Carla Tortato e Priscila Renata Dias Ramos Macauba Dias no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Sobre os filmes, primeiro se menciona o filme norte-americano “A Espera de um Milagre”, baseado no caso real George Stinney Jr., dirigido por Frank Darabontem, em 1999, o qual buscou demonstrar a realidade que choca, frente às falhas que se sobressaem quando há um ato criminoso bárbaro pré-julgado sob aspectos estigmatizantes sociais enraizados, feito dogmas, no sistema social''. Por Carla Tortato e Priscila Renata Dias Ramos Macauba Dias De um lado a arte cinematográfica que encanta seus telespectadores por ser capaz de tocar tão profundamente “o Outro” (Dussel, 1995), por outro lado uma lamentável realidade que se colide diariamente com as garantias e direitos fundamentais do indivíduo no processo penal: a prisão de pessoas inocentes.
A presente abordagem crítica pretende demonstrar que na atualidade à cinematografia têm se aperfeiçoado em ser um espaço para evidenciar a realidade das classes vulneráveis frente ao Estado, enquanto sujeito de poder, o que permite uma análise crítica dos filmes “O Milagre da Cela Sete” e “A Espera de um Milagre” sob a ótica do instituto jurídico das prisões cautelares no Brasil. Ambos os filmes possuem narrativas diferentes, porém com algumas semelhanças: a estigmatização do sujeito que supostamente comete o crime por questões de obviedades fáticas e a “famosa” a presunção de periculosidade, na qual leia-se presunção sem fundamento científico do Direito. Além disso, os filmes ao utilizarem a denominação “milagre” demonstram que quando se trata de alguém que em situação de vulnerabilidade social é preso preventivamente, possui por muitas vezes, só a esperança de “um verdadeiro milagre” para conseguir comprovar sua inocência para ser libertado, ou seja, na medida em que ele deve “provar” sua inocência, esquece-se absolutamente do princípio in dubio pro reo. Uma linha investigativa [1] não esgotada de possibilidades de identificação de autoria e materialidade do delito pode macular a originalidade da cognição do julgador, ou seja, o que se produz na investigação pode produzir graves consequências a pessoa, as quais podem se estender por todo trâmite processual. Nesse sentido, Schunemann (SCHUNEMANN, p.37-39) destaca o chamado efeito de inercia ou perseverança: quando o juiz não valoriza de maneira estritamente neutra o processo, mas sim de forma assimétrica, no sentido da hipótese da acusação. Assim, é a confirmação da hipótese que é realizada de forma inconsciente pelo magistrado, uma vez que possuiu sua originalidade da cognição contaminada por um elemento investigativo que não sofreu o contraditório, principalmente no que diz respeito aos registros testemunhais. (SCHUNEMANN, p.37-39). Sobre os filmes, primeiro se menciona o filme norte-americano “A Espera de um Milagre”, baseado no caso real George Stinney Jr., dirigido por Frank Darabontem, em 1999, o qual buscou demonstrar a realidade que choca, frente às falhas que se sobressaem quando há um ato criminoso bárbaro pré-julgado sob aspectos estigmatizantes sociais enraizados, feito dogmas, no sistema social. Tudo acontece na cena em que duas crianças brancas são assassinadas e logo após o ato criminoso, John Coffey interpretado pelo ator americano Michael Clarke Duncan, é encontrado com as meninas, ora vítimas de um crime brutal, nos braços. Momento em que estava nitidamente abalado pelo fato ocorrido e ainda tentava reanimar as crianças, porém é preso em suposto flagrante delito de homicídio. Entre tantas coisas surpreendentes no filme, uma delas é que John é levado sob custódia pela polícia logo após o ato criminoso contra as vítimas, e isso possivelmente é o que fez com que os sujeitos que o prenderam tenham presumido sua culpa: se ele estava lá, ele foi o autor do crime! Sob a perspectiva do que é disposto na lei penal brasileira, pode se entender que a prisão cautelar, pautada em uma série de princípios que a legitima, serve para assegurar não somente o que se tem como premissa, que é resguardar o momento investigativo, mas também avaliar o grau de perigo que o sujeito preso pode causar a sociedade tendo como escopo o princípio da presunção de periculosidade se foi encontrado com objetos do crime. Neste raciocínio, o filme passa a elucidar com nitidez a ineficácia de muita coisa do sistema criminal, principalmente, da prisão cautelar, pois na cena em que é pré-julgado por sua realidade física estigmatizada e é levado imediatamente sob custódia, nota-se naquele momento que John se encontrava visivelmente consternado por compreender sua vulnerabilidade social, enquanto o verdadeiro autor do crime estava em gozo de sua plena liberdade. Importante distinguir que a dor traumática vivida por John se constituiu não na injusta prisão, mas na cena em que visualiza as meninas mortas e em seguida suja suas mãos de sangue quando possivelmente estava tentando reverter a situação delas. O filme parece querer transmitir a mensagem de que, na concepção de John, a prisão é somente a consequência do ato de tentar fazer o bem, no entanto não foi esse o entendimento do Estado ao lhe encontrar. Uma vez que, na realidade da lei penal pátria possui o entendimento assentado no art. 301 do Código de Processo Penal que à voz de prisão em situação de flagrante poderá ser dada por “qualquer do povo”. Ao estender o referido dispositivo ao que é proposto na ficção em análise, é demonstrado que sem hesitar os sujeitos deram voz de prisão e sem resistir John foi levado, consequentemente condenado, tempos depois, a pena de morte. As prisões, em ambos os filmes, se deram como uma equação de lógica: os sujeitos foram encontrados com as vítimas, logo foram considerados culpados pelos crimes. Pronto, não se aprofunda a investigação, a qual se dá por satisfeita e assim segue o sistema de justiça criminal, que também se deu por satisfeito. Muitas vezes, para a “Justiça” é preciso achar um culpado para atender aos clamores públicos, que pode se satisfazer no óbvio, assim se deixa de aprofundar a investigação ao se contentar com o primeiro “culpado” que aparece, tal qual uma questão de lógica. E a lógica é tudo que o direito não é e não pode ser, uma vez que cada caso possui a sua “extrema” singularidade. Por isso se questiona para a sociedade qual é o erro “mais” suportável: a absolvição de um culpado ou a condenação de um inocente? (Abellán apud Teles, 2020, p. 124). Diante do sistema atual de justiça criminal, no qual a prisão em flagrante se converte em prisão preventiva, a qual atende diariamente o “clamor social”, ou o “risco de ordem pública”, cujos conceitos são infinitamente vagos e obsoletos em prol de uma suposta ordem democrática, parece que mais vale a superação do erro de condenar um inocente do que absolver um culpado para as necessidades momentâneas da sociedade. (Guerra apud Teles, 2020, p. 125). A detenção cautelar de um sujeito é prisão que por consequência estigmatiza, assim como todo o processo penal. Nesta ótica André Peixoto de Souza menciona o entendimento de Michel Foucault sobre as consequências do aprisionamento: Após uma original digressão sobre técnicas penitenciárias e constituição do homem delinquente, Foucault (2014) apresenta críticas contundentes ao sistema quando aduz que as prisões não diminuem a taxa de criminalidade, provocam reincidência, não deixam de fabricar delinquentes, perduram corrupção e medo de todos os envolvidos, favorecem a organização de uma “classe” de delinquentes por meio da solidariedade, da hierarquia e da cumplicidade, em suma, fabricam criminosos”. (PEIXOTO DE SOUZA, CORTELINE SCHERER. 2020. Pg. 154). Com a sóbria interpretação exposta, é possível compreender que a detenção cautelar, na condição de prisão e na forma que é posta pelo atual sistema, degrada a constituição do sujeito em sua estrutura subjetiva e objetiva, ou seja, tanto psiquicamente como socialmente, além das drásticas condições do cárcere. No filme “O Milagre da Cela Sete” dirigido por Mehmet Ada Öztekin lançado em 2019, sob a mesma perspectiva do filme “A Espera de um Milagre”, é evidenciado que ambos os sujeitos presos são claramente pessoas vista pela sociedade como sujeitos pormenorizados por sua condição, seja ela física social ou psíquica, como no caso do personagem “Memo” vivido pelo ator Aras Bulutİynemli em “O Milagre da Cela Sete”. O personagem é portador de doença mental, e tem uma filha que sempre fez questão de cuidar e levar a escola. O ponto ápice do filme é na cena em que, ao se ver brincando com uma amiga da filha, no caminho de grandes rochas, percebe o perigo tentando evitá-lo, porém a menina cai na água, bate a cabeça e entra em óbito. Imediatamente “Memo” corre para salvá-la pegando-a nos braços, porém ao ser encontrado com a menina é pré-julgado e imediatamente contido, assim, levado sob custódia sob a “lógica” de que ele era o assassino da criança. Sem entender, absolutamente, nada Memo sofre todos os percalços da prisão em flagrante, pois a menina era filha de um comandante, o que agravou a situação de “Memo”. No cárcere, Memo é brutalmente agredido. Assim como no primeiro filme analisado, o segundo também evidência as consequências da prisão em flagrante, uma vez que sem ter conhecimento profundo dos fatos alguém é posto sob custódia. Assim, o sujeito só pelo fato de ter sido preso sob flagrante, já foi pré-julgado e possivelmente será condenado, salvo se provar sua inocência, “graças” ao “fantasma” do princípio do in dubio pro reo. Sob a luz desse entendimento, pode-se compreender toda a fragilidade da prisão em flagrante, pois uma vez que, o art. 302, III do CPP demonstra que pela situação de flagrante pode ser presumida autoria tão somente por que o sujeito detinha elementos do fato criminoso, resta evidente que tal entendimento diverge diretamente com o princípio da presunção de inocência previsto no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988. Portanto, da ficção para a realidade penal brasileira a crítica se consiste em, como pode se presumir culpado levando preso, alguém que constitucionalmente é presumido inocente. É claro que o presente artigo não pretende afirmar que a prisão em flagrante deveria ser banida do ordenamento jurídico, porém a crítica recai no modo que ele é utilizado como mecanismo de segregação cautelar sem o necessário fundamento e respeito aos normas de direitos e garantias constitucionais em conexão, absoluta, com um arcabouço probatório idôneo e seguro para fins de justificar uma segregação da liberdade no atual sistema carcerário. Assim, no campo da arte cinematográfica, não equidistante da realidade humana, demonstra-se uma ferramenta de combate a prepotente presunção jurídica de “saber” quando um o Outro (Dussel, 1995) ser humano é perigoso ou não, ao expor essas narrativas de julgamentos que além de jurídicos, são sociais e morais. Carla Tortato Mestre em Teoria e História da Jurisdição (UNINTER). Especialista em Direito Penal e Processual Penal (ABDCONST). Advogada e Professora. Priscila Renata Dias Ramos Macauba Dias Acadêmica de Direito pelo Centro Universitário Internacional UNINTER. Integrante do grupo de pesquisa “Consequências psicológicas do encarceramento: reconhecimento e ressocialização” cadastrado no CNPq. REFERÊNCIAS. BLOCH, E. O Princípio da esperança: vol. I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30 jun. 2020. BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del3689.htm> . Acesso em: 30 jun 2020. DUSSEL, E. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. 660 p ____________. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus Editora, 1995. 160 p. FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no Processo Penal: uma proposta interdisciplinar de valoração. 2ªed. Florianópolis: Emais, 2020. Lopes Junior, Aury. Direito processual penal. 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. Souza, André Peixoto de, Daniel Corteline Scherer. Psicologia Jurídica. Curitiba: Intersaberes, 2020. (Série Estudos Jurídicos). NOTAS: [1]Neste texto não se tem a pretensão de criticar a atuação policial, mas sim todo um sistema criminal que sofre de graves patologias, que consequentemente e muitas vezes, não viabiliza um funcionamento ideal das ferramentas que possui.
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