Artigo do colunista Douglas Rodrigues da Silva no sala de aula criminal, vale a leitura! ''O direito de liberdade e o de não ser tolhido do uso de seus bens sem o devido processo legal – o que inclusive é cláusula constitucional – não amplia o poder do julgador em tal medida. Logo, a mera conveniência do julgador e das autoridades não autoriza escolher a medida que melhor atenda interesses particulares desses personagens processuais''. Por Douglas Rodrigues da Silva Um debate ainda pouco enfrentando no processo penal brasileiro, dentre tantos outros, é a questão das chamadas medidas cautelares reais, aquelas que são decretadas tendo como “alvo” o patrimônio dos réus. No Código de Processo Penal, de forma geral, elas são previstas a partir do artigo 125 e se resumem às medidas de sequestro, arresto e hipoteca legal.
Debruçando-se sobre a norma processual penal, nota-se que cada uma dessas medidas cautelares patrimoniais se dirige a uma finalidade bastante específica, servindo como um instrumento de garantia da efetividade do processo em relação aos bens dos acusados. O sequestro, a mais conhecida delas, é voltado à constrição do patrimônio auferido com a prática criminosa, ou seja, tem por finalidade bloquear os proveitos derivados da infração penal, o que permite indicar que é uma medida cautelar somente cabível para crimes que tenham natureza econômica, ainda que indireta. Já as medidas de arresto e hipoteca legal, uma complementar a outra, servem para assegurar o pagamento das despesas processuais e dos danos oriundos da infração penal, tendo como objetivo garantir os efeitos reparatórios de uma condenação criminal, o que permite, inclusive, que seja uma medida direcionada ao patrimônio licitamente auferido pelo réu. Cada uma dessas medidas cautelares possui requisitos próprios. Além dos pressupostos cautelares exigidos para toda e qualquer provimento dessa natureza, que é o fumus comissi delicti e o periculum in mora (no caso de medida pessoal, seria o periculum libertatis), esses mecanismos exigem especificidades equivalentes aos seus fins. No caso do sequestro, a medida precisa vir amparada na ideia de “referibilidade”, podendo ser aplicado apenas quando se referir (eis o motivo do nome) diretamente aos proventos do crime, é uma medida dirigida ao produto da ação delitiva, ao “lucro” criminoso. Em relação ao arresto prévio, enquanto medida antecedente à hipoteca legal, os seus requisitos são a certeza da infração e os chamados indícios veementes da prática delitiva capazes de autorizar a constrição de todo o acervo patrimonial do acusado que seja capaz de fazer frente às despesas do processo e efeitos reparatórios, mesmo que sejam lícitos. O ponto essencial aqui, entretanto, é que é uma medida dirigida em primeiro lugar a bens imóveis, somente passível de ser transferida para bens móveis na insuficiência daqueles. Já a hipoteca legal serve como faze posterior ao arresto, tendo natureza cível, se constitui no registro da constrição nos documentos do bem, indicando que estão postos como garantia de dívida. Num primeiro olhar, analisando a natureza de cada um desses provimentos cautelares, parece não existir muita dúvida de quando aplicar um ou outro. E de fato, o assunto não deveria apresentar maiores problemas. Mas, na prática, a teoria é outra, infelizmente. Com o advento dos chamados “maxiprocessos” e das “grandes operações”, um dos pontos de maior destaque das ações das autoridades públicas se dirige ao patrimônio dos acusados. A partir da ideia de que o enfraquecimento patrimonial serve não só como garantia processual, mas como moeda de troca com o acusado – especialmente na tentativa de se conseguir delações ou mesmo de enfraquecer o investigado no momento de contratar algum profissional –, passou a se considerar as medidas cautelares reais como aspecto importante no modus operandi das autoridades públicas. Sempre pertinente recordar que os “alvos” dessas operações, antes de tudo, são pessoas com considerável patrimônio (sobretudo, patrimônio licitamente obtido), e essa “facilidade” poderia subsidiar uma maior possibilidade de defesa ou mesmo tornar a preocupação com o processo penal reduzida. Ao menos essa é, aparentemente, o pensamento das autoridades públicas. Por isso o “alvo” passou a ser também o patrimônio, às vezes até antes da liberdade de locomoção. Dessa premissa, começaram a pipocar os mais variados absurdos no que tange às medidas cautelares reais. A “Operação Lava-Jato” talvez seja o maior exemplo disso. Desconsiderando as especificidades de cada uma das medidas cautelares patrimoniais, os magistrados do caso criaram a chamada medida de “sequestro/arresto”, simplesmente capaz de determinar um bloqueio irrestrito de tudo o quanto estivesse registrado em nome dos investigados. Segundo o fundamento constantemente utilizado, o “poder geral de cautela” e a efetividade do processo penal autorizavam a constrição irrestrita de bens, pois a dita “criminalidade dos poderosos” depende, sobremaneira, do patrimônio dos acusados. Sem o poder do acervo patrimonial, não há muitas escolhas que possibilitam aos acusados apresentar “óbices” ao processo penal. Nessa esteira, passou-se a decretar sequestro contra bens lícitos – indicando que eventual medida estaria albergada pela figura do “confisco alargado” apresentado pelo artigo 91 do Código Penal –, arresto de bens móveis (especialmente de contas bancárias) em preferência aos bens imóveis, violando a ordem legal. Como também passou a se decretar o sequestro para fins de assegurar os efeitos reparatórios da pena, quando, em verdade, a medida cabível seria o arresto e a hipoteca legal. Em outros casos, utilizando uma intepretação extensiva do artigo 4º da Lei de Lavagem de Dinheiro, começou-se a entender que a norma autorizava uma incursão mais ampla no patrimônio do acusado, pois sem isso seria inefetiva a previsão da norma. Uma aquarela de absurdos. Em primeiro lugar, não há “poder geral de cautela” no processo penal. O julgador somente pode aplicar medidas cautelares, sejam elas reais ou pessoais, que estejam expressamente albergadas pela norma processual (GOMES FILHO, 1991, p. 57). O direito de liberdade e o de não ser tolhido do uso de seus bens sem o devido processo legal – o que inclusive é cláusula constitucional – não amplia o poder do julgador em tal medida. Logo, a mera conveniência do julgador e das autoridades não autoriza escolher a medida que melhor atenda interesses particulares desses personagens processuais. Mas não só. Além da inexistência desse poder geral de cautela, também não há possibilidade de utilizar cada uma das medidas para fins que não sejam aqueles legalmente indicados. Não cabe sequestro de bens lícitos, nem arresto de bens móveis em preferência aos imóveis. Assim como o simples fato de a Lei Antilavagem afirmar que as medidas devem atingir o patrimônio conseguido com o crime e o valor necessário às despesas processuais não cria novo provimento. O artigo 4º da Lei de Lavagem não pode ser lido em desacordo à regra processual penal geral trazida pelo CPP (BOTTINI, BADARÓ, 2016, p. 110). Por fim, o fato de existir a possibilidade de confisco de bens equivalentes à infração, numa espécie de alargamento, não é medida cautelar, mas efeito da condenação, o que não justifica a “fraude de etiquetas” no intuito de ampliar uma medida de sequestro (enquanto cautelar) como provimento de concretização de um efeito da condenação. Tudo isso apenas para pontuar alguns aspectos de tormento. Com isso, quer-se mostrar que as medidas cautelares reais, ainda que não atinjam diretamente a liberdade, não deixam de restringir direitos e afetar esferas patrimoniais sensíveis. Por isso mesmo, causa espanto o debate ainda pequeno de seus efeitos. É preciso que esses pontos integrem a discussão jurídica e apontem seus equívocos, tornando imperativo uma releitura da prática forense no longo caminho que ainda se tem na busca de um processo penal de matriz legalista e afinado com a Constituição da República. Douglas Rodrigues da Silva Mestre em Direito pelo UNICURITIBA. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo UNICURITIBA. Professor de Direito Penal Econômico das Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais. Advogado Criminal do escritório Antonietto & Guedes de Castro Advogados Associados. REFERÊNCIAS BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991.
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