Entender o processo que envolve o Direito Penal e como este ramo da área jurídica, que parte da tutela do Estado aos seus cidadãos, que convivem em um aparente contrato social abrangendo a todos num Estado de defesa social, é inerente aos peculiares estudos das formas de criminalização de condutas e como estas são realizadas pelo ente maior, o próprio Estado. Nesse sentido, visualizar a formação da sociedade significa desenvolver, dialeticamente, pesquisas que relatam de que maneira se dá a dominação de certos grupos ou classes em detrimento de outros menores agrupamentos, e como, essa distinção passa a ser o foco de criminalização de condutas dos menores ajuntamentos da sociedade, que são escolhidos pela malha do Direito Penal, diariamente. A absorção de inúmeras tratativas e experiências de vida traz por si só, um conhecimento que não deve ser descartado, ainda mais se asseverar questões de sobrevivência e liberdade, dificuldades diversas e a eterna busca pela identidade. Nesse interim, estudos sociológicos demonstram que o comportamento dos indivíduos apenas é compreensível a partir das interpretações que cada um, em sua própria maneira, faz dos mecanismos de interação social em que se encontra envolvido. Esse interacionismo simbólico interpreta-se pelas relações individuais e supraindividuais obtidas no exercício da cidadania e no convívio com o pluralismo que pauta as sociedades. Inúmeras formas de interpretação, cada qual com sua empírica valorização das questões tidas como relevantes no âmbito social, como religião, gostos musicais, locais de convivência, reuniões etc., pautam a estrutura de uma determinada célula de coexistência, enquanto viventes num mesmo agrupamento. (Becker) Esse agrupamento possui em suas variáveis, formas de estruturação que mantem o seu status quo, definindo o grupo que possui controle ou domínio das ações, que são os estabelecidos. Para que se defina como tal, há necessidade da valoração tradicional e cultural que o identifique detentor de um poder, que não caminhe apenas economicamente, mas também culturalmente atrelado ao que se posta como o esteticamente belo no trato social. Grupos dominantes são os estabelecidos dessa forma, tradicionalmente, nas formações da sociedade, que possui em seu cerne a aceitação do que lhe é harmonioso. (Elias) Entretanto, essas composições tradicionais estão recheadas em seu interior, de agrupamentos diferentes e que, grosso modo, se unem em prol da aceitação e segurança própria, uma vez que são negados pelos estabelecidos. Grupos ao redor são criados, porem, vivendo dentro do maior conjunto que passam a conviver num elo de resignação/negação/apatia/medo. Esses grupos menores são reconhecidos como outsiders (Becker), aqueles que devem ser desviados, evitados. Esses desviantes de uma relação pré-estabelecida entre a sociedade formam suas células de convivência entre si, onde no interior dessas possuem empatia, aceitação e segurança provenientes de seus iguais. Assim, favelas, guetos, estrangeiros, usuários de drogas, catadores de papel, entre outros, formam movidos pela sua empatia e desígnios inerentes, grupos de igualdade, negando de certa forma as maiorias ou os estabelecidos, que por sua vez sempre os negaram. Um aspecto ainda mais casual para os estudos criminológicos é entender como a relação de poder de um em detrimento ao outro grupo pode de fato, legitimar o Estado a agir contra essas minorias, num senso de utilitarismo simbólico, ou seja, “a maioria assim deseja.” Voltando às formações dos iguais em grupos, Howard Becker afirma em sua obra intitulada Os Outsiders (1964), que estes são criados volitivamente a partir das reações contrarias dos outros que geralmente são estabelecidos na societas. Um grupo pode ser considerado desviante mesmo que não se desvie, de fato, de nenhuma norma social tida como essencial pelos estabelecidos, e ainda, por práticas consideradas diferentes e estranhas aos estabelecidos. Da mesma forma, somente pode escarnecer o diferente agrupamento aquele que faz parte das fileiras pertencentes à maioria. Incluir o diferente sempre foi moldado por tremenda dificuldade e apatia, destarte, normas de higienização e leis que legitimam a exclusão de algumas minorias são usualmente utilizadas para a criação de uma ideologia de defesa social, que resume a igualdade de todos perante a lei, emparelhando todos e não prevendo as diferenças sociais; identificando assim quem são os estigmatizados, bestializados e rotulados, por meio da exclusão. Assim, grupos que não estão legitimados ao seio da sociedade usual são tidos como excluídos de suas prerrogativas e ainda mais, como a linha que define quem deve ser perseguido pelo sistema de controle do Estado. A partir da concepção de que há a distinção entre classes e agrupamentos e que a negação entre um e outro é iminente, inúmeros são os desmembramentos possíveis de um conflito sui generis entre classes, determinados pelo medo e pela diferença. O medo do desigual ou do estrangeiro é deveras sistêmico numa sociedade que aprendeu a controlar aquilo que lhe é exterior e não compactue com suas similitudes. Assim, as ilhas de segurança (condomínios, bairros tradicionais) são criadas para fornecer a sensação da liberdade e segurança aos seus condicionados, que temem o que jaz fora de suas fronteiras. O outro é o que se deve temer. Esse enclausuramento, criado devido a uma sociedade do medo que Bauman define como um dos males da pós-modernidade, causa a inaptidão do trato com o outro, que deve ser evitado, não havendo mais a interação social. Destarte, as formas de sociabilidade e contato com o estranho são deixadas de lado em prol de uma malfadada segurança pessoal, que tende sempre, invariavelmente, a negar o outro e a dificultar cada vez mais a interação social, menosprezando qualquer um que não esteja envolvido em seu círculo de confiança. Todavia, o sentimento piora quando nos espações destinados ao convívio público o encontro com o diferente que se amolda no grupo outsider (desviante)é tido como a colisão com o medo e pavor, ou seja, com o homem marginalizado e incivilizado. A maneira que se combate grupos menores tidos como desviantes é encontrada na criminalização de certas condutas, mesmo sendo condutas consideradas atípicas pelo Código de leis penais, mas que por exclusão evidenciam quem são aqueles que devem ser combatidos em virtude de uma segurança que precisa ser sentida em prol da maioria. Nessa concepção, a criação de uma Crítica à constante penalização e ao movimento que legitima o Estado de defesa social e sua ideologia, formados por grupos majoritários na sociedade, ou seja, detentores de um poder, (entre esses poderes, o poder de compra) faz-se de significativa valia para que se possa interpretar como o sistema punitivo considera a banalização das penas método para trancafiar indivíduos pelo fato de sua diferença e da falta de recursos inúmeros, relembrando, de certa forma, estudos que perfazem o inicio de uma criminologia do determinismo, individualizando certos sinais que se destacam em cada um, como um epiteto de criminoso iminente. É esse o cenário que a criminologia crítica encontra e acirra seus estudos em prol de um discurso de contração do sistema punitivo, despenalizando condutas socialmente selecionadas. Os estudos porvir tratarão de como são estigmatizadas tais condutas e amoldadas também penalmente como típicas e (vejam só!) puníveis. Esse retrocesso é corroborado pela inércia de um ensino jurídico amplamente dogmático e positivista ao extremo, que eleva a importância do sistema jurídico e suas tecnicidades, esquecendo-se a verdadeira relevância do direito e o que este representa. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal REFERÊNCIAS: BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D'Água, 2006. BECKER, Howard S., Outsiders, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2008. ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade/ Norbert Elias e John L. Scotson. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. Comments are closed.
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