O art. 478 do Código de Processo Penal dispõe sobre as chamadas vedações de referência nos debates perante o Tribunal do Júri. O primeiro pressuposto do qual se deve partir é o de que o rol é taxativo. Em regra, deve prevalecer a amplitude argumentativa ínsita à retórica dos debates no Tribunal do Júri. Em caráter extraordinário, contudo, o legislador pontuou algumas vedações (nem todas no art. 478) que excepcionam a regra geral (outras vedações encontram-se esparsas, a exemplo da referência a documentos que não tenham sido juntados com antecedência de pelo menos três dias úteis, ex vi do art. 479, do CPP, mas isto já é assunto para outra abordagem à parte).
O inciso I (ponto de concentração desta abordagem) veda a referência “à pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado”. Diferentemente do que muitos desavisados têm propalado, o art. 478 do CPP não proíbe que as partes se valham de todo e qualquer “argumento de autoridade”. Em absoluto! É perfeitamente possível, por exemplo, valer-se de um “argumento de autoridade”, para citar a doutrina de algum autor consagrado, afirmando que se trata de um grande pesquisador do assunto. Aliás, é perfeitamente possível que os debatedores aludam a pareceres, arrazoados ou até mesmo a decisões judiciais específicas do caso concreto, como, por exemplo, uma decisão que tenha concedido um habeas corpus. Com efeito, a leitura do dispositivo deixa claro que o que se veda não é “o” argumento de autoridade, em si, mas sim que determinadas decisões sejam utilizadas “como” argumento de autoridade. Fosse proibido “o” argumento de autoridade, nenhum promotor poderia argumentar no júri, pois se trata de uma autoridade investida como tal. O mesmo se diga em relação a algum advogado renomado na área: seu argumento é, sempre, de “autoridade”. Mutatis mutandis, nada impede que as decisões sejam referidas, de forma neutra, sem nenhuma insinuação subjacente, para beneficiar ou prejudicar o acusado, ainda que tal referência tangencie sempre um terreno fronteiriço entre o “argumento” e a referência neutra. Melhor evitar. Qualquer alusão, por mais cuidadosa que seja, pode acabar resvalando numa entonação argumentativa que acabaria nulificante o júri. Por isso mesmo, por via das dúvidas, ad cautelam, recomenda-se evitar pisar nesse terreno sempre tênue, máxime quando se considera que uma mera entonação pode calar fundo no espírito do jurado, que não fundamenta sua decisão. Em última análise, no art. 478, I, do CPP, o legislador está vedando, “como” argumento de autoridade, a referência a três decisões muito específicas: (a) a decisão de pronúncia; (b) qualquer decisão posterior que tenha julgado admissível a acusação; e (c) a decisão que determina o uso de algemas no acusado. Nenhuma outra. Assim, a decisão que, por exemplo, revoga a prisão preventiva não está abrangida na vedação legal, podendo, portanto, ser explorada como arma de argumentação no plenário do júri. Vejamos, pois, uma a uma, as vedações. Primeiro, a pronúncia. Na vetusta formatação do júri, antes da mini-reforma de 2008, não raro, alguns promotores de justiça, à míngua de elementos de argumentação, tinham o mau vezo de distorcer o teor da pronúncia: “senhores jurados, se o acusado fosse inocente, o juiz já o teria absolvido sumariamente. Mas não! Pronunciou. E sabem por quê? Para que os senhores hoje pudessem condená-lo. Maior prova de sua culpa é a pronúncia, é o Poder Judiciário dizendo para os senhores condenarem...”, e blá, blá, blá. Depois, a defesa tinha o (quase impossível) trabalho de explicar que a pronúncia era decisão interlocutória mista não terminativa, que não invadia a desautorizada seara de mérito. O problema é que, neste caso, a diferença entre o focinho de porco e a tomada é de difícil discernimento para um extraneus. Verdade seja dita: o mesmo acontecia em sentido inverso. Não diferente faziam muitos advogados, quando, na pronúncia, o juiz invocava o malsinado brocardo do “in dubio pro societate”: “se lá a dúvida prejudicava o réu, aqui, a mesma dúvida que o mandou a júri, impõe a sua absolvição”, esbravejavam os causídicos. Menos mal. Porque o “in dubio” que bate (indevidamente) em Chico na pronúncia, pode bater em Francisco no Plenário. Seja como for, para evitar essas distorções, o legislador simplesmente vedou qualquer referência à pronúncia. Mais fácil. Ponto para o legislador. Porém – paradoxo supremo! –, ao tempo em que vedou referência à pronúncia, determinou que fossem distribuídas cópias aos jurados no início dos trabalhos. Então, temos a desconcertante situação em que os jurados recebem cópias de um documento, ao qual ninguém pode se referir. O problema não está em vedar a referência à pronúncia, mas sim em distribuir cópias dessa intocável decisão aos jurados, sem que ninguém possa a ela se referir. Durma-se com um barulho desses. Depois, há a vedação de referência às decisões posteriores que confirmam a admissibilidade da acusação. É o caso dos acórdãos que confirmam a pronúncia, seja em sede de tribunais de 2º grau, seja em sede de cortes superiores. Assim, a acusação não pode mais se valer do antigo recurso retórico em que dizia: “um juiz de primeiro grau, três desembargadores no tribunal, outros tantos ministros do STJ, todos eles decidiram que não era o caso de absolver o réu, a despeito de todos os esforços da defesa; a defesa galgou todas as instâncias com suas teses e foram rechaçadas sistematicamente”. Precisamente aqui, há soluções assimétricas para casos similares. Vejamos. Primeira hipótese: réu condenado no júri. A defesa apela. Há manifesta contrariedade à prova dos autos. O Tribunal, à unanimidade, dá provimento à apelação da defesa. Pode a defesa se valer desse acórdão para argumentar, perante o novo júri, que três desembargadores decidiram que a absolvição é a solução correta? No nosso modo de ver sim! Por quê? Porque esse acórdão não “julgou admissível a acusação”. Ao contrário. O acórdão que deu provimento ao apelo da defesa julgou inadmissível a acusação. Então, nada impede que a defesa se valha desse acórdão para argumentar perante o novo júri. Segunda hipótese: réu absolvido no júri. A acusação apela. Há manifesta contrariedade à prova dos autos. O Tribunal, à unanimidade, dá provimento à apelação da acusação. Pode a acusação se valer desse acórdão para argumentar, perante o novo júri, que três desembargadores decidiram que a condenação é a solução correta? Não! Por quê? Ora, óbvio. Porque esse acórdão “julgou admissível a acusação”. Aliás, foi além. Não só julgou admissível a acusação, como disse que a absolvição é “manifestamente contrária à prova dos autos”. Daí, porque existem soluções assimétricas para casos similares: a defesa pode (a acusação não) se valer de acórdãos que dão provimento à apelação por manifesta contrariedade à prova dos autos. Por fim, não pode haver referência à decisão que determina o uso de algemas. A leitura sistemática do dispositivo em tela mostra teleologicamente que se trata de um comando normativo garantista, que não pode ser distorcido em prejuízo do acusado. De igual modo, o inciso II, impede qualquer referência ao silêncio do acusado durante o interrogatório ou a sua falta “em seu prejuízo”. Vale dizer, em seu benefício, nada impede que a defesa possa invocar tais situações. Em suma, as vedações de referência, com indisfarçável vocação garantista, blindam o acusado contra investidas traiçoeiras que grassavam nos plenários, antes da mini-reforma de 2008. Adriano Bretas Advogado Criminal Especialista em Direito Penal e Criminologia Professor de Direito Processual Penal da PUC-PR Comments are closed.
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