Artigo dos Colunistas Paulo Silas Filho e Paula Yurie Abiko sobre: ''O velho e o mar'', com uma reflexão por meio dos estudos teóricos de direito e literatura. Vale a leitura! ''Pergunta-se, portanto: o autor sempre está no texto? O liame que os une é algo categórico ou se trata de coisa mais maleável? O texto pertence exclusivamente ao seu autor?'' Por Paulo Silas Filho e Paula Yurie Abiko Uma das questões que ganha campo nas discussões teóricas no âmbito literário é a relação entre obra e autor. Diferentes prismas e vertentes possibilitam a análise por vieses diversos acerca do liame existente entre a pessoa que escreve e a obra por essa produzida. Dentre os pontos a serem considerados e abordados nessa relação, o autor “estar ou não” na obra é um dos de maior relevo e importância.
É que é a partir do estabelecimento da definição dessa relação que as interpretações possíveis sobre determinada obra literária poderão ser tidas como acertadas (ou ao menos minimamente razoáveis), ou se não podem assim ser consideradas dada a impossibilidade de leitura sob um determinado ponto de vista. É dizer que ao se definir até que ponto a relação entre autor e obra é umbilical, torna-se possível nortear minimamente os campos interpretativos que podem ser compreendidos como cabíveis, possíveis ou razoáveis. Questionar se o autor está sempre no texto enquanto tal, portanto, ganha relevo justamente diante do que pode ou fazer a partir disso, repercutindo na forma com a qual o texto pode ser lido e interpretado. No âmbito do movimento “Direito e Literatura”, premissa dessa nossa breve abordagem, esse tipo de indagação enseja na reflexão de um exercício teórico que resulta nas (im)possibilidades de se estabelecer a interlocução entre saberes, principalmente naquela forma compreendida como direito na literatura, donde a obra literária aparece como ponto reflexivo inicial exemplificativo para as questões ditas jurídicas (de modo amplo) venham a ser (re)pensadas. Pergunta-se, portanto: o autor sempre está no texto? O liame que os une é algo categórico ou se trata de coisa mais maleável? O texto pertence exclusivamente ao seu autor? No âmbito da teoria literária, talvez os formalistas russos possam ser apontados como aqueles que deram os primeiros passos para que a relação cativa entre a obra e a subjetividade de seu autor fosse rompida, possibilitando-se uma análise do texto literário sem um vínculo estrito de dependência com o seu autor, ensejando assim num estudo com mais autonomia que se dá na e pela própria obra. Roland Barthes estabeleceu a morte do autor ao expor a existência de uma entidade abstrata que figuraria entre aquele que narra e o que cria. A partir disso, da inexistência do autor que se dá com a morte desse, ter-se-ia aí o nascimento do leitor. A leitura passa a ser então um novo começo, ensejando em leituras tantas quantas forem a ótica de cada leitor. Dessa forma, com Barthes se tem a possibilidade, concreta e metodológica, de situar a literatura, personificada inclusive a partir de uma obra em específico, como algo próprio enquanto autônomo com relação ao seu autor. Por uma perspectiva barthesiana, portanto, assim declarada ou não, é perfeitamente possível a realização de uma abordagem jus literária de forma autônoma com relação ao contexto social do momento da criação da obra ou ainda do vínculo subjetivo para com o seu autor. Mas ainda que diferente fosse, no sentido de se levar em conta uma presença inicial do autor quando da análise de seu texto, estabelecer que tudo aquilo que é e representa o autor como algo que deve sempre estar também presente no texto se trata de um conclusão precipitada e que merece e deve ser vista com cautela e reserva. Quando da construção de um texto ficcional em que há personagens, por exemplo, Christopher Hitchens já declarou que “a falácia de atribuir a um autor as falas e características de personalidade que ele mencionou em terceiros é um erro crasso que somos ensinados a evitar e abominar desde muito jovens” (HITCHENS, 2010, p. 49). Essa é apenas uma das tantas problemáticas nas quais o leitor incauto pode cair ao tomar o vínculo subjetivo entre autor e obra como algo imperativo. Pode-se dizer que, quando do ato da leitura, “o autor desaparece enquanto borbulham as possibilidades” (PIRES, 2018, p. 19). A obra não é o autor, assim como o autor não é a obra. A dúvida e o questionamento são atos permissivos tanto na literatura como no direito, o que acaba por ensejar a possibilidade de leituras diversas de uma mesma obra. Tomemos como exemplo a obra literária de Ernest Hemingway, “O Velho e o Mar”, para articular de que modo é possível ser feita uma abordagem jusliterária no formato direito na literatura diante das considerações até aqui expostas. Inclusive abordagem semelhante já foi feita alhures, quando se apontou que os juristas devem ser “como o velho que continuou enfrentando o mar” (SILAS FILHO, 2018). Ainda assim, a presente ganha e possui corpo próprio, principalmente ao considerar o introito desse texto que pode ser lido como o seu próprio âmago. Salientamos desde já, evitando-se eventuais incompreensões, que se sabe que Hemingway “não escreveu sua obra buscando um contexto jurídico, mas nada impede que se permita uma interpretação de tal forma” (BONA e CANA, 2020, p. 53). Nesse sentido, a presente leitura da obra em questão se dá numa perspectiva própria. “O Velho e o Mar” é uma obra que se tornou best seller mundial e certamente as interpretações em cada país do mundo são muito variadas, tanto por contextos sociais e culturais, como pela subjetividade inerente a interpretação em uma obra literária. Celito de Bona e Ricardo Canan, na recente obra lançada, Sentir o Direito: pesquisa e cultura jurídicas na interação com cinema e literatura, trabalharam “O Velho e o Mar” relacionando-o com o Estado Democrático de Direito, ressaltando assim (BONA; CANAN, 2020, p. 59): ‘’Quando as instituições guardiãs não cumprem seu papel, conta-se com a sorte para a preservação do Estado e de sua Carta. Mas como se chega a isso? Tal como os tubarões que avançam no pescado, conforme se apresenta na obra de Hemingway (2019), também existem os predadores que atacam, enfraquecem e devoram o Estado Democrático de Direito e a Constituição’’. Há diversos artigos científicos com variadas interpretações no Brasil e no mundo que propõem a abordagem sobre a obra literária em comento por diversas perspectivas, pelo que se tem diferentes formas de compreender e refletir sobre o texto literário em questão. É nisto que reside a beleza da literatura, da poesia, e das artes em si: a possibilidade do leitor também poder interpretar conforme sua subjetividade. Além da literatura, a poesia possui um papel fundamental na reflexão e aprimoramento do senso crítico de seus leitores. Apenas para citar alguns dos grandes poetas brasileiros, têm-se Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Cecília Meireles e Vinícius de Moraes (ou o poeta do amor), que possibilitam por suas poesias transcender o texto escrito, causando as mais diversas reflexões e sentimentos em seus leitores. Uma parte da obra de Carlos Drummond de Andrade, a exemplo de “A Rosa do Povo”, possui papel fundamental para fomentar o senso crítico, eis que escrita na época do Estado Novo do Governo Vargas, eminentemente ditatorial. Tem-se assim em um trecho de ‘Consideração do Poema’ (DRUMMOND, 2015, p. 104):
Quantas interpretações são possíveis em apenas um trecho desta poesia? Conforme já salientado, nisto reside a beleza da poesia e literatura, afinal, o poeta Antonio Skármeta já dizia, em O carteiro e o poeta: ‘’ A poesia não pertence a quem a escreve, mas àqueles que precisam dela’’. Diante do que foi aqui brevemente exposto, salientamos ser possível – e até mesmo necessário – a interpretação do texto literário para além da subjetividade do autor. Não se trata de ignorar ou deixar de levar em conta a sua pessoa. Diz-se apenas que os limites interpretativos estão para além de qualquer imperativo que restrinja a possibilidade da leitura da obra de acordo com aquilo que é ou pensa a pessoa do autor – inclusive para questões além do texto. Paula Yurie Abiko Pós graduanda em direito penal e processual penal - ABDCONST. Graduada em direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE). Membro do Grupo de Pesquisa: Modernas Tendências do Sistema Criminal. Membro do grupo de pesquisas: Trial By Jury e Literatura Shakesperiana. Membro do GEA - grupo de estudos avançados - teoria do delito, (IBCCRIM). Integrante da comissão de criminologia crítica do canal ciências criminais. Integrante da comissão de Direito & literatura do Canal ciências criminais. Paulo Silas Filho Mestre em Direito Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Professor de Processo Penal, Direito Penal e Criminologia (UNINTER e UnC) Advogado Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Diretor de Relações Sociais e Acadêmico da APACRIMI E-mail: [email protected] REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987, Nova reunião: 23 livros de poesia, 1ª edição, São Paulo, Companhia das Letras, 2015. BONA, Celito de; CANAN, Ricardo. Uma leitura de “O Velho e o Mar” em torno ao estado democrático de direito. In: ZAGHLOUT, Sara Alacoque Guerra; DIAS, Paulo Thiago Fernandes; BARRETO, Vicente de Paulo. Sentir o Direito: pesquisa e cultura jurídicas na interação com cinema e literatura. Porto Alegre: Editora Fi, 2020. HITCHENS, Christopher. A Vitória de Orwell. São Paulo: Companhia das letras, 2010. PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedade de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. 1ª Ed. Florianópolis: Habitus, 2018. SILAS FILHO, Paulo. Humilde grandeza: o velho que enfrentou o mar. Disponível em: http://www.salacriminal.com/home/humilde-grandeza-o-velho-que-enfrentou-o-mar. Sala de Aula Criminal. ISSN: 2526-0456. Acesso em: 16/05/2020. NOTAS: [1] Alguns artigos sobre as obras de Ernest Hemingway são relacionados com críticas sociais. Interessante notar um fato da vida do autor em análise histórica: em 10 de maio de 1933, começou na Alemanha nazista a queima de livros considerados subversivos ao governo de Hitler, incluindo muitas obras clássicas da literatura. Hemingway fora um desses autores que teve seus exemplares queimados. <https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2016/07/9-fatos-inacreditaveis-sobre-vida-de-ernest-hemingway.html>, acesso em 18 de maio de 2015.
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |