A sociedade contemporânea já recebeu diversas tentativas de classificação, diante da dificuldade natural de nos enxergamos reflexivamente na corrente histórica no presente. Em geral é mais fácil olhar para trás no tempo e especificarmos um determinado período com um significante que abarque um conjunto de características comuns àquele período, do que fazê-lo no presente. Ainda assim, diversas expressões foram cunhadas com alto grau de acerto. Já se disse que a sociedade contemporânea é pós-moderna, ou modernamente tardia. Já se disse que vivemos numa “sociedade de risco”, numa “sociedade do medo”, numa “era de extremos”, numa “sociedade excludente”, numa “sociedade líquida”, apenas para mencionar algumas das expressões que, com elevado grau de sucesso, conseguem em poucas palavras aludir a uma época, um modo de vida e, na fluidez da existência humana, uma transição. É bastante claro que rotulações não são hermeticamente precisas, nem conseguem abarcar todo o fenômeno cultural dum determinado período. Acreditar nisso seria o mesmo que acreditar que podemos reduzir a explicação do funcionamento do corpo humano às transformações visíveis ocorridas na passagem da infância para puberdade, desta para juventude, daí para idade adulta e, finalmente, para velhice. Entretanto, é interessante notar como a percepção que estas expressões nos trazem nos ajudam a aumentar nossa compreensão do tempo, das reações, das mudanças à nossa volta e, no fim das contas, de nós mesmos. É nesse sentido que surge o interesse em escrever estas linhas. Parece, a meu ver, que vivemos, acima de tudo, numa sociedade de paradoxos. A impressão que se tem é de que vivemos numa época em que a humanidade pode ser descrita, em seu modo de vida, sua multiplicidade de valores, sua convivência, seus desejos e receios, como alguém que, trilhando um plano fixo, de repente se depara com um precipício. A sensação imediata é de vertigem. Perda de um referencial seguro para ir adiante. Prelúdio da queda livre. Explico esta visão a partir de duas vertentes, com base numa análise obviamente desprovida do rigor científico que caracterizou as análises sociológicas mencionadas anteriormente (como a brilhante obra de Ulrich Beck – Sociedade de Risco ou a igualmente reveladora obra de Jock Young – Sociedade Excludente), mas que, acredito, possa incrementar o debate e ampliar horizontes. A primeira vertigem é oriunda do paradoxo no modo como a sociedade contemporânea lida com as diferenças. De um lado, não parece ter havido outra época da história em que se debateu de modo tão aberto as diferenças que nos cercam. Também não houve outro período em que a aceitação do outro, o apelo à eliminação de preconceitos, a quebra de tabus e a tolerância tenha sido tão incentivada. Ainda que as décadas de 60 e 70 tenham experimentado um forte movimento de libertação (e luta por igualdade) em diversas áreas, os movimentos destas épocas era movimentos de reforma, de confronto, de luta. Hoje, ao menos na superfície dos discursos, parece haver um (quase) consenso sobre a necessidade de aceitação e permissão de escolhas existenciais. Ao mesmo tempo, as linhas de vivência que antes pareciam separar de forma palpável círculos de “iguais” são cada vez mais dissolvidas ou ao menos mais intrincadas. Empresários engravatados, líderes religiosos conservadores, jogadores profissionais com piercings e cabelos coloridos, skatistas tatuados e tantos outros atores da vida contemporânea não parecem mais se estranhar ao subirem juntos o elevador. De igual forma, muitas vezes estas características estão juntas num mesmo personagem. Não é mais artigo raro um empresário tatuado, com piercings e ideias conservadoras. O paradoxo que queremos apontar, porém, encontra-se na razão pela qual a diversidade não mais espanta ou causa severa divergência. Antes de mencionar esse ponto cabe uma palavra de cautela: não se diz com estas observações que estejamos livres de preconceitos. Longe disso, infelizmente. Quem sabe ele seja ainda mais insidioso na medida que é velado. O que se aponta é a atitude geral para com as diferenças e a crescente movimentação discursiva (e até prática) no sentido da aceitação e convívio com as diferenças. Voltando ao ponto que pretendo sugerir: a aceitação, convívio e ausência de conflito (mais uma vez repito, de modo genérico) em relação às diferenças não parece advir de uma maior conscientização humanitária do modo de se enxergar aquele que fez escolhas diferentes ou que possui um modo de vida distinto. Pelo contrário, parece advir justamente de uma indiferença generalizada pelo outro. A superindividualização, simbolizada em tantos retratos de pessoas vidradas em seus aparelhos celulares; o sentimento de desprezo e apatia para com outros demonstra ser, paradoxalmente, o motivo predominante pelo qual o choque de vivências é cada vez mais amenizado. A máxima, amplamente propagada, do “viva e deixe viver”, é regra sacralizada na sociedade contemporânea. Se eu passo por uma pessoa em situação de mendicância, por alguém agonizando na calçada, se eu ouço uma criança chorando alto no apartamento ao lado, minha reação primária será, regra geral, a tentativa de me esquivar da situação e não o impulso para o auxílio. A indiferença e a supervalorização do interesse próprio se mostram como explicação mais confiável do motivo preponderante pelo qual são aceitas as escolhas de outro sobre como viver, em suas diversas facetas. No fundo, não há interesse em relação ao que o outro veste, que preferência sexual ele possui, a que etnia ele pertence ou quais suas preferências políticas, justamente porque ele é o outro e não eu, tendo importância apenas o que eu penso, faço, sinto ou escolho. Pode-se contrariar o exposto acima afirmando que as pessoas continuam buscando seus pares no convívio social. Pessoas com condição material avantajada continuam preferindo a companhia de outros de mesma situação. Jovens continuam a preferir os de mesma idade para se relacionar. Outros exemplos poderiam ser trazidos à baila para demonstrar que a sociedade continua amplamente segregada. Não divirjo desse ponto de vista. O que aponto aqui tem maior relação com a atitude das pessoas em relação àqueles que são diferentes e não suas escolhas em relação àqueles que são iguais. Resumindo: a ampliação do consenso a respeito da necessidade de aceitação e a diminuição na tensão fundada nas diferenças de preferências ou de escolhas existenciais reside num paradoxo – predominantemente a superindividualização. O reforço do “universo próprio de vida” origina a atitude mental que permite a complacência apática com as diferenças, numa relação diretamente proporcional – quanto mais eu me preocupo em como EU desejo viver menos me preocupo em como VOCÊ deseja viver. Um outro campo em que a sociedade contemporânea pode ser descrita como paradoxal é a percepção de qualidade temporal. Dois sentimentos residem internamente no aparelho psíquico das pessoas, ao mesmo tempo, dando margem a uma vertigem que, por vezes, se assemelha a sintomas de esquizofrenia: a nostalgia e a expectativa ansiosa do futuro. Corriqueiramente podem ser ouvidas expressões de saudosismo, não mais exclusivas dos já bem avançados em anos. Essas expressões orbitam, quase sem grandes variações, os mesmos aspectos. Fazem referência aos vínculos familiares, simplicidade reconfortante do modo de vida de anos passados, maior sensação de segurança, maior confiabilidade de expectativas, tanto em relação às pessoas quanto em relação aos acontecimentos mundiais. Afetam até assuntos mais mundanos, como a qualidade musical ou cinematográfica. Num outro prisma, diametralmente contrário, mas residindo na mente das mesmas pessoas, há uma expectativa ansiosa pelo futuro. Esta se concretiza, com algumas variantes aqui mais do que no aspecto anterior, nos seguintes campos: a esperança de uma melhora (que aparentemente nunca se realiza) nas condições financeiras de modo global, na solução de problemas sérios de saúde pelo “avanço da medicina”, na sempre viva espera por novos lançamentos tecnológicos de consumo, na concretização dos alvos (quase nunca completamente realizáveis) típicos do capitalismo tardio (carreira, bens, status) ou na ilusão da possibilidade de um advento transformador da realidade econômica ou de status social (como ser sorteado na loteria, ser selecionado para o mundo da moda ou dos esportes, casar-se com alguém proeminente). Essas visões opostas se acomodam dentro do consciente (e do inconsciente) das pessoas, gerando digressões completamente opostas, a depender do momento e do assunto que serviu de base para que ela expresse sua visão. Em psicanálise, o saudosismo exacerbado ou a expectativa constante do que está por vir são diagnosticados, grosso modo, como mecanismos de defesa do psiquismo para não ter de lidar com questões tormentosas que se apresentam no presente. De qualquer forma, é comum verificar uma dificuldade muito grande para gerir os desafios pessoais da cotidianidade fluida da vida contemporânea, gerando fugas diversas da realidade, inclusive na corrente do tempo. As observações feitas até aqui resultaram, reitero, não de uma pesquisa de campo metodologicamente aferível ou pautada por critérios rigorosamente “científicos”. São, no final das contas, produto da interação, da conversa com a ascensorista de elevador, o entregador de gás, o vizinho sexagenário, a sobrinha na transição da infância para puberdade, os colegas de trabalho, assim como da leitura abundante de excelentes autores, em especial sociólogos e psicanalistas (alguns dos quais citados no final deste ensaio). Há o interesse de trazer o debate aqui abordado para o campo do direito. Espero fazer isso em breve. Por ora gostaria de encerrar com uma provocação final. O sentimento central do qual o paradoxo contemporâneo parece emergir é o da necessidade de valorização. A carência de aprovação. Isso provavelmente explica a generalizada profusão das “selfie” e das fotos no espelho, veiculadas nas redes sociais e meios de comunicação instantânea. A busca pelo eu, pela identidade, pelo estabelecimento do valor pessoal, pela apreciação, pelo reconhecimento em meio e um mar de indiferenças sufocantes. Aí reside o paradoxo mor: procura-se, no outro, a valoração do eu. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Bibliografia: Beck, Ulrich. Sociedade de risco – Rumo a outra modernidade. São Paulo : Editora 34, 2011, 2ª Ed. Fiorelli, José Omir; MANGINI, Rosana CathyaRagazzoni. Psicologia jurídica. 6ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015. Fromm, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. São Paulo : Zahar, 1983. Hobsbawn, Eric. Era de Extremos – O breve século XX. 1914-1991. 7ª ed. São Paulo : Cia das Letras, 1994. YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente – Exclusão social, criminologia e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. Comments are closed.
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