da concepção finalista da teoria do delito, elencando um elemento subjetivo especial para o dolo, a saber, “a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. As dificuldades em lidar com esses elementos subjetivos são imensas, como bem sabem todos os que atuam na esfera penal. Sua aferição é, na melhor das hipóteses, imprecisa. Provavelmente o ponto em que a lei mais se afasta da prudente técnica legislativa e rompe com um modelo de sistema penal democrático e constitucionalmente coerente é o disposto no art. 5º. Lemos:
A tentativa de punir “atos preparatórios” fere todo um desenvolvimento dogmático penal e estabelece, para todos os efeitos, um real Direito Penal do Inimigo. Isso porque a impossibilidade de prever acontecimentos futuros é algo que precisa ser aceito como limite natural instransponível para o Direito Penal. Nenhuma alegação de necessidade ou eficiência pode contornar o fato de que estamos presos a nossa concepção e vivência linear de tempo. O caráter simbólico de prevenção do direito penal não pode ser levado ao extremo de se punir “atos preparatórios”, porque será sempre humanamente impossível distingui-los empiricamente. Sempre haverá um juízo de periculosidade manipulável e perigosamente arbitrário, suscetível de abusos às mãos das agências estatais de repressão. Esses apontamentos foram feitos para que surja na mente do leitor a seguinte dúvida: por que uma lei com tamanhas deficiências foi aprovada num país como o Brasil, sem qualquer histórico de terrorismo (nos moldes que se tentava combater – como parte da “guerra ao terror” propagada pelos EUA e imposta aos países do Ocidente)? Mesmo nas casas legislativas houve quem se preocupasse com esta questão. Merece menção a fala da Senadora Lídice da Mata, na 4ª reunião da Comissão responsável pela análise da proposta de reforma do Código Penal (os comentários da Senadora se dirigem ao Projeto de Alteração do Código Penal, PL 236/2012, e não à Lei 13.260/2016, mas estão intimamente relacionados – a fala da Senadora diz respeito a inclusão da tipificação do terrorismo no Código Penal):
Note que as preocupações da Senadora se desdobram em questões além da mera futilidade da lei, já destacando seus possíveis efeitos deletérios sobre outras condutas. O ponto que pretendo destacar é: não seria possível a efetivação do processo de criminalização primária, a tipificação penal do terrorismo num país como o Brasil, não fosse o forte apelo midiático que a batalha contra o terrorismo experimentou. As cenas do ataque às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001 foram repetidas à exaustão. Hollywood não demorou para produzir seus longas, aproveitando histórias verídicas ou fantasiosas acerca do fatídico dia. As mensagens de perigo iminente foram reproduzias por autoridades norte americanas ad nauseam. O apelo aos países (em especial do Ocidente) para juntarem forças nesta guerra foi anunciada como única alternativa ao risco global, aleatório e apocalíptico do terrorismo. Os efeitos desta “propaganda” logo se fizeram sentir. Não foi apenas o Brasil que experimentou uma nova legislação contra o terrorismo. Esse fenômeno se repetiu em dezenas de países que desejavam demonstrar seu apoio à coligação que efetivamente enviava soldados aos “campos de batalha”. Resumindo: o processo de criação da Lei 13.260/2016 parece se enquadrar sem dificuldades na hipótese de que a mídia coloca em movimento ou atua como condição de possibilidade para que determinadas condutas sejam criminalizadas ou para que leis penais sejam criadas com o intuito de asseverar as penas sobre condutas já tipificadas. Indo adiante, seria possível perceber também, no breve histórico da “preocupação” política do Brasil com atos terroristas, os efeitos da mídia sobre processos de criminalização secundária? Ficarei com um exemplo que aparenta autorizar uma resposta afirmativa. Durante o período que antecedeu a realização das Olimpíadas no Brasil (2016), o governo produziu e divulgou banners e vídeos alertando sobre possíveis ameaças terroristas. Os banners possuíam a foto de homem vestindo uma jaqueta, com o gorro sobre a cabeça, de punhos fechados. O rosto evidentemente não ficava nítido. Ao lado desta foto haviam os dizeres: “Pessoas suspeitas utilizam roupas, mochilas e bolsas destoantes das circunstâncias e do clima. Agem de forma estranha e demonstram intenso nervosismo”. Uma política criminal (ações preventivas como essas precisam ser consideradas parte da política criminal) que pretenda se pautar por esse nível de “inteligência operacional” esta fadada ao fracasso. Pior do que isso, conforme diversas manifestações, mesmo de pessoas provenientes das camadas mais privilegiadas da sociedade, a descrição, com ênfase em itens de vestuário e critérios como “estranheza” e “nervosismo”, abarca um número gigantesco de jovens em suas ações corriqueiras. O que se deve notar é que esse tipo de informação, veiculada através dos meios de comunicação em massa, legitima a conduta das agências de repressão em ações de vigilância e controle populacional, podendo fundamentar abusos e violências no atendimento destas medidas preventivas. O fato é que esta ingerência só é aceita, em pleno século XXI e sob o regramento de um Estado Democrático de Direito porque o medo é implantado, mantido em níveis elevados e, quando necessário, reforçado através dos meios de comunicação. Assim, cabe afirmar que a mídia atuou, em relação a criminalização do terrorismo, como agente principal para operacionalizar também processos de criminalização secundária, criando no imaginário da população a figura de um “terrorista”, a imagem do “inimigo público” capaz de causar o apocalipse[3]. Por ora, cabe uma conclusão e um lembrete. Primeiro, concluo com a afirmação de que o estudo da gênese da Lei Antiterrorismo no Brasil e sua “aplicação” (com as medidas preventivas relacionadas) parecem se enquadrar na hipótese de que a mídia cria processos de criminalização. Ressalte-se: não apenas os reforça, mas age como condição de possibilidade e meio de efetivação destes. Opera como uma terceira via. Segundo, para que não se confundam as coisas: estou plenamente ciente dos sérios danos que o terrorismo causa, ameaçando até mesmo nossa completa existência. Não pretendo, com as afirmações aqui expostas, defender uma atitude indiferente ou até de complacência em relação a essas formas de violência. Acredito sinceramente que se trata de problema complexo, sério, merecedor da articulação de uma série de medidas aptas a reduzir essa ameaça. O que não acredito é que o direito penal, com os instrumentos que possui e seu problemático uso seletivo, possam oferecer uma saída minimamente segura para o problema. Paulo Roberto Incott Jr Advogado Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABACRIMI Referências: [1] Com fins didáticos o termo mídia tem sido usado como sinônimo de meios de comunicação em massa [2] BRASIL. Projeto de Lei do Senado, nº 236/2012 (Novo Código Penal). Reforma do Código Penal Brasileiro. 09/07/2012. Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404>. Acesso em: 14/10/2016. [3] Num outro momento pretendo escrever sobre os resultados fáticos observados, como a operação Hashtag da PF. [4] CALLEGARI, André Luiz; LINHARES, Raul Marques; LIRA, Cláudio Rogério Sousa; MELIÁ, Manuel Cancio; REGHELIN, Elisangela Melo. O crime de terrorismo: reflexões críticas e comentários à Lei de Terrorismo - Lei nº 13.260/2016. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016 Comments are closed.
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