Quais são as principais dificuldades enfrentadas pela Defesa nas audiências virtuais? A impessoalidade das audiências virtuais permite o real exercício da ampla defesa? Estas são algumas perguntas lançadas pelos autores para estabelecer reflexão crítica sobre as audiências virtuais. Por André Pontarolli e Giovanni Moro Barboza No atípico ano de 2020 a utilização massiva de instrumentos de interação virtual para a manutenção de atividades profissionais se tornou regra. Na educação, o giz foi substituído pelo mouse e a lousa pelo monitor. Na medicina, as consultas virtuais, antes vistas com ressalvas, ganharam espaço. O mundo do entretenimento conheceu uma nova forma de expressão por meio das lives.
Como não poderia ser diferente, os operadores do Direito não escaparam a este salto significativo de transformação digital dos ambientes de trabalho. Os fóruns e tribunais foram fechados sine die, mas as sessões de julgamentos e audiências virtuais ganharam vida e estão permitindo a continuidade de tramitação dos feitos. Até já se cogita a realização de júris com inquirições por meio virtual. Mas é preciso ter cuidado! Nem tudo são flores no universo da Jurisdição Virtual. A interação não tem a mesma intensidade do contato pessoal, a conexão de internet pode cair, a imagem travar e o som ficar inaudível. Ademais, esta transmutação virtual dos espaços jurídicos se deu de forma emergencial, ao que tudo indica sem as reflexões e os cuidados necessários para instituição desse sistema. Algumas preocupações surgem de imediato, de forma que é possível desenvolver uma série de artigos com a presente temática. Destarte, aqui será analisada especificamente aquela que parece ser a mais inquietante: A impessoalidade das audiências virtuais permite o real exercício da ampla defesa? As audiências virtuais – denominadas como presenciais por videoconferência – começaram a ser realizadas de uma hora para a outra, com base em atos normativos editados pelo Conselho Nacional de Justiça e pelos Tribunais, mas sem que fosse possível mínima adaptação prévia. Desta forma, muitas são as dificuldades e o que se verifica na paxis é o desrespeito potencial ao Código de Processo Penal e à Constituição da República. A primeira inquietação é a que diz respeito ao exercício do direito pessoal de defesa por parte do acusado preso. Durante uma audiência é essencial que o advogado e o seu constituinte estejam em contato direto, pois o acusado conhece os detalhes fáticos e pode municiar o advogado com informações importantes que podem ser objeto de questionamento às testemunhas. Esta dinâmica fica absolutamente prejudicada na grande maioria das audiências virtuais. Vale dizer que em alguns casos sequer tem sido viabilizada a participação remota do acusado, sob o argumento da indisponibilidade técnica. Em outros casos o que resta inviabilizado é o contato direto entre advogado e acusado, em virtude das diretrizes de determinados estabelecimentos prisionais. E ainda pode existir a impossibilidade sanitária do contato, por pertencer o advogado ou o acusado a grupo de risco. Agora, pior do que as dificuldades acima apontadas parecem ser as soluções adotadas. Quando da impossibilidade técnica de conexão do acusado preso, a qual deveria ser viabilizada pelo Estado, em vista do direito de acompanhamento a todos os atos processuais, a solução proposta por alguns magistrados se dá no sentido de que a Defesa dispense a presença do acusado, transferindo ao advogado uma espécie de escolha de Sofia, sendo que: ou a Defesa resiste e o ato é adiado, com a manutenção da prisão, ou a Defesa se submete e prejudica significativamente o exercício da ampla defesa. Quando da impossibilidade de contato físico entre acusado e defensor, a solução proposta é a de que se conectem por sala virtual. Contudo, tal hipótese não permite a interação instantânea entre a defesa técnica e a defesa pessoal durante a instrução e, além disso, não há minimamente como saber se esta interação preservará o sigilo do diálogo entre o acusado e o seu advogado. Além disso, não se pode olvidar do contato do acusado com o próprio Juiz da causa. Isso porque, como cediço, a linguagem corporal e o “olho no olho”, por assim dizer, são elementos indissociáveis da formação do convencimento do julgador. Bem se sabe que uma narrativa concisa, sem melindres, com “olho no olho” é muito mais convincente do que um mero depoimento prestado sob a “blindagem” de uma tela de computador, celular, tablet, etc. A psique humana já está acostumada com as ficções que o mundo virtual hodiernamente a apresenta, o que, inconscientemente, surrupia o potencial de convencimento do acusado no exercício de sua autodefesa quando realizada nesse novo sistema. Ora, o réu, no Processo Penal, é o mais interessado na sua própria defesa, logo, o mínimo que se espera, é que tenha condições plenas - sem qualquer mácula - de externar suas razões e convencer aquele que tem em mãos o poder de dilapidar a presunção de inocência que lhe é garantida. O que se tem, portanto, é que o modelo em vigência não garante de forma adequada o exercício do direito de defesa pessoal. A segunda inquietação diz respeito inquirição das testemunhas. Eis algumas situações com as quais as partes se deparam durante as instruções virtuais: (a) mais de uma testemunha conectada a partir de um mesmo local; (b) testemunhas acompanhadas; (c) testemunhas que se conectam sem vídeo; (d) falhas técnicas com interrupções significativas. Todos os pontos acima, já registrados em diversos casos, revelam que é impossível exercer um controle sobre a incomunicabilidade e a espontaneidade de narrativa das testemunhas virtuais. Num local em que se encontrem múltiplas testemunhas é impossível saber se uma ouviu o que a outra disse (talvez até atrás da porta) ou se a que foi ouvida primeiro realizou algum tipo de instrução à que será ouvida na sequência. Quando a testemunha se faz acompanhada por quem quer que seja, não há como saber se está sendo coagida ou se está sendo instruída sobre cada um dos pontos perguntados. Já a testemunha sem vídeo pode estar se valendo de múltiplos expedientes desconhecidos do Juízo e das partes, desde o uso de um roteiro até a consulta a terceiros por meio de celular ou outros equipamentos conectados em rede. O que se tem é que impossível aferir a regularidade formal de cada um dos depoimentos prestados na modalidade virtual, o que afeta significativamente o exercício de uma defesa efetivamente ampla. É fato que o momento atual é absolutamente peculiar e soluções emergenciais precisam ser tomadas, até para se garantir que acusados presos sejam julgados dentro de prazo razoável. Contudo, a deficiência do aparato estatal tecnológico não pode servir como desculpa para solapar o devido processo legal e a ampla defesa. Todas as falhas precisam ser expostas e corrigidas, até para que a exceção não vire regra. André Pontarolli Mestre em Direito Professor de Direito Penal e Criminologia Giovanni Moro Barboza Acadêmico de Direito (UNICURITIBA)
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |