Estudar direto penal é algo fascinante. Penetrar a profundidade filosófica, sociológica e jurídica que envolve as categorias e conceitos que estruturam o saber penal, percorrendo sua historicidade e concatenando compreensivelmente seus elementos encanta.
Ocorre, porém, que grande parte do que se desenvolveu e se desenvolve ainda hoje em matéria de direito penal provém de centros bem específicos, distantes do continente sul americano. Obviamente isso não quer dizer que não haja uma produção extensa e de qualidade notável na América Latina. Muito pelo contrário. O problema é que as matrizes do ensino jurídico penal continuam fortemente pautadas pela produção daqueles centros. Basta olhar para os tratados de direito penal que costumam circular no meio acadêmico e reparar para onde apontam as referências bibliográficas. Claramente, esse não é um problema só do direito penal, mas atinente a todo arcabouço de conhecimento jurídico. Ainda assim, os efeitos desta realidade se mostram especialmente sensíveis quando se trata da questão criminal. Isso porque o direito penal precisa ser concebido como um conjunto de saberes voltados à realidade em que se insere, de modo a poder cumprir com um de seus papéis precípuos, qual seja, de contenção do poder punitivo. O objetivo do breve texto que se segue é apontar um exemplo dogmático que permita sustentar o acima afirmado e demonstrar que, tratando-se de direito penal, convém, antes de mais nada, “cuidar do próprio umbigo”. Tenhamos em mente a questão da omissão. Pode parecer, numa análise superficial, que a normatização punitiva (os pressupostos de punibilidade) em torno dos crimes omissivos possui estrutura quase universal ou, ao menos, uniforme em países regidos por um Estado de Democrático de Direito. Afinal, sua conceituação legislativa é bastante sucinta. Tem-se no Código Penal brasileiro que:
Relevância da omissão § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado Despiciendo, neste texto, tratar da diferenciação entre omissão própria e omissão imprópria. Note-se que o dispositivo legal é claro em atribuir relevância penal à omissão quando presentes os requisitos da capacidade e da obrigação de agir. A capacidade, para corrente majoritária, é aferida mediante a análise concreta das possibilidades individuais do autor e das circunstâncias objetivas em que ocorreu a situação de lesão do bem jurídico. Quanto à obrigação de agir para evitar o resultado, o próprio artigo descreve as bases que perfazem este dever. Surgem aqui questões específicas, como a discussão sobre a necessidade de lei em sentido estrito, as formas idôneas para configuração da responsabilidade, a extensão do dever, o âmbito de riscos proibidos e muitas outras. Nesse ponto é que se torna possível discernir a seriedade do ponto comentado incialmente. As questões mencionadas não dizem respeito a mera opção de política criminal, interpretação legislativa ou apreciação jurisprudencial. Se avaliamos com cuidado o que está envolvido na definição da natureza da omissão como equivalente à ação para fins preventivos penais, tendo em conta que o dever de agir precisará ser pautado dentro das condições de possibilidade do meio social em que este dever se insere, perceberemos a sensibilidade com que se precisa contextualizar este elemento. Tornando este ponto mais cristalino: ainda que se queira desenhar a omissão a partir de uma lógica funcionalista do direito penal, tomando a política-criminal ou mesmos fins de prevenção geral negativa como elemento fundante do sistema penal, não será possível afirmar que a obrigatoriedade de agir para evitar o resultado se estrutura de forma idêntica na Alemanha e no Brasil. Isso porque estes países possuem diferenças viscerais no tocante aos papéis sociais desempenhados por diversos atores. Há, na Alemanha, uma homogeneidade significativa, fazendo com que as expectativas comportamentais e normativas sejam muito mais aferíveis e, por isso mesmo, detenham um grau de exigibilidade muito maior de seus cidadãos. Vale dizer: lá será possível uma responsabilização, no tocante a obrigatoriedade de agir para evitar resultados danosos ao bem jurídico, bem mais extensa e difusa do que se poderá concretizar legitimamente no Brasil. Consequentemente, falar em crimes omissivos (principalmente impróprios) na Alemanha, em especial quando o ambiente de análise é o direito penal econômico, o cenário médico-hospitalar ou mesmo o direito ambiental faz muito sentido. Enquanto isso, no Brasil, a tentativa de estabelecimento das mesmas categorias de dever significará uma desproporção no juízo de imputação entre níveis de organização, capacidade de informação, clareza de papéis e outros elementos necessários à configuração do dever de agir. Conforme a lição precisa de Tavares (2012; pp. 48; 67):
Fica claro nos apontamentos de Tavares que a edificação dos deveres de cuidado não se adequa a uma conceituação puramente normativa. Estes são, obrigatoriamente, construídos mediante a valoração de determinadas obrigações, oriundas do meio social em que o agente está inserido. Concluindo esta análise, afirma-se que só poderá ser estudado e compreendido o tipo de injusto de omissão de ação dentro da apreciação das diversas determinantes sociológicas em que a conduta exigida é tipificada. Com isso, quer-se apontar a impropriedade da tentativa de aplicação direta e crua de teorias e “dogmas” (donde falar-se em dogmática penal) consubstanciados em cenários sociais completamente distintos dos nossos. Esta última afirmação vale também para o estudo do direito penal como um todo. Conforme a lição sóbria (que tive a oportunidade de ouvir pessoalmente) do Prof. Rui Dissenha: não faz sentido debruçar-se sobre detalhes mínimos de um direito penal médico ou mesmo de um direito penal econômico enquanto o nosso país possui uma população carcerária formada em sua grande maioria pelo tráfico de drogas, roubo e furto. Não parece razoável também desperdiçar a oportunidade rara, reservada a uma minoria da população brasileira, de cursar a graduação ou até níveis mais elevados de estudo, para gastá-los com pesquisas voltadas unicamente para teorias e problemas que se adequam a uma “realidade penal” bastante distante da nossa, enquanto milhares de brasileiros morrem de fome ou pela falta de saneamento básico. Tratar desta forma o estudo do direito penal, sem o mínimo esforço em fazer dele uma ferramenta voltada a reduzir o cenário caótico de nosso sistema carcerário é, no mínimo, incoerente. Não se quer afirmar com isso que o estudo do direito penal econômico, ambiental ou médico não seja extremamente relevante. Nada disso. Pessoalmente estudo estes temas com afinco e seria hipócrita em defender o contrário. O que se quer afirmar é que não faz sentido conduzir estes estudos para solução de problemas que não guardam nenhuma similaridade com nossa realidade ou sem qualquer preocupação com ela. Se o estudo é conduzido na tentativa de contenção da expansão do poder punitivo ou no oferecimento de balizas seguras ao seu exercício, aí sim, o projeto aventa-se razoável e relevante. Algo diferente disso seria como tentar construir, com recursos dos tributos pagos pelos contribuintes brasileiros, um foguete para ser enviado ao espaço, ou pior, uma solução para dessalgar o mar morto. É melhor cuidarmos primeiro do nosso umbigo ou, como diz um provérbio judaico: “se cada um varrer a calçada de sua própria casa logo a rua ficará limpa”. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Direitos Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIM Advogado Referências: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 6 ed. Curitiba, PR: ICPC: 2014. TAVARES, Juarez. Teoria dos Crimes Omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. Comments are closed.
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