Artigo de Guilherme Ramos Justus e Letícia Rodrigues Calaça no sala de aula criminal, vale a leitura. ''A lógica processual penal é outra, uma vez que o imputado inicia o jogo “vencendo” a acusação por estar em estado de inocência (Art. 5º, LVII, CF), ou seja, deveria ocupar naturalmente uma posição de ampla vantagem em eventual negociação de acordo com o Estado. Infelizmente, a lógica se inverte por uma espécie de “blefe” acusatório formalizado na “denúncia dopada” do Ministério Público. Consequentemente, a ampla defesa e o contraditório restam prejudicados no decorrer da marcha processual, pois há uma sobrecarga unicamente para a defesa (overcharging)''. Por Guilherme Ramos Justus e Letícia Rodrigues Calaça Introduzido pela Lei n. 13.964/2019, também conhecida como “Pacote Anticrime”, o Acordo de Não Persecução Penal é a materialização da negociação em âmbito processual penal brasileiro. Ainda que não seja a única alternativa “despenalizadora” e negocial do nosso sistema, esta carrega uma carga estratégica muito maior para os pólos envolvidos no processo.
Precipuamente, insta salientar que adotamos o posicionamento de Aury Lopes Jr. e de Alexandre Morais da Rosa (2020), no sentido de que o Acordo de Não Persecução Penal é um direito público subjetivo do imputado[1], uma vez que bastaria o preenchimento dos critérios legais estabelecidos no Art. 28-A do Código de Processo Penal[2] para a formalização do acordo com o Estado. Diante disso, todavia, nota-se certo “jogo de poder” por detrás do posicionamento do órgão acusatório em ao menos dois aspectos: o grau da acusação formalizada para o cálculo da pena mínima (inferior a quatro anos) e, principalmente, a discricionariedade sobre a efetividade do acordo na reprovação e prevenção de crimes. Sobre a temática, não há o que se falar nessa discricionariedade do Ministério Público acerca da propositura do acordo e, muito menos no exercício de um sistema de livre oportunidade e conveniência [3] por parte do órgão acusatório. Entende-se até mesmo, em lei supracitada - Pacote Anticrime -, que em sua Exposição de Motivos, há certa mitigação da obrigatoriedade do prosseguimento da ação penal através das lentes da justiça negocial. Portanto, consolidado o papel de garantidor da legalidade por parte do Ministério Público, há de caminhar pela via do oferecimento do instituto despenalizador em questão caso o acusado preencha todos os requisitos previstos no art. 28-A. Na esteira do exposto, “o poder” do órgão acusador pode ser observado através do excesso acusatório ao imputar, mesmo sem justa causa, excesso em crimes que superam o patamar da pena mínima para o acordo, ou seja, inflacionam uma acusação sob um falso argumento de evitar com que os réus negociem eventual impunidade ou até mesmo através do oferecimento de denúncias genéricas, essencialmente comuns em delitos econômicos. Inclusive, cabe ressaltar que a acusação pode se utilizar de manobras argumentativas quanto à dosimetria da potencial (mas improvável) pena, nos termos do §1º do artigo. Em outras palavras, verifica-se o que muitos doutrinadores chamam de doping processual: a manipulação de dispositivo processual penal, inserindo material ou método em desconformidade com as práticas democráticas[4]. Logo, há uma violação da boa-fé objetiva do jogo processual, ou seja, falta o Fair Play, o “jogo limpo”. Nesse sentido, bem define Alexandre Morais da Rosa: “O Estado não pode praticar ilegalidades, omitir informações desfavoráveis, valer-se de métodos não autorizados por lei, potencializar inescrupulosamente elementos probatórios, mesmo que os agentes pensem que seja por bons motivos, aumentando a capacidade de se obter vitórias processuais”[5]. Ressalte-se que a busca por vitórias (leia-se: condenações) através do autodoping não guarda qualquer relação com o devido processo legal, pois macula o standard probatório e toda a regra do jogo processual sob um argumento punitivista cada vez mais comum. A lógica processual penal é outra, uma vez que o imputado inicia o jogo “vencendo” a acusação por estar em estado de inocência (Art. 5º, LVII, CF), ou seja, deveria ocupar naturalmente uma posição de ampla vantagem em eventual negociação de acordo com o Estado. Infelizmente, a lógica se inverte por uma espécie de “blefe” acusatório formalizado na “denúncia dopada” do Ministério Público. Consequentemente, a ampla defesa e o contraditório restam prejudicados no decorrer da marcha processual, pois há uma sobrecarga unicamente para a defesa (overcharging). Pois bem, sabe-se que a acusação criminal não é ilimitada. Aqui enfrentamos a atemporal questão do Prof. Agostinho Ramalho Marques Neto: “Quem nos protegerá da bondade dos bons?”[6]. A resposta não é tão animadora, visto que a figura responsável é aquela que senta ao lado na sala de audiência. Logo, o controle dos limites da acusação deve, ao menos em tese, ser feito pelo juiz competente ao rejeitar acusações infundadas, genéricas e ineptas, vide art. 385, do Código de Processo Penal, o que é absolutamente excepcional. Percebe-se, frequente utilização do instituto da discricionariedade acerca do oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal e, mais que isso, a recorrente ausência de balizas delimitadoras na imputação de excesso de crimes no momento da denúncia, que tangenciam o não alcance do requisito deste instituto no que se refere a pena mínima inferior a 4 anos. Da mesma forma, o fenômeno aqui analisado precisa aproximar-se ao Princípio da Correlação, sem a pretensão de esgotar os conceitos apresentados, mas com o intuito de salientar a necessária relação entre a acusação imputada ao réu e a sentença ao final do processo. Assim, embora o acusado possua uma garantia do direito de defesa, que é justamente a não condenação do réu por fatos que não constam na denúncia[7], e não ser cobrado dele crimes dos quais não existem na persecução penal, é relevante indicar que o não oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal tolhe um direito subjetivo – em posição contrária ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [8] e Supremo Tribunal Federal [9]. Sendo assim, o overcharging se apresenta como obstáculo por parte do Ministério Público para a recusa do Acordo de Não Persecução Penal e assim, se apresenta um cenário de não observância do Princípio da Correlação porquanto importante para o devido processo penal. Alinhavado à isto, conforme segue o caput do artigo 28-A, o Ministério Público oferecerá acordo de não persecução penal haja vista se necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, há certa subjetividade nessa disposição que se traduzir como outro ato de discricionariedade por parte da acusação. Conclui-se que se faz valioso frisar a integral observância do direito a ampla defesa, bem como uma maior discussão e, possível descarte a situação de oferecimento de denúncias com acusações genéricas que impossibilitam a utilização do instituto do Acordo. GUILHERME RAMOS JUSTUS Advogado inscrito na OAB/PR sob o n. 70.059. Bacharel em Direito pela UNICURITIBA (Faculdade de Direito de Curitiba) em 2013. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro de Estudos Prof. Luiz Carlos (2014), Especialista em Direito Lato Sensu pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná (2015). Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UNICURITIBA (2020). LETÍCIA RODRIGUES CALAÇA Graduanda no curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico (NUPPE). Pesquisadora bolsista PIBIC 2020/2021 sob orientação do Prof. Dr. André Giamberardino. E monitora no programa de iniciação à docência - bolsista sob orientação do Prof. Dr. Francisco Monteiro Rocha Júnior. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: [1] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 221. [2]Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente. [3]LUCCHESI, Guilherme Brenner; DE OLIVEIRA, Marlus. O controle jurisdicional de legalidade da oferta de acordo de não persecução penal pelo Ministério Público. Migalhas, 2021. Disponível em:https://www.migalhas.com.br/depeso/341671/oferta-de-acordo-de-nao- persecucao-penal. Acesso em: 02 de março de 2023. [4] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. – 6.ed. ver., atual. e ampl. Florianópolis: EMais, 2020, p. 540. [5]ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. – 6.ed. ver., atual. e ampl. Florianópolis: EMais, 2020, p. 538. [6]MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Limites à atuação do juiz. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/leitura/limites-a-atuacao-do-juiz-por-agostinho-ramalho- marques-neto> Acesso em 06 de mar. 2023. [7]“existência de indícios razoáveis de autoria e materialidade de um lado e, de outro, com o controle processual do caráter fragmentário da intervenção penal” LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. 7.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.357/358. [8] TJ, RHC 161251/PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 16 maio de 2022. [9]STF, AgRg no HC 191124/RO, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j.13 de abril de 2021.
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