Artigo do colunista Iverson Kech no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Em nosso mundo real tivemos exemplos bem palpáveis acerca do que o lúdico nos demonstra. E o espanhol Hernán Cortez nos serve de exemplo. Historicamente reconhecido por ter conquistado a península mexicana em 1519, foi o exemplo de que o poder e o domínio podem fazer, quando institucionalizados, aceitos e colocados à prova. A conquista se deu pela negação dos povos indígenas das planícies, mas principalmente pela subjugação de suas crenças e culturas, categoricamente. O salvador espanhol se torna o pior medo e risco dos povos além-mares. Para uns herói, para outros, o monstro''. Por Iverson Kech As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin, mesmo que ainda não finalizadas, conseguem trazer um mundo diferente da realidade quando enxergado apenas geograficamente, mas muito próximo a nós quando o destaque é a violência, a corrupção e as vaidades humanas.
E claro não poderia ser diferente: tanto no mundo conhecido quanto naquele habilmente criado pelo seu autor, as relações de poder e a forma de manutenção do controle são estrategicamente elaboradas a partir de um poder central, gerado pela força e pela violência. Perceba que em todas as famílias que hora ou outra estão a digladiar-se por mais domínios, há inevitavelmente a aparição de um símbolo que define a justiça daqueles prados: a força. E não se trata nem da coragem do herói, nem da robustez física dos mais preparados guerreiros, mas sim, da fertilidade da influência. Aqueles mais prestigiados em várias famílias rivais geralmente travam uma luta silenciosa que demonstra nos meandros não ser a força militar o mais preponderante indicio da vitória, mas a pura e a impura influência que dobra poderios, acalma ânimos e ao mesmo tempo; cria guerras. Perceba que o vencedor da guerra não foi aquele cujo exército era o mais preparado para a batalha. A política é mais uma engrenagem muito marcante em Martin, quando descreve em todos os cantos dos Sete Reinos, ações marcadas pelos mandos e desmandos de reis, imperadores e chefes de famílias, que causam dores cruciais ao seu povo. Entretanto, o lamento da sociedade em sofrimento por capciosos mandos faz parte da manutenção de um poder, refletido no infame custe o que custar. Um exemplo de como a força é muito importante nesse universo, é a possibilidade do julgamento por combate, quando o indiciado tem a oportunidade de escolher um campeão que queira travar batalha mortal contra o oponente escolhido pelo acusador, para definir a sua inocência ou sua culpa. Nesse caso, a força vem em forma de experiência no combate, mas geralmente é interligada de forma magistral aos bem mais preparados, que usualmente são aqueles que já detêm o poder. Era comum imperadores romanos mandarem para as arenas, para o entretenimento do povo, o seu mais experiente guerreiro para travar luta contra aqueles sentenciados à morte, caso esses vencessem, seriam considerados inocentes. Usualmente, a vitória do Império já era certa. Mas dois grandes acontecimentos são capazes de elencar e unir os mundos, tanto o literário criado por Martin, quanto o real. Por isso dizemos que a literatura capta os eventos humanos mais especiais e os transformam dentro de suas amostragens. O surgimento e crescimento da seita liderada pelo Alto Septão, que a princípio detinha a conivência do poder instaurado e institucionalizado da época, e a transformação/metamorfose do herói e salvador do povo submisso aos seus comandantes pelo medo, em o monstro a ser temido, são esses dois exemplos marcantes. Por mais que Martin ainda não tenha finalizado sua obra, a série da HBO retrata essas transformações. Em nosso mundo real tivemos exemplos bem palpáveis acerca do que o lúdico nos demonstra. E o espanhol Hernán Cortez nos serve de exemplo. Historicamente reconhecido por ter conquistado a península mexicana em 1519, foi o exemplo de que o poder e o domínio podem fazer, quando institucionalizados, aceitos e colocados à prova. A conquista se deu pela negação dos povos indígenas das planícies, mas principalmente pela subjugação de suas crenças e culturas, categoricamente. O salvador espanhol se torna o pior medo e risco dos povos além-mares. Para uns herói, para outros, o monstro. Outro exemplo bem real é a força da igreja e o poder do governante ou imperador. Ao unir a religião católica em 313 d.C. com o Edito de Milão, Constantino de Roma criava de fato, a religião mais poderosa no mundo conhecido. Com o passar dos tempos, a conversão para o cristianismo tornou-se regra e a perseguição contra os bárbaros e pagãos uma missão. Assim, todos os não convertidos e os símbolos pagãos passaram a fazer as vezes do inimigo, que deveria ser caçado. Com o tempo, até mesmo a visão que se tinha do Imperador e do Império Romano foi relativizada pela igreja, que determinou que moedas, estátuas e símbolos que versassem sobre o poder do imperador fossem considerados também pagãos. Apenas a simbologia da igreja era aceita, mesmo na moeda onde foi retirada a face do governante, e em seu lugar permanecia o símbolo católico. Com o tempo, a Inquisição tinha mais força que o próprio imperador, rei ou soberano, que deveria seguir seus conselhos e mandos, da mesma forma que Cersei precisou se curvar diante do Alto Pardal e sua seita, institucionalizada e aceita como a principal. O direito é retratado como uma simples marionete, como um capacho dos atores principais da sociedade, que precisam do espetáculo para demonstrar sua força punitiva ao seu povo. Assim, ele serve mais como um teatro geralmente ao ar livre, cujo julgamento sempre levará em consideração o pensamento e vontade dos mais fortes, que fazem as vezes do Estado. O mais odiado personagem chegou a receber uma carta de George Martin, pela sua interpretação. Nela o escritor parabenizava Jack Gleeson por sua incrível criação visual de um dos mais odiados personagens: O rei Joffrey. Joffrey sintetiza todo a maldade e cinismo que existe, tanto nos Sete Reinos quanto em nossa realidade. Ele consegue simbolizar e representar o quão longe a crueldade e arrogância podem chegar, evidenciando que não se pode confiar no poder soberano, mas sempre se deve manter resguardos contra aquele que senta no Trono de Ferro. Assim como Calígula ou Nero, a prepotência chega ao poder misturada pela vaidade e a loucura, com suas atrocidades demonstradas enquanto ostenta a coroa. Mas importante na obra é determinar e deixar que todos saibam quem está no comando e no poder e do que ele é capaz. Como o Rei Louco que estocava produtos químicos criados para incinerar sua própria cidade, ou a ordem de Tywin Lannister de queimar todas as vilas fora de Porto Real, para que exércitos inimigos não tenham o que pilhar durante algum suposto e provável cerco à capital. Mas veja o exemplo fatídico de Cersei Lannister. Apoiadora, mentora e adepta à religião do Alto Pardal, pelo menos enquanto essa servia a seus propósitos, passa a ser perseguida pela doutrina que intenta purificar o mundo. Seja pelas fogueiras ou pela insone tortura, a religião de Porto Real consegue seu intuito de incorporar o medo como seu soldado mais leal. Fazendo com que a punição da pessoa mais influente e apavorante da capital seja exemplar, a igreja consegue seu intuito total de dominação. Quanto a isso, a caminhada da vergonha de Cersei teve um preponderante papel: demonstrar que ninguém sairá impune. E esse fato ocorreu na história real; quando depois da morte do Rei Eduardo IV, da Inglaterra do século XV, sua mais conhecida amante foi forçada pela igreja a caminhar nua pelas vias Londres, sendo apedrejada e atacada verbalmente pelos seus mais fiéis citadinos. Aqui não se tratava, porém, de uma rainha. Entretanto, a volúpia a qual o poder consegue inclinar seus submissos cidadãos à sua vontade é algo a ser estudado e analisado. Esses passam a agir conforme é esperado, mesmo ainda não apoiando seus governos. Enquanto Melisandre controla uma nova religião, que surge com força ameaçadora ao mundo conhecido, o Alto Pardal caía. É mais uma prova de que, seja lá ou aqui na realidade, sempre há continuação para tudo, seja para o bem ou para o mal. Mas a esperança se renova com personagens altruístas e perspicazes, que trazem na lucidez e na pacificação seu maior destaque. É o caso de Tyrion Lannister, que percebeu que sua força vinha de uma mente arguta, e que diferente dos fortes e combatentes destemidos tinha algo a mais. Desenvolveu sua sobriedade buscando a paz, em tempos de guerra. O fato é que as Crônicas de Gelo e Fogo é um universo à parte, com linguagem própria e com análises que vão além. Vários exemplos da história medieval podem ser encontrados nos livros, mas também as atuais maneiras e formas de conservação e continuação do poder nas mãos de poucos prestigiados. Westeros, a Muralha e seus guardiões, o exército de mortos, as guerras, as magias e a dança dos dragões. Tudo é metáfora para nosso combalido mundo, tão necessitado de uma poção de harmonia. Iverson Kech Ferreira Mestre em Direito (UNINTER), Especialista em Direito Penal e Processual Penal (ABDCONST), Professor de Direito Penal, Criminologia e História do Direito. Advogado Criminalista. Autor de livros e artigos jurídicos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das letras, 1989. HOBSBAWN, Eric J. A era dos extremos – O breve século XX – 1914/1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1994. MARTIN, George R. R. As Crônicas de Gelo e Fogo: A Guerra dos Tronos, vol. 1. Tradução de Jorge Candeias. São Paulo, Leya, 2010.
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