ANÁLISE JURÍDICA DO PROJETO DE LEI N° 4192/2015: CRIME DE PERJÚRIO E SUA VIABILIDADE CONSTITUCIONAL7/19/2024 Artigo de Ane Caroline dos Santos Silva, Izabele Vitoria Santos e Stéfanie Santos Prosdócimo no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Neste sentido, o réu não está obrigado a dizer a verdade, assegurado este direito constitucionalmente (art. 5º, LXIII, da Constituição Federal), aplicando-se o princípio nemo tenetur se detegere, ou seja, a vedação da autoincriminação. Princípio este já pacificado na Suprema Corte3. Noutro giro, desde os últimos tempos, há uma tendência que tem por objeto a restrição do exercício da autodefesa. Nesse sentido, não pune-se o perjúrio para evitar que o sujeito se autoincrimine, em outros termos, que o sujeito tenha que dizer a verdade, sendo que esta “confirmação dos fatos”, diga-se de passagem, irá incriminá- lo e possivelmente servir como base para uma possível condenação criminal''. Por Ane Caroline dos Santos Silva, Izabele Vitoria Santos e Stéfanie Santos Prosdócimo os Estados Unidos, o acusado – assim como uma testemunha – presta o compromisso de dizer a verdade, se ele mentir, comete crime de perjúrio. No sistema brasileiro, o acusado tem o “direito de mentir”, sem que isso lhe acarrete qualquer prejuízo, conforme garantido pela Constituição da República. Isso significa que, descompromissado com a verdade, é isento de qualquer prejuízo legal[1].
Em breve contexto histórico, a lei penal romana considerava o perjúrio como um falso juramento, uma vez que era percebido como uma ofensa aos deuses, que eram os responsáveis por punir. Por isso, no Império Romano, as pessoas começaram a jurar em nome dos deuses em processos judiciais, e sua violação passou a ser punida fisicamente. O mesmo foi observado durante a Idade Média, onde mentir e invocar o nome de Deus em vão era considerado blasfêmia [2]. Atualmente, o perjúrio não é punido uniformemente em todos os países. No Brasil, por exemplo, há a tipificação do crime de falso testemunho ou falsa perícia, segundo o artigo 342 do Código Penal, que prevê sanções para testemunhas, peritos, contadores, tradutores ou intérpretes, que afirmem falsamente, neguem a verdade ou se calem diante dela. Ao cotejar esse dispositivo legal, observa-se que não menciona especificamente o acusado ou o investigado, e não é possível fazer uma analogia in malam partem. Neste sentido, o réu não está obrigado a dizer a verdade, assegurado este direito constitucionalmente (art. 5º, LXIII, da Constituição Federal), aplicando-se o princípio nemo tenetur se detegere, ou seja, a vedação da autoincriminação. Princípio este já pacificado na Suprema Corte3. Noutro giro, desde os últimos tempos, há uma tendência que tem por objeto a restrição do exercício da autodefesa. Nesse sentido, não pune-se o perjúrio para evitar que o sujeito se autoincrimine, em outros termos, que o sujeito tenha que dizer a verdade, sendo que esta “confirmação dos fatos”, diga-se de passagem, irá incriminá-lo e possivelmente servir como base para uma possível condenação criminal[4.] Destaca-se, neste viés, o entendimento de que o réu e o ofendido, sujeitos da relação jurídico-material, possuem interesses diversos, um sofre com a ação delituosa e o outro pratica a ação, assim, ambos narram os fatos a sua maneira[5]. Importante sublinhar que o sistema processual penal brasileiro é o acusatório, conforme expressamente disposto no artigo 3º-A do Código de Processo Penal, in verbis: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.” Segundo este sistema processual penal, o réu é um sujeito de direitos, estes conferidos pela Constituição Federal de 1988 e legislação infraconstitucional, tendo por finalidade protegê-lo contra arbitrariedades e excessos por parte do Estado. Neste prisma, merece destaque o princípio da ampla defesa, que possui escopo no artigo 5º, inciso LV, da Carta Magna. Consoante este princípio, há duas vertentes, a primeira é a defesa técnica, esta é feita por profissional habilitado, e a segunda é a autodefesa, exercida diretamente pelo acusado[6.] Em via diversa, tem-se a Súmula nº 522 do Superior Tribunal de Justiça, que prevê: “A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa.” Depreende-se do entendimento sumulado que se eventualmente o sujeito atribuir-se falsa identidade diante de uma autoridade policial, é típica a conduta, mesmo em circunstâncias de alegada autodefesa. A título de exemplo, supõe-se que em determinada abordagem policial, um indivíduo identificou-se com dados que não os seus, com a finalidade de ocultar seus antecedentes, eis que havia um mandado de prisão em aberto em seu desfavor. Na situação hipotética, restou configurado o delito de falsa identidade. Com efeito, cita-se o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – TJPR: APELAÇÃO CRIMINAL. ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. RÉU SE PASSOU POR OUTRA PESSOA NO MOMENTO DA ABORDAGEM POLICIAL A FIM DE OCULTAR SEUS MAUS ANTECEDENTES. NOTÓRIO PREJUÍZO. DOLO ESPECÍFICO EVIDENCIADO. VONTADE LIVRE E CONSCIENTE DE SE ATRIBUIR IDENTIDADE FALSA PARA OBTER VANTAGEM. AUTODEFESA NÃO CARACTERIZADA. CONDUTA QUE OFENDE A FÉ PÚBLICA E O INTERESSE COMUM. TIPICIDADE DA CONDUTA. RECENTES PRECEDENTES. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. Recurso conhecido e desprovido. (TJPR - 4ª Turma Recursal - 0001091-15.2018.8.16.0151 - Santa Izabel do Ivaí - Rel.: JUIZ DE DIREITO DA TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS ALDEMAR STERNADT - J. 17.08.2020, sem destaque no original). Contudo, o Projeto de Lei n° 4192/2015 visou introduzir o delito de perjúrio no ordenamento jurídico brasileiro, com o seguinte texto7: Perjúrio Art. 343-A. Fazer afirmação falsa como investigado ou parte em investigação conduzida por autoridade pública ou em processo judicial ou administrativo: Pena – prisão, de um a três anos. § 1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço se o crime é cometido em investigação criminal ou em processo penal. § 2º O fato deixa de ser punível se, antes do julgamento no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade. A justificativa que foi apresentada é que o ônus de provar a versão acusatória cabe ao órgão acusador, e ao acusado é assegurado o direito de permanecer passivo diante da acusação, todavia, “a mentira, por outro lado, não decorre da passividade do réu, que, ao contrário, assume posição ativa para produzir declaração contrária à verdade”[8]. Verifica-se que, como última ação legislativa, procedeu-se ao arquivamento do Projeto de Lei em exame, com fundamento no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. O acusado, portanto, não tem o compromisso de dizer a verdade, direito assegurado pelo ordenamento jurídico pátrio, de forma que não será imputado o crime de perjúrio. Por fim, conclui-se que o Projeto de Lei em questão é inconstitucional, uma vez que claramente viola o direito ao silêncio e o princípio da não autoincriminação. NOTAS: 1 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 10th edição. Editora Saraiva, 2019. Página 770. Acesso em: 20 abr. de 2024. 2 BURGOS, Álvaro. La mentira forense: Los Delitos de Perjurio y Falso Testimonio em el Código Penal de Costa Rica. Revista de Ciencias Júridicas n° 121 (165-186) enero-abril 2010. Disponível em: <https://revistas.ucr.ac.cr/index.php/juridicas/article/download/9788/9234>. Acesso em: 20 abr. de 2024. 3 MENDES, Fernanda Cristina Sena Sampaio. A Tipificação do Crime de Perjúrio no Sistema Jurídico Brasileiro. 2018. Disponível em <https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/12861>. 4 TALON, Evinis. PERJÚRIO. Disponível em: <https://youtu.be/vhfnIcCv4jY?si=xHF2 hJ2Nagz4kB>. Acesso em: 22 abr. de 2024. 5 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 541 . 6 GOMES, Fernanda Maria Alves. O exercício da autodefesa do acusado através da prática de crimes. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/253646/o-exercicio-da-autodefesa-do- acusado-atraves-da-pratica-de-crimes>. Acesso em: 22 abr. de 2024. 7 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 4192/2015. Altera o Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal – para prever o crime de perjúrio. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1426538&filename PL%204192/2015>. Acesso em: 20 abr. de 2024. 8 Ibidem. aprovação deste projeto imporia ao acusado apenas duas opções: permanecer em silêncio ou falar a verdade, o que restringiria significativamente o exercício da autodefesa. ANE CAROLINE DOS SANTOS SILVA Advogada. Graduada em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2008). Graduada em Direito pelo Centro Universitário Internacional UNINTER (2022). Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. E-mail: [email protected]. IZABELE VITORIA SANTOS Estagiária no Ministério Público do Estado do Paraná. Graduanda em Direito, 7º período, Centro Universitário UNINTER. E-mail: [email protected]. STÉFANIE SANTOS PROSDÓCIMO Advogada. Graduada em Direito pelo Centro Universitário UNINTER. Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário UNINTER. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário UNINTER. E-mail: [email protected]. REFERÊNCIAS: BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 10th edição. Editora Saraiva, 2019. Página 770. Acesso em: 20 abr. de 2024. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 4192/2015. Altera o Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal – para prever o crime de perjúrio. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1426538 &filename PL%204192/2015>. Acesso em: 20 abr. de 2024. BURGOS, Álvaro. La mentira forense: Los Delitos de Perjurio y Falso Testimonio em el Código Penal de Costa Rica. Revista de Ciencias Júridicas n° 121 (165-186) enero-abril 2010. Disponível em: <https://revistas.ucr.ac.cr/index.php/juridicas/article/download/9788/9234>. Acesso em: 20 abr. de 2024. GOMES, Fernanda Maria Alves. O exercício da autodefesa do acusado através da prática de crimes. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/253646/o- exercicio-da-autodefesa-do-acusado-atraves-da-pratica-de-crimes>. Acesso em: 22 abr. de 2024. MENDES, Fernanda Cristina Sena Sampaio. A Tipificação do Crime de Perjúrio no Sistema Jurídico Brasileiro. 2018. Disponível em <https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/12861>. TALON, Evinis. PERJÚRIO. Disponível em: <https://youtu.be/vhfnIcCv4jY?si=xHF2 hJ2Nagz4kB>. Acesso em: 22 abr. de 2024. TJPR - 4ª Turma Recursal - 0001091-15.2018.8.16.0151 - Santa Izabel do Ivaí - Rel.: JUIZ DE DIREITO DA TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS ALDEMAR STERNADT - J. 17.08.2020. Disponível em: < https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/2100000012451651/Ac%C3%B3rd%C3%A3o -0001091-15.2018.8.16.0151>. Acesso em: 22 abr. de 2024. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 541.
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