Sem dúvida nenhuma, a típica frase propagada “bandido bom é bandido morto” traz uma ampla reflexão atualmente, mesmo já sendo relativamente antiga. Como tudo aquilo que é repassado sem um olhar crítico e sem filtros, a ideia que carrega acaba sendo repetida como uma constatação, justamente pelo fato de já estar intrínseca na mente coletiva, excetuando alguns poucos indivíduos ou grupos que procuram pensar de maneira distinta.
Em um estudo sobre a memória discursiva em redes sociais, Melo (2014), aponta que os fatos enunciados pelos meios de comunicação remetem, normalmente a um acontecimento atual, mas podem também fazer referência a coisas passadas. Consequentemente, isso faz com que a ocorrência seja relembrada e vivenciada mais de uma vez, perpetuando aquilo que ela prega. Assim, aos constantes atos de violência contra supostos bandidos, a frase inicialmente citada tem reaparecido com frequência, como se já fizesse parte de uma mentalidade social. Para o autor, ainda, nesse caso, o modo de enunciação está correlacionado, em geral, a posições que defendem os atos violentos (MELO, 2014), fato que nos permite imaginar se a questão principal não é a punição do comportamento errado, mas sim o sentimento de querer fazer “justiça” com as próprias mãos, através da premissa “olho por olho, dente por dente”. Portanto, “a própria defesa ou recriminação da expressão surge como um novo acontecimento, o que dá outra dimensão aos embates” (MELO 2014). Recentemente, uma pesquisa foi divulgada e seus resultados acabam por reforçar um outro fator na disseminação do “bandido bom é bandido morto”. Segundo o Instituto Ipsos, que ouviu 1200 pessoas, em 72 municípios das cinco regiões brasileiras, a maioria da população é a favor dos direitos humanos (63%); mesmo assim, acreditam que eles defendem mais os bandidos que as vítimas. Entretanto, um dado curioso é que, enquanto 94% das pessoas responderam que já ouviram falar sobre Direitos Humanos, apenas 50% admitem que gostariam de saber mais sobre a questão (SHALDERS, 2018). Silva (2018) propõe que a compreensão ainda remete à lógica do privilégio, principalmente em relação aos direitos dos presos, e não ao direito à vida, que deveria ser garantido a todos. Isso acaba fazendo com que muitos indivíduos compactuem com práticas violentas, como uma forma, talvez, de exteriorizar uma indignação latente, pois acredita-se que “pessoas de bem” não são as que se beneficiariam desses “privilégios”. Basso (apud. SHALDERS, 2018), professora de Direito Internacional na USP, constata que a percepção dos brasileiros é de que tais garantias mínimas servem para defender os bandidos, sendo que negar os Direito Humanos – seja para os presos ou a qualquer outro grupo social – não significa estar mais protegido, mas exatamente o contrário. Muniz (2017) revela algo que já era possível de ser imaginado ao dizer que, ao admitirmos a regra “bandido bom é bandido morto” conforme dita a senso comum, teríamos que admitir também que a mídia julga e condena, já que este senso comum é formado justamente pela repercussão que ela faz dos casos que noticia. Assim, não fica difícil trazer uma imagem que nem sempre corresponde com a realidade encontrada em nosso país, direcionando o pensamento das pessoas de maneira a reafirmarem algo que não foi questionado, mas que pode ser replicado em uma das maiores plataformas de informações: a internet. Voltando à questão da propagação de certas ideias em redes sociais, visto que elas mantêm uma grande parcela da interação humana contemporânea, Melo (2014) conclui também que a própria interface desse tipo de ferramenta diz mais respeito a uma “interação para si”, pois, o usuário pode se dirigir, inicialmente, aos outros, mas o efeito esperado é sobre si, já que há o monitoramento da resposta: quantas curtidas, quem comentou, quantas vezes foi compartilhada... indicando, então, que esse discurso fomentado em rede, coletivamente, nada mais é que o resultado de uma ação mais individualista que colaborativa. E, quando não há a real colaboração de diferentes pessoas – diferentes formas de pensar – não pode existir reflexão, somente uma incessante replicação de ideias que não dão espaço a qualquer tipo de evolução. Decorrente disso tudo, o que podemos notar é uma desumanização daqueles que, de alguma forma, quebraram as regras sociais. Mas quem acredita ter propriedade ao falar que um outro ser deixou de ser humano e, por isso, não merece dignidade em seu tratamento, também já perdeu um certo senso de moral. Quem mantém a concepção de que os Direitos Humanos é um privilégio, possivelmente, não percebe ou considera a violação dos direitos cometidos contra presos como algo ilegal ou injusto (SILVA, 2018). Mesmo assim, são direitos relacionados à própria vida, e, como tais, se aplicam a quaisquer indivíduos, sem distinção. Deve haver penalidade e culpabilização para todos aqueles que não cumprem as leis, para isso não há margem para dúvidas. Entretanto, não há como caminhar para uma sociedade sem criminalidade se a mentalidade comunitária permanece enraizada em um modelo higienista que prega a extinção daquilo que foge às regras no lugar de uma resolução eficaz e um trabalho de prevenção. E, já que estamos falando de pessoas, os Direitos Humanos devem atuar em prol de todos que venham a ter seus direitos fundamentais prejudicados, dentro ou fora dos muros prisionais. Não se pode esquecer também, diante do exposto, que o Estado tem sua responsabilidade em equilibrar as ações e colocar em prática o que, de fato, precisa ser feito, pois, também de acordo com a pesquisa anteriormente mencionada, 66% da população não sente estar amparada, percebendo um vácuo entre o que se espera que sejam esses direitos e o que é detectado na realidade (SHALDERS, 2018). Por isso, o ciclo vicioso montado por Muniz (2018), reflete bem a estrutura brasileira atual, fazendo com que muitos fatores se interliguem para a ideologia “bandido bom é bandido morto”: Mídia ➝ Exigências da população ➝ Estado inoperante ➝ Reclamação da população ➝ Legislador responde com leis mais duras ➝ Mídia... Nesse meio, parece não haver uma real reflexão para aquilo que está acontecendo, mas apenas uma replicação de ideias que são reforçadas pelo cansaço que é pensar criticamente diante de um Estado inexpressivo e de situações que fogem do senso comum. Portanto, é preciso uma tomada de conscientização para que o ciclo descrito seja quebrado a fim de proporcionar um ambiente em que as pessoas, de fato, pensem e reflitam sobre a situação atual, fugindo da simples replicação de ideias que já não cabem mais. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MELO, Lafayette B. Memória discursiva em redes sociais: o caso do “bandido bom é bandido morto”. In. V Colóquio da ALED. Disponível em: <http://www.revistaaledbr.ufscar.br/index.php/revistaaledbr/article/view/90/85>. Acesso em: 20 mai. 2018. MUNIZ, Montgomery W. “Bandido bom é bandido morto!(?)”. Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/Montgomery_Muniz/publication/40652789_Bandido_bom_e_bandido_morto/links/59dd5ac3a6fdcc276fa2e78c/Bandido-bom-e-bandido-morto.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2018. SILVA, Angélica A. Direitos humanos para bandidos: representações sociais dos direitos humanos por reeducandos do sistema penitenciário do Estado de Pernambuco. Disponível em: <https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/18457/1/Dissertação_ANGÉLICA%20ALVES.pdf>. Acesso em 20 mai. 2018. SHALDERS, André. Dois em cada três brasileiros acham que ‘direitos humanos defendem mais os bandidos’, diz pesquisa. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44148576>. Acesso em: 20 mai. 2018. 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ISSN 2526-0456 |