Uma atitude importante para qualquer pesquisador é a desconfiança. Não aceitar um fenômeno tal qual ele se apresenta aos sentidos ou aos significados mais comuns e rasteiros atribuídos a ele. Não aceitar, em especial, os discursos “oficias” ou “tradicionais” que visam explicar, descrever ou justificar o fenômeno.
Em sociologia essa atitude é ainda mais necessária. Isso porque fenômenos sociais são complexos e, por vezes, carregados de significados simbólicos, ocultos ou imersos em um caldo cultural que precisa ser compreendido antes que se possa de fato conhecer determinado acontecimento ou abstrair dele uma categoria descritiva. Quando se estuda o conflito social em sua relação com a sanção penal, ou seja, quando se estuda o sistema de justiça criminal de um ponto vista mais amplo ou transversal, alimentando-se daquilo que é produzido por diferentes áreas de conhecimento, uma pergunta fundamental emerge para o pesquisador: qual o critério pelo qual deve ser avaliado o funcionamento do sistema de justiça criminal? A escolha feita terá um efeito significativo em relação ao olhar que se lançará para quase tudo que envolve, influencia ou resulta do exercício de poder punitivo. De forma esquemática (e, portanto, em algum grau redutora, mas ainda assim útil) pode-se dividir as variáveis de avaliação em dois prismas principais, capazes de reunir em si as mais diversas manifestações. São elas a eficiência e a legitimidade. Estas categorias não são absolutamente excludentes, mas de forma geral indicam resultados bastante distintos na avaliação que se faz do sistema penal. Aos que decidem, pelos mais variados motivos, avaliar o exercício de poder punitivo a partir do paradigma da eficiência, as conclusões tenderão a ser negativas, ou seja, a percepção de que o sistema penal não funciona será a mais comum. Obviamente, o paradigma da eficiência depende de um elemento adicional, qual seja, a resposta à pergunta fundamental: para que deve servir a sanção penal? Porém, é seguro afirmar que a conclusão será negativa, independentemente da forma como será respondida esta pergunta, porque o pressuposto acaba por determinar o viés de avaliação. Dito de forma mais clara: a própria decisão de avaliação por eficiência já traz em si o pressuposto de que o avaliador está à procura de um dado calcado na suposição de que o sistema penal possui uma finalidade derivada do direito. Quer esta seja a prevenção, quer a neutralização seletiva ou mesmo a pura retribuição estatal, a forte tendência é de que o avaliador conclua pelo veredito de que a sanção penal não funciona. A única possibilidade de resposta diversa coerente seria daquele que percebe no sistema penal funções não relacionadas ao direito, mas em paralelo ou até mesmo em contradição com este. Porém, como afirmado acima, estas já não partem do pressuposto citado, o que nos permite fazer a afirmação pela conclusão geral de ineficiência. Um ponto interessante tem que ver com a questão político-jurídica de se o sistema penal é engendrado para funcionar (do ponto de vista das funções teóricas da pena) ou não. Comentando este tópico, Pavarini (em obra conjunta com André Giamberardino) aduz:
É em virtude deste diagnóstico, calcado por extensa comprovação empírica, que surgem discursos funcionalistas cada vez mais radicais no direito penal. Estes visam, acima de tudo, desvencilhar-se da necessidade de uma função externa ao exercício de poder punitivo. Significa dizer que a sanção penal poderia operar de forma livre, numa releitura dos sistemas pré-penais, ou seja, através da lógica de aplicação de um poder punitivo não adstrito a normatização penal e processual penal. É também em virtude desta lógica que o discurso político (populesco) pode valer-se de campanhas de criminalização e crescimento da severidade penal de modo recorrente, na promessa sempiterna de busca por efetividade e certeza. Muitas questões adjacentes a estes pontos poderiam ser levantadas. Por ora, no entanto, pretende-se contrapor a ela uma outra visão, justificando os motivos pelos quais esta última parece mais coerente com o propósito de construção de um país regido por um governo constitucional e democraticamente estabelecido. A proposta é a avaliação em termos de legitimidade. Quais seriam os motivos que levam esta proposta a aproximar-se mais dos fundamentos de um Estado Democrático de Direito? Basicamente isso ocorre porque numa democracia constitucional a regra é a liberdade. A conjugação de alguns fundamentos encontrados em nossa Constituição da República deixa isso bem claro: a presunção da inocência (Art. 5º, LVII); a inviolabilidade do direito à liberdade (Art. 5º caput); o direito fundamental de liberdade de locomoção (Art. 5º, XV); o direito fundamental de legalidade para imposição de restrições à liberdade (Art. 5º, II). O que todos estes elementos constitucionais trazem à luz é que, sob um Estado Democrático de Direito, a liberdade será mantida até as últimas consequências, sendo violada legitimamente pelo Estado apenas sob circunstâncias e procedimentos bem específicos. Deriva daí a necessidade de se avaliar o sistema penal a partir de sua legitimidade. Toda coação estatal deverá passar pelo crivo da adequação às normas constitucionais, através das quais será possível atribuir ao sistema de justiça criminal o status de legítimo ou ilegítimo. Luigi Ferrajoli busca, em Direito e Razão, construir um Sistema de Garantias que se adequa, com suas peculiaridades, a esta exigência. Ele não tem por mote exatamente reduzir (e definitivamente não deseja abolir) o exercício de direito penal, mas torna-lo legítimo. Assim como no caso da avaliação por eficiência, a conclusão quase consensual de quem hoje estuda o direito penal com alguma sinceridade[1] é de que ele padece gravemente de ilegitimidade. A partir deste diagnóstico, as propostas se dividem entre tentativas de religitimação, de redução ou de substituição do sistema de justiça criminal. De qualquer forma, neste pequeno espaço se procurou apenas destacar que a escolha do paradigma de avaliação tende a ser fundamental no direcionamento das sucessivas conclusões que se terá sobre o exercício de poder punitivo. Conseguir conduzir nossas pesquisas, conhecendo ambas as propostas com profundidade, é fundamental. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da World Complexity Science Academy Membro do Research Committee on the Sociology of Law Advogado Referências: [1] O termo sinceridade parece ser imprescindível aqui porque há profissionais dispostos a construir um discurso que visa simplesmente rebater o que acreditam ser excessos“garantistas” (termo usado por estes muitas vezes sem o menor conhecimento do que realmente o mesmo significa) e que chegam ao absurdo de negar o caos penitenciário ou reduzir a gravidade do problema a partir do uso retórico de argumentos cínicos e simplistas FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da Pena e Execução Penal: Uma Introdução Crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. ZAFFARONI, Eugenio R. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2014. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |