Em breves linhas vamos analisar a possibilidade ou não do arquivamento policial sem a anuência do Ministério Público. É tema de grande relevância na atualidade, pois o Supremo Tribunal Federal[1]se manifestou sobre ele este ano e causou um maremoto na cabeça de alguns. Fique bem claro que o assunto não se esgota aqui.
Antes de apresentarmos as decisões da suprema corte, precisamos relembrar o que aprendemos nos bancos acadêmicos sobre o assunto. Será que o que aprendemos está correto? Será que temos que sair um pouco do mundo quadrado-teórico e observarmos o mundo como é? Que tal rever alguns conceitos? O tema inquérito policial é tratado no Código de Processo Penal (CPP) do artigo 4º ao artigo 23, mas a lei não traz um conceito claro, ou melhor, não aponta o que é inquérito, ficando o conceito a cargo da doutrina. Desta feita, doutrina Noberto Avena, que inquérito policial “é um conjunto de diligências realizadas pela autoridade policial para obtenção de elementos que apontem a autoria e comprovem a materialidade das infrações penais investigadas”[2], e com isto “permitindo ao Ministério Público (nos crimes de ação penal pública) e ao ofendido (nos crimes de ação penal privada) o oferecimento da denúncia e da queixa-crime”[3]. Outro conceito importante, que quase virou uma reza, é o da natureza jurídica do inquérito policial. Reproduzimos, quase uníssonos, que tem natureza jurídica de procedimento administrativo. E este conceito será muito importante para o desenrolar desta trama. Afirmamos que o inquérito policial é um procedimento inquisitorial em que não cabe a ampla defesa. Diante das modificações recentes, ainda se sustenta esta natureza? A Lei nº 13.245/2016 altera o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei Federal nº 8.906/94), trazendo em seu inciso XXI o seguinte:
Conforme visto acima, se, na apuração das infrações, o defensor pode, inclusive, apresentar razões e quesitar, tem-se um início de construção no campo da ampla defesa. Então, pergunta-se: o inquérito policial continua com características plenas de inquisitoriedade? Após rever esses conceitos, não podemos esquecer o que diz o CPP sobre o arquivamento dos inquéritos policiais. O artigo 17 do códexprocessual indica que a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito. Consoante o art. 18 do mesmo diploma legal, é a autoridade judicial que ordenará o arquivamento do inquérito por falta de base para a denúncia, e a autoridade policial poderá continuar nas diligências, se obtiver notícias de outras provas. Tem-se, aí, a continuidade do desenvolvimento do caderno investigativo que pode servir de base para a opinião delitiva do titular da ação penal, seja o Ministério Público ou o particular. Corrobora-se este entendimento através do enunciado da Súmula 524[4]do Supremo Tribunal Federal. Diante dessas informações, sintetizaremos o que foi trazido no Inquéritos Policiais nº 4.441/DF e 4.442/DF, o primeiro de relatoria do Ministro Dias Toffoli e o segundo de relatoria do Ministro Roberto Barroso. Importante frisar que ambos os inquéritos foram originários de colaborações premiadas, ou seja, o caderno investigativo teve início através de colaboradores que trouxeram informações que pessoas com prerrogativa de função teriam recebido determinados valores para campanha eleitoral, não declarados à Justiça Eleitoral. Com isso, houve prorrogações para continuidade das investigações, e em um dos casos perdurou por mais de um ano, o que fez com que os relatores determinassem que a autoridade policial enviasse os inquéritos com um mínimo de elementos informativos necessários para formar a opinião delitiva do titular da ação penal. Assim o fizeram, mas apenas se manifestando sobre o declínio de competência em razão do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937, no plenário do Supremo Tribunal Federal, que trouxe o seguinte entendimento, em breves palavras: quando se tratasse de crime cometido antes da assunção do cargo com foro ou sem relação com este cargo, os autos deveriam ser remetidos à primeira instância. E corroborou o Ministério Público Federal com a manifestação da autoridade policial. Em tais julgamentos foi trazido à reflexão o princípio da duração razoável do processo. Segundo Marcelo Novelino, tal princípio é a “simples garantia formal do dever estatal de prestar a justiça não suficiente, sendo necessária uma prestação estatal rápida, efetiva e adequada”[5]. O principio trazido nas duas decisões, nos inquéritos apontados, é o pano de fundo para entender se pode haver ou não o arquivamento do inquérito policial sem anuência do Parquet. Com a Emenda Constitucional nº 45, foi acrescentado no rol dos direitos e garantias fundamentais a duração razoável do processo[6]. Tal principio se estende a procedimentos no âmbito administrativo, ou seja, é aplicável também aos inquéritos policiais. Porém, alguém já deve estar se indagando: e qual seria a duração razoável do processo? Acreditamos que tudo fica no âmbito do caso concreto, conforme os casos citados e julgados na Suprema Corte. Precisamos ter em mente que os inquéritos policiais são prorrogáveis em alguns casos, mas não podem e nem devem ser “eternos”. Inquéritos longos traduzem um flagrante constrangimento ilegal ao investigado em decorrência de os órgãos estatais não conseguirem o mínimo de elementos de informação para deflagrar uma ação penal. Pode, portanto, o Judiciário arquivar autos do caderno investigativo sem a anuência do Ministério Público? Afirmamos que sim, pois aquele estará exercendo sua atividade de supervisão judicial. Este entendimento vem sendo firmado no âmbito da Suprema Corte. Vejamos a decisão do Ministro Alexandre de Morais no Inquérito 4.429:
E, antes que alguém levante a bandeira do artigo 28 do CPP, optamos por colacionar a decisão do Ministro Roberto Barroso ao nosso tema em comento: “PROCESSO PENAL. INQUÉRITO. ENCERRAMENTO DO PRAZO PARA CONCLUSÃO DAS INVESTIGAÇÕES SEM APRESENTAÇÃO DE RELATÓRIO POLICIAL OU MANIFESTAÇÃO CONCLUSIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ARQUIVAMENTO. POSSIBILIDADE. 1. A mera instauração de um Inquérito pode trazer algum tipo de constrangimento às pessoas com foro por prerrogativa de função. Por outro lado, os órgãos de persecução criminal devem ter a possibilidade de realizar as investigações quando verificado um mínimo de elementos indiciários, como é o caso das informações obtidas por meio de acordos de colaboração premiada. Ponderados esses dois interesses, somente se deve afastar de antemão um notícia-crime quando complemente desprovida de plausibilidade. 2. No entanto, isso não significa que os agentes públicos devam suportar indefinidamente o ônus de figurar como objeto de investigação, de modo que a persecução criminal deve observar prazo razoável para sua conclusão. 3. No caso dos autos, encerrado o prazo para conclusão das investigações, e suas sucessivas prorrogações, o Ministério Público, ciente de que deveria apresentar manifestação conclusiva, limitou-se a requerer a remessa dos autos ao Juízo que considera competente. Isso significa dizer que entende não haver nos autos elementos suficientes ao oferecimento da denúncia, sendo o caso, portanto, de arquivamento do inquérito.4. O art. 28 do Código de Processo Penal se limita a impedir que, pedido o arquivamento pelo Ministério Público e confirmado este entendimento no âmbito do próprio Ministério Público, possa o juiz se negar a deferi-lo.No entanto, não obriga o Juiz a só proceder ao arquivamento quando este for expressamente requerido pelo Ministério Público, seja porque cabe ao juiz o controle de legalidade do procedimento de investigação; seja porque o Judiciário, no exercício de suas funções típicas, não se submete à autoridade de quem esteja sob sua jurisdição 5. Inquérito arquivado sem prejuízo de que possa ser reaberto no juízo próprio, no caso de surgimento de novas provas.” (INQ 4.442, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe nº 12.06.2018) (grifo nosso) Diante do exposto, fica claro que o arquivamento do inquérito policial, em casos excepcionais, realizados pelo poder judiciário, não fere o sistema acusatório. Pois também o caderno investigo está sob a proteção do princípio da duração razoável trazido na Constituição Federal, de forma que o judiciário exerce sua atividade de supervisão judicial. Vê-se que o inquérito policial pode ser arquivado sem anuência do titular da ação penal. O investigado não pode suportar o constrangimento ilegal da “eterna” duração do inquérito, quando os órgãos responsáveis pela investigação, os responsáveis por oferecer a denúncia ou solicitar arquivamento de inquérito ou peças de informação, não apresentam ao poder judiciário justa causa para dar início à ação penal, não respeitando assim, o principio constitucional da duração razoável do processo, que é aplicado também no âmbito administrativo. Raimundo de Albuquerque Advogado Criminalista Mestrando em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) Especialista em Ciências Penais Secretário-Geral e Coordenador de Direito Penal ESA/RR Conselheiro Estadual da Associação Brasileira dos Advogados Criminais (ABRACRIM) no Estado de Roraima Membro do International Center for Criminal Studies (ICCS) Professor na graduação e pós-graduação em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia do Centro Universitário Estácio da Amazônia REFERÊNCIAS 1. BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, Brasília, DF, out 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 16 jan. 2018. BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, Brasília, DF, out 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 13 mar. 2018 Avena, Noberto Claudio Pâncaro. Processo Penal. – 9ª. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. Novelino, Marcelo. Curso de direito constitucional. – 10ª. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2015. [1]Inquérito 4.441/DF de relatoria do Ministro Dias Toffoli e Inquérito 4.442/DF de relatoria do Ministro Roberto Barroso [2]Avena, Noberto Claudio Pâncaro. Processo Penal / Noberto Avena. – 9ª. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 137. [3]Avena, Noberto Claudio Pâncaro. Processo Penal / Noberto Avena. – 9ª. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 137. [4]Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas. [5]Novelino, Marcelo. Curso de direito constitucional. – 10ª. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2015. p. 476. [6]LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |