Artigo de Ane Caroline dos Santos Silva e Hellen Fernanda de Castro na coluna do estudante, vale a leitura! ''Ao se analisar o enredo cinematográfico apresentado anteriormente, notório é que o crime de estupro é situação determinante e, talvez, chave para as cenas que o precedem, uma vez que em decorrência desta atrocidade uma das garotas acabou por engravidar, da qual mais cenas aterrorizantes se seguiram até o fim desta triste história''. Por Ane Caroline dos Santos Silva e Hellen Fernanda de Castro DO FILME “O SEQUESTRO DE CLEVELAND”
O filme “O Sequestro de Cleveland” retrata Michelle, mãe de um garoto de 2 anos, que aceita carona para ir à audiência de custódia, do pai de sua amiga, chamado Ariel Castro, o qual aproveitou do desespero da menina que estava atrasada para tal audiência e a levou até sua casa, onde a prende e assim iniciam-se as torturas, estupros, chantagens emocionais constantes, além de agressões físicas para provocar intencionalmente os 5 abortos futuros, fruto de constante violência sexual. O autor alegava que não queria ter filhos com a vítima, pois a mesma era “feia”. Em seu livro Libertada, Michelle relata tal situação[1]. No dia em que desapareci em 2002, pouca gente pareceu notar. Eu tinha 21 anos, era uma jovem mãe que havia parado numa loja de conveniência, uma tarde, para pedir informações. Durante os 11 anos seguintes, fiquei trancafiada no inferno. Michele relata em seu livro que Ariel a levou em um quarto, a jogou num colchão e arrancou sua roupa. Por uma hora ele a estuprou e depois por várias vezes repetiu o ato.[2] Após um ano do sequestro de Michelle, mais duas vítimas chegam ao local, agora as menores Amanda Berry de 16 anos e, em seguida, Gina, de 14 anos. As garotas, assim como Michelle, sofriam diariamente com as atitudes cruéis de Castro, dentre tais atitudes o estupro. As meninas eram acorrentadas, passavam fome, eram agredidas, além dos ataques sexuais, bem como eram obrigadas a ouvir os gritos, durante o abuso, uma das outras, como narra o filme. Amanda engravidou, mas sua gravidez seguiu por escolha do sequestrador. Diante do comportamento de Castro, podemos relacionar com a citação de Tripicchio[3] “Criminoso sexual situacional - algumas pessoas sem transtorno psiquiátrico, em situações intensa e continuadamente estressantes, ou que lhes confiram poder absoluto sobre o outro, podem ter dificuldade de controlar impulsos que seriam mantidos adormecidos sem elas. É o caso da vida em encarceramento, das guerras onde se desfruta de poder absoluto sobre os prisioneiros”. Em 2006, o bebê de Amanda nasceu em cativeiro e o parto foi realizado por Michelle sob ameaça de morte, por parte de Castro, caso Amanda perdesse o bebê. A filha de Amanda permaneceu até os 6 anos em cárcere e desconhecia o mundo fora dessa situação. O terror termina em 2013, quando por um descuido de Ariel a porta fica aberta e, Amanda, percebendo o erro, começa a gritar por ajuda. Como o caso era conhecido da mídia, Amanda logo foi reconhecida, como narra o filme.
Ainda, a Lei 8.072/90 apresenta um rol taxativo de crimes tidos como hediondos, onde em seu art. 1°, inc. V apresenta o estupro como um destes casos, bem como em seu inc. VI nos traz o estupro de vulnerável. Ocorre que, de nada vale explanar sobre tais fatos se não se explicar seu significado.
Para Cezar Roberto Bitencourt, o título VI do referido código se apresenta como um avanço, dado o fato de que este era tratado como “crimes contra os costumes”. Para o autor, tal alteração se deu pelo motivo de que houve uma maior atenção para a dignidade, a liberdade e a personalidade do ser humano, abandonando conceitos retrógrados, como o que considerava o estupro a união sexual ilícita com uma mulher não casada.[4] Ainda, importante é destacar alguns pontos do tipo penal supramencionado. O bem jurídico tutelado por este artigo é justamente a liberdade sexual da mulher e do homem, assim como “o direito de exercerem a sua sexualidade, ou seja, a faculdade que ambos têm de escolher livremente seus parceiros sexuais, podendo recusar inclusive o próprio cônjuge, se assim o desejarem.”[5] O sujeito ativo, em tempos remotos, era tido como somente o representante do sexo masculino, entretanto, a partir da lei n. 12.015/2009, o delito “passou a ser um crime comum, podendo ser praticado ou sofrido, indistintamente, por homem ou mulher.”[6] Ademais, o sujeito passivo deste crime também pode ser homem ou mulher. Sobre seus elementos objetivos, Renato Marcão discorre que o constrangimento é representando como um forçar, um impor, ou seja, “quem constrange atua de modo contrário à vontade do outro”, sendo assim, o constrangimento deve ser direcionado com o fito de ter conjunção carnal com a vítima, entretanto, mesmo se não houver a prática do ato sexual com a mesma, está consumado o crime, posto que o estupro consiste, além da conjunção carnal, em qualquer outro ato libidinoso, o simples início de qualquer prática de natureza sexual com a vítima já representará a consumação do delito, mesmo que a finalidade seja a cópula vaginal e que a execução seja interrompida nos primeiros atos lascivos.[7] Em sendo assim, pode-se concluir que o delito de estupro possui elementares das quais devem ser observadas, como a violência (física) ou a grave ameaça (moral), bem como que não se faz necessário a conjunção carnal, bastando que haja o constrangimento da vitima para o fim da conjunção ou outros atos libidinosos para que se tenha a consumação.
Este tipo penal possui como bem jurídico tutelado a dignidade sexual do menor de quatorze anos, bem como “do enfermo ou deficiente mental que não tenha capacidade de discernir a prática do ato sexual”[8], ainda, possui como sujeito ativo homem ou mulher, bem como passivo: “qualquer pessoa que apresente a qualidade ou condição especial de vulnerabilidade exigida pelo tipo penal, seja pela menoridade de quatorze anos, seja em razão de tratar-se de alguém que, por enfermidade ou deficiência mental.”[9] Ademais, importante é que se faça presente que a pena é aumentada de metade se o agente que pratica o ato contra o sujeito for “ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”.[10]
são insuscetíveis de clemência soberana e fiança (art. 2 o , I e II), submetendo-se a prazos mais dilatados para progressão (40% e 60% da pena, conforme seja o sentenciado primário ou reincidente) e livramento condicional (mais de 2/3 da pena, salvo se reincidente específico em tais delitos).[11] Vale acrescentar, ainda, que aqueles delitos que resultem em morte possuem uma porcentagem ainda maior quando se fala em prazo para progressão, sendo de 50% a 70% da pena.[12] Por fim, importante é que se faça presente o apontamento de que os delitos de estupro, bem como o de estupro de vulnerável constituem o rol taxativo de crimes hediondos, sendo assim, sua progressão possui a referida diferenciação.
Importante, também, apontar que o delito de estupro tipificado no art. 213 tem ligação com o filme, pois se faz presente nas cenas das personagens Michelle e Amanda, bem como o estupro de vulnerável é nos apresentado pelas cenas de estupro da menor de 14 anos, Gina. Ainda, importante se mencionar que ambos os crimes, seja ele estupro, seja ele estupro de vulnerável, estão taxados como hediondos na Lei n. 8.072/90. Fato é que, a película se mostra como uma janela para o cotidiano das mulheres, uma vez que, em qualquer lugar do mundo, diariamente mulheres são vítimas de tais abusos, algumas mortas, esquecidas ao relento como se objeto fossem, mulheres que tiveram sua dignidade rasgada e jogada ao vento para o fim de que o machismo fosse reafirmado, bem como que o poder sobre o feminino se fizesse presente – como se estende durante séculos, milênios. Essa inferiorização das mulheres tem raízes fortes no patriarcado, ou seja, “um sistema que justifica a dominação sobre a base de uma suposta inferioridade biológica das mulheres, que tem origem na família, cujo comando por milênios foi exercido pelo pai, e que se projeta em toda a ordem social.”[13] Infelizmente, em decorrência desta necessidade de reafirmação do poder, diversos tipos de violência se fazem presentes no dia-a-dia de centenas de mulheres (ainda tão jovens, como é o caso de Gina) da qual o único e singelo desejo é a liberdade, seja das amarras do patriarcado, seja das dores que sofrem por serem, apenas, mulheres. Conclui-se, portanto, que o filme, por mais forte que seja, acaba nos tocante por retratar a realidade, fatos que acontecem todos os dias, ou seja, mulheres são mortas, espancadas e abusadas sob nossos olhos, pelo simples fato de terem nascido assim. Incontroverso que diariamente notifica-se a violência sexual sofrida por mulheres e esta preocupação rotineira está em confronto com o desejo de viver uma vida sem violências. No caso em questão, três jovens tiveram uma década de suas vidas roubadas pelo desejo incessante de um criminoso, o qual as mantinha em cárcere para satisfazer seus desejos. Além disso, os crimes acometidos por Ariel Castro representam tamanha atrocidade, ao ponto de estarem presente no rol taxativo de crimes tidos como hediondos. Por fim, ressalta-se a importância de políticas públicas e de conscientização para coibir violências e aumentar a proteção das representantes do sexo feminino, uma vez que, infelizmente, ao estarem presentes em um meio extremamente machista e patriarcal, colocam suas vidas em risco todos os dias ao sair de casa. Ane Caroline dos Santos Silva Acadêmica de Direito (UNINTER); E-mail: [email protected] Hellen Fernanda de Castro Acadêmica de Direito (UNINTER); E-mail: [email protected] REFERNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BBC News. Vítima de sequestrador de Ohio dá entrevista e diz ter sido amarrada como peixe. 2013. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/11/131105_entrevista_michelle_knight_cbs_rw>. Acesso em: 04 de novembro de 2020. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. V.4: parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé publica. 8 ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2014. JESUS, Damásio de. Parte geral. Direito penal vol. 1. 37 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 299. KNIGHT, Michelle. Libertada: Memórias do Cativeiro de Cleveland. Uma década de escuridão, uma vida recuperada. Tradução Michele Vartuli. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. Disponível em: < file:///C:/Users/PC/Downloads/Libertada%20-%20Knight%20Michelle.pdf>. Acesso em: 04 de novembro de 2020. MARCÃO, Renato. GENTIL, Plínio. Crimes contra a dignidade sexual. 3 ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. NEWCOMB, Alissa. PEARLE, Lauren. JAFFE, Matthew. PEREZ, Alex. abc News (2013). Cleveland Kidnapper Ariel Castro: “I am not a monster”. Disponível em:<https://abcnews.go.com/US/cleveland-kidnapper-ariel-castro-monster/story?id=19833953>. Acesso em: 31 de março de 2020. TRIPICCHIO, Adalberto. Sexologia Forense. Disponível em: <https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/sexologia-forense/4243 >. Acesso em: 04 de novembro de 2020. Libertada. Michelle Knight. Disponível em: <http://lelivros.love/book/baixar-livro-libertada-michelle-knight-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/>. Acesso em: 10 de novembro de 2020. NOTAS: [1] KNIGHT, Michelle. Libertada: Memórias do Cativeiro de Cleveland. Uma década de escuridão, uma vida recuperada. Tradução Michele Vartuli. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p.12. Disponível em: <file:///C:/Users/PC/Downloads/Libertada%20-%20Knight%20Michelle.pdf>. Acesso em: 04 de novembro de 2020. [2] Idem. [3] TRIPICCHIO, Adalberto. Sexologia Forense. Disponível em: <https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/sexologia-forense/4243 > Acesso em: 04 de novembro de 2020. [4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 4: parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 8 ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 39 [5] Ibidem. 40 [6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 4: parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 8 ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 41. [7] MARCÃO, Renato. GENTIL, Plínio. Crimes contra a dignidade sexual. 3 ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 36. [8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 4: parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 8 ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 81. [9] Ibidem. 82. [10] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 4: parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 8 ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 82. [11] JESUS, Damásio de. Parte geral. Direito penal vol. 1. 37 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 299. [12] Idem. [13] MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 84.
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