Bauman foi um pensador profícuo da sociologia e da filosofia. Sua fala, seu discurso, sua escrita, conquistou a muitos. Não foi a toa que a dor pela sua perda nesta última segunda-feira foi sentida no mundo todo. Vai-se o corpo, ficam suas lições. Sua mensagem permanecerá pulsante, vez que a liquidez do mundo que foi constatada pelo sociólogo é uma condição atual da era em que se vive.
Bauman foi o responsável por cunhar um conceito próprio ao analisar a sociedade atual. Tal conceito ganhou corpo e forma em diversas manifestações da sociedade. O líquido, a liquidez, pode ser vista em diversas estruturas e manifestações do corpo social. Justamente diante da ausência da concretude de valores estabelecidos, no seguimento de basilares previamente erigidos, da atenção a algo efetivamente constructo, é que se disse da inexistência de algo sólido, fixo. Daí a liquidez, que dada a sua evidência constada pelo autor, fez-se constar em diversos títulos de suas obras. Seguindo se perto o nobre sociólogo, o mundo passou a acompanhar o desvelamento dos tempos líquidos, da modernidade líquida, do medo líquido, do amor líquido enfim, do mundo líquido. Mesmo órfãos, devemos manter acesa a chama da mensagem que foi elaborada pelo notório sociólogo. Vale sempre lembrar da importância e necessidade de se fazer uma leitura e um estudo interdisciplinar de todo e qualquer campo do saber. Para o Direito, a sociologia e a filosofia são pisos importantíssimos. Na base do Direito, em sua formação, de tudo aquilo que o gravita, sociologia e a filosofia se destacam. Desta forma, os ensinamentos de Bauman devem ser levados em conta por todos aqueles que estudam e operam o Direito. Com base nas diretrizes expostas e propostas pelo autor, é possível haver uma maior compreensão de todos os fenômenos sociais que impactam sobre o Direito ou que dele emanam. Pela sociologia é possível analisar, aprofundar e compreender as vísceras de tudo aquilo que passou e passa a ser objeto de estudo da criminologia. Num aspecto mais amplo, a sociologia trata também de diversas problemáticas em que se debruça a criminologia. Bauman, ao abordar a sociogênese daquilo que chamou de “síndrome poder/conhecimento” quando da instauração de um novo paradigma no campo social, a saber, o absolutismo que rompeu com uma ordem social outrora vigente, reformulando todos os componentes do corpo social, explica com maestria a nova roupagem que foi dada à parcela da sociedade, quando dali em diante um processo de segregação, de exclusão, de afastamento, foi criado – o qual permanece vigente até hoje. Nas palavras do sociólogo:
Não seria possível esmiuçar todo o pensamento deste eclético autor, produtor de um extenso trabalho literário. É preciso ressaltar, inclusive, que sofremos a limitação de termos apenas uma fração de suas obras traduzidas para o português. Ainda assim, muito se pode compreender da visão do sociólogo polonês através dos escritos que temos disponíveis. Alguns dos conceitos arduamente trabalhados pelo autor, em adição aos já expostos, se relacionam com o consumismo, o individualismo, o mal e o medo. Para tratarmos da percepção trazida por Bauman para cada um destes elementos seria necessário escrevermos longamente. Não sendo isso possível neste espaço, nos limitamos a pontuar algumas pérolas que se colhem de suas lições. Tratando, por exemplo, da questão do medo, Bauman identifica um processo longo através do qual o pensamento “moderno”, empossado do dever de livrar o homem das garras das incertezas trazidas pelo pensamento metafísico e da imprevisibilidade da “natureza”, procurou implantar no homem uma consciência e uma confiança inegociável na razão como instrumento apto a trazer a derradeira libertação. As apostas foram altas, as expectativas ainda mais. O percurso a ser seguido apontava um futuro em que a humanidade, dotada do método científico e da firme capacidade de previsão e solução de problemas, poderia reduzir ao grau mínimo suas inseguranças. A natureza seria domada, as explicações racionais elucidariam os segredos, trariam a verdade à luz, aumentariam a riqueza das nações e produziriam uma sociedade mais feliz e apta a trilhar o caminho do progresso. O problema, porém, é que de muitas formas o projeto inicial sofreu “desvios” em seus reais “propósitos”, ainda que, conforme o autor, trabalhar a categoria de propósitos ao analisar o desenvolvimento da fase sólida da modernidade para sua fase líquida não pareça ser o mais adequado, dado a inconstância dos movimentos e queda das barreiras soberanas intrínsecas ao mundo pré-globalizado. O fato é que a expectativa de um mundo melhor, mais seguro, mais livre, mais feliz, pelo uso da racionalidade pura não se concretizou. Pior do que isso. Se a humanidade conseguiu um grau de sucesso que pode ser adjetivado de surpreendente em dois seguimentos que fundamentavam o medo (imprevisibilidade da natureza e desgaste do corpo humano), não é possível dizer o mesmo quanto a uma terceira categoria dos alicerces sobre os quais os piores medos se fundam: as diferenças entre os homens. Estas causaram, na exata medida em que o projeto “moderno” se estabelecia e prodigalizava suas conquistas, um abismo fadado a eclodir nos mais horrendos conflitos em que a humanidade já se viu imersa. Conforme o autor esclarece:
Partindo deste diagnóstico, Bauman traz à tona a fluidez e ubiquidade do medo em nossos tempos, extravasados no “vício pela segurança”, perpetrador das mais absurdas e cosméticas tentativas de se recuperar a autoconfiança e amenizar o “pânico da violência” com a expansão de medidas de segregação e violência, num círculo infinito, retroalimentável e de dimensões crescentes. A metáfora da “liquidez” – utilizada por Bauman para se referir à modernidade, à sociedade, aos indivíduos, aos relacionamentos – é construção teórica das mais adequadas. Vivemos tempos em que nada mais é sólido. Os indivíduos não se preocupam em desenvolver uma vida comunitária e construir elos indissolúveis, ao contrário, cada vez mais se voltam às próprias satisfações imediatas. Em entrevista recente, Bauman conta que, conversando com um jovem, este lhe disse que tinha conseguido quinhentos amigos no Facebook em um único dia. Bauman respondeu que, em 86 anos de vida, não tinha conseguido quinhentos amigos. Para Bauman, a substituição do real pelo virtual tem feito com que os relacionamentos passem a ser descartáveis ao menor sinal de inconveniência. No mundo virtual não tem choro, súplica, sofrimento, nada disso, basta se desconectar; você exclui um amigo hoje e amanhã faz outros quinhentos. Mas o que é amizade em “tempos líquidos”? Bauman “se desconectou”, mas as suas ideias representam um meteoro extremamente sólido que se chocou com o oceano “de liquidez” em que estamos submersos. Que o pensamento de Bauman possa ecoar por muitos séculos. André Luís Pontarolli Paulo Eduardo Paulo Incott Paulo Silas Taporosky Filho Referências: [1] BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 65 [2] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 98 Comments are closed.
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