BAUMAN E O DESENCANTAMENTO COM O COLETIVO: MAIS UM PASSO DA FLUIDEZ DOS EVENTOS DA MODERNIDADE12/11/2020 Artigo do colunista Iverson Kech no sala de aula criminal, sobre Bauman e o desencantamento com o coletivo, refletindo sobre a modernidade, vale a leitura! '' A sociedade da liquidez perde sua solidez e sua robustez que a afirmava como catalizadora de sensações da urbanidade, partindo para iniciar uma varredura daquilo que deve ser excluído para debaixo do tapete,[5] para fora das fronteiras que margeiam a sociedade. Para isso, instrumentos de controle social, banalizando a condição humana, são vistos diariamente em ruas de grandes cidades, onde o ódio e a mixofobia tomam suas proporções de exagero. Essas ações superestimadas ultrapassam também o conceito de etnia ou credo, temendo-se assim o estranho, aquele nunca antes visto''. Por Iverson Kech Ferreira A sociedade na contemporaneidade perdeu o sintoma da expectativa, assim descreve Zygmunt BAUMAN, quando a liquidez dos eventos se transforma em uma parte da personalidade de cada um. As informações possuem uma velocidade descomunal, os bens são deixados de lado por um novo produto, ainda melhor que o anterior, o capitalismo desenfreado cria ilusões em quem tem condições financeiras, bem como, em quem não tem determinados requisitos econômicos.[1]
Os anseios se baseiam em poder comprar e as necessidades em dever possuir aquilo que se objetivou comprar. Se há real necessidade nessa compra, não importa, pois se vive em dias de efemeridades e consumo conspícuo[2], como bem definiu PARETO em sua técnica definida por ofelimidade.[3] O medo de perder esses bens é muito grande, o medo do outro é maior ainda. Bauman define que entre esses temores o pavor que se tem daqueles considerados diferentes dentro de uma sociedade, como os estrangeiros, os desiguais e os estigmatizados perfazem o rol de pessoas não gratas que devem, a princípio, manter distância dos domínios das classes estabelecidas no interior do corpo social. Não obstante, o diferente/estrangeiro passa a ser um mero “ser mitológico” encontrado no centro das grandes cidades. Longe da essência dos centros e das metrópoles, espaços de proteção são criados e envoltos por grades, câmeras e segurança; que revelam uma forma de comportamento: uma fuga e proteção da diversidade cultural que se encontra nos centros, considerada por BAUMAN como “mixofobia”.[4] Não fosse somente isso, a grande insegurança gerada pela falta de convivência e pela liquidez das relações transforma o homem, antes sociável e vivente em um grupo social, hoje, singular e individualizado, confirmando assim a falta de uma liberdade que somente pode ser assegurada coletivamente. Todo esse conceito pulsa em uma nova e atroz perspectiva: cidadãos cada vez mais imunes aos apelos da vida em sociedade, pessoas centradas em seu ideal de medo do outro e de consumo. As tradicionalidades, segundo BAUMAN, perdem sua força quando a liquidez fulgura como novo fundamento, uma vez que os laços humanos são liquefeitos e raramente se mantêm. A sensação apolítica das pessoas é crescente e não há retorno imediato a um ideário de questões públicas ou políticas, isso não mais reflete os anseios de uma sociedade que acredita que já conseguiu tudo o que precisa para viver. A sociedade da liquidez perde sua solidez e sua robustez que a afirmava como catalizadora de sensações da urbanidade, partindo para iniciar uma varredura daquilo que deve ser excluído para debaixo do tapete,[5] para fora das fronteiras que margeiam a sociedade. Para isso, instrumentos de controle social, banalizando a condição humana, são vistos diariamente em ruas de grandes cidades, onde o ódio e a mixofobia tomam suas proporções de exagero. Essas ações superestimadas ultrapassam também o conceito de etnia ou credo, temendo-se assim o estranho, aquele nunca antes visto. Os estudos das formações sociais, que delimitam o espaço estrutural das relações de poder entre os mais diversos alicerces sociais existentes, como grupos, classes, subgrupos e subclasses, entre essas, os estabelecidos e os que conotam marginalidade (dessa questão à margem entenda-se não participante de uma maioria, ou daquele contexto estabelecido) passam a uma transfiguração do que já foi pesquisado em épocas recentes. A questão agora se define pela consciência de uma superestrutura montada pelo cotidiano formal, pelos singelos acontecimentos do dia a dia pós-moderno. Analisar a rotina dos elementos da vida habitual pode ser a peça fundamental para que se possa entender os caminhos tomados, por intermédio de um jocoso jogo de interesses, entre grupos distintos no âmbito social. Uma coletividade se define por seu sedimento bem estruturado independente de outros aglomerados viventes na mesma societas,[6] transformada e solidificada por sua cultura, tradições e troca de informações, que estão sendo deixadas de lado e esquecidas. A essa nova fase que GIDDENS nomeia como sociedade moderna tardia, ou surmoderne para BALANDIER, reconhecida também por BAUMAN como pós-moderna, traz sua peculiaridade submersa em uma inexatidão constante. De um período do tempo para hoje, o salto envolvendo tecnologias foi fenomenal. Os mercados se reagruparam sobremaneira, esperando sempre as quedas de governos totalitários na América Latina e em outras partes do globo (como exemplo), arrumando-se para um paradigma que conceba o consumismo como seu ápice moral.[7] Esse dia chegou e não tardou em realizar suas proezas em meio ao contexto social, transformando a maneira de se entender e assim, estudar os tratos sociais. Ocorreu que no meio do caminho, sabe-se lá onde, mas se acredita que seja entre os ares do paradigma tecnológico que forçosamente adentrou o mundo; uma ponte foi quebrada. O mundo conheceu por intermédio da tecnologia efetivos efeitos positivos, mas também, perdeu um pouco daquilo que mais o mantinha como sociedade: a convivência de fato. Os laços nos dias de hoje são efêmeros, como os produtos comprados e que são criados com uma obsolescência programada. E com esse novo caminho as rotas levaram cada vez mais ao consumismo, ao gasto e ao apelo do mercado, que geralmente é tão forte o quanto pode ser. Nesse turbilhão, a divisão entre os grupos se dá sob uma nova perspectiva, numa ótica de aparências daquele que tem o poder de compra entre aquele que não o tem. O consumo conspícuo oferece a queda da tristeza e da falta de convivência, aumento do poder e assevera a posição, fincando a bandeira do grupo do qual se faz no mundo: no grupo consumidor. Entre os status garantidos pelo consumo, nota-se a passagem da efemeridade[8] que garante uma felicidade constante no detentor do poder de compra, mas não uma satisfação. Felicidade é o que se pode comprar, satisfação ainda tarda e nesse sistema, para BAUMAN, não chega a ser alcançada. No meio disso tudo, desde o momento em que a ponte foi abruptamente rompida entre um e outro paradigma, está a fragmentação social[9] entre os espaços sociais, entre as próprias relações do ser humano, cortada em partes que nunca chegam a ser inteiras, moldando um caráter de desapego entre os cidadãos, onde o que é problema de um não é de outro e vice versa. Não existe mais argamassa social ou a solidariedade humana, sentimentos rompidos pelo medo do outro e pelo receio da intrusão desse estranho em seu modelo de vida. Dessa forma, todos os sentidos que antes agregavam foram polarizados, os espaços públicos (praças, parques) pertencem agora apenas para alguns poucos desafortunados e são alvos do sistema de defesa social, mansões que vendem produtos e status social (shoppings) são frequentados por outros e esses dois agrupamentos se distanciaram sobremaneira, de certa forma, que não há mais retorno pacífico. Ao invadir um o lugar do outro nos dias supermoderne, sentimentos enraizados em medo, pavor, mixofobia, racismo e intolerância são o estopim para que o sistema penal venha a ser o divisor de águas, como um cego ao meio do tiroteio que somente deseja por ordem ao caos para que possa continuar sua seletiva jornada.[10] Ao aspecto consumista dentro das sociedades, mesmo que ainda exista subgrupos e grupos definidos como consumidores natos, existe uma grande fatia da sociedade que não se encaixa nessa vida de consumo, mas que, batalha para que possa fazer parte também do quinhão que todos beliscam. Há os desejosos por consumo que não chegaram ainda lá, que estão à margem do agrupamento maior, que são os desempregados, os adoentados, aqueles que, por um motivo ou outro da vida e suas consequências não podem ou não conseguem fazer parte ainda desse mercado consumidor: são considerados os desajustados sociais. Essas pessoas formam o ajuntamento dos bestializados pelo sistema, criando então um novo grupo passível de uma estigmatização rotulante que os identifica. Essa identidade, formada pelo convívio social entre os integrantes do grupo, pode vir a ser rachada pela falta de poder de compra, de uma forma bem sucinta, pelo motivo de não fazer parte do mercado, não consumir como os outros, não permanecer como consumidor ativo, mesmo que em suas efemeridades.[11] Assim, a identidade formada durante anos passa a ser questionada pelo próprio sujeito bem como, pelos indivíduos que compõe o agrupamento e lhe são próximos. Esse divisor de águas é a criminalização dessas pessoas, a separação daqueles que estão inertes diante a uma massa consumidora, diante aqueles que têm o poder de compra. Destarte, o sistema diferencia, entre aqueles que perfazem um grupo e outros que perfazem o mesmo grupo, mas não podem, em sua totalidade, fazer jus ao mesmo status dos outros componentes. As pessoas que estão já marginalizadas diante aos estabelecidos e formam seus grupos de semelhanças e de segurança, como comunidades, favelas, cortiços, pobres, imigrantes, entre outros; são as visadas para, junto dos desempregados, doentes, dos infortunados por qualquer momento ou casos da vida, pessoas que não fazem o modelo exato do cidadão dessa modernidade tardia; ao estigma. Para essas resta a criminalização do sistema, em um primeiro momento, a criminalização dentro dos grupos, que mesmo sem quebrar qualquer tipo de regra penal pode oficializar o rompimento[12], e uma vigilância constante dos órgãos de proteção e segurança pública. O estigma agora parte de uma formação diferente, outrora, quando se apresentavam estranhos à frente, o status social e seus atributos que definiriam a sua identidade social eram sopesados de forma a estruturar o modelo pelo qual se estigmatiza.[13] Hoje, conforme os dias da modernidade e os reflexos de uma convivência entre muros, trazida por Bauman como a mixofobia e o medo do estranho, esse estigma se torna inerente ao ser diferente, ao estranho e ao estrangeiro. Nos dias atuais apenas a diferença já é passível do estigma, e num amplo consumismo, a mácula pode vir contra aquele que não faz parte do mundo consumidor e do consumo desenfreado. Entre esses estão todos os numerados no parágrafo anterior, os que perfazem as fileiras dos ingressos dia a dia no sistema criminal, vistos como desajustados e desocupados, que tanto são encontrados em meio aos espaços de convivência social (praças, parques), quanto aos que jazem em longas e demoradas esperas nas filas de emprego das cidades, e aqueles não são tecnologicamente interligados ao mundo da conexão e da tecnologia. Dessa forma, estigmatizar e criminalizar certas pessoas, escolher aqueles para quem o sistema deve vigorar contra, é mais fácil do que manter convivência. A facilidade com que selecionam esses desgarrados do rebanho é tremenda, e contra esses, a única proposta é a vigilância serrada dos órgãos de controle, tanto estatais quanto particulares (segurança privada, fábricas e controle internos)[14]. A negação da vida do outro que não compartilha dos mesmos meios, tanto nos espaços públicos quanto dentro dos grupos é o estopim que poderá ser aceso a qualquer momento, jogando todo o sistema regulamentador contra apenas um agrupamento, contra apenas um inimigo: o diferente, aquele não reconhecido como consumidor nos dias atuais. Os tempos de solidariedade humana e de construção de uma argamassa social formada pelos valores da alteridade e cidadania não passam de utopia em frente ao cenário do amplo mercado e da estigmatização daquele que não faz parte dessa realidade. O perigo iminente é a distinção, tanto do criminoso quanto daquele passível em ser o criminoso, e a aceitação do estigma. Essa é a sociedade que BAUMAN enxerga individualista, insegura e pautada no medo. A distância criada entre seus moradores é tremenda, causando assim uma enorme falta de relevância entre as pessoas, o que enfatiza o individualismo. O descontentamento com o trato político, econômico e legislativo, parte também dessa ruptura de um trato social constante, de uma sólida perspicácia em entender e aceitar a comunidade em que se vive. Destarte, a sociedade dividiu-se entre grupos estabelecidos e estigmatizados e entre si travam uma batalha de pertencimento e segurança individual, identidades que se forjam meio ao turbilhão gerado pelo mercado, pelo consumismo e pela ausência da convivência. O mal-estar hodierno em que se vive, é explicado pelo desencantamento por matérias como a convivência, a solidariedade e a política, figurando uma crise, quando é somente pelo debate e pelo sentido crítico que se pode alcançar um senso comum em prol das boas práticas e em busca de uma efetiva promoção humana. Iverson Kech Ferreira Mestre em Direito pela Uninter. Advogado especializado em Direito Penal. Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Internacional. É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal. Referências Bibliográficas: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. 6° ed. Rio de Janeiro: Revan. BAUMAN, Zygmunt (2000) Em Busca da Política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. BAUMAN, Zygmunt., Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da Pós Modernidade. Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1997. BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BAUMAN, Zygmunt. Vidas para consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. BECKER, Howard S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Bertand Brasil, Brasília, 2002. DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Ed. Contraponto, São Paulo, 1997. FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. São Paulo, Martins Fontes, 2015. GOFFMAN, Erwing. Estigma- Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Ed. LTC, Rio de Janeiro, 1988. PARETO, Vilfredo. Manual de Economia Política. Vol. I. Abril. São Paulo, 1984. NOTAS: [1] BAUMAN, Zygmunt., Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 10-15... ou não fazer parte do mercado do consumismo por inaptidão financeira, transformando-se assim num desviante no mundo capitalista. [2] Consumo notável, grave, visível. [3] PARETO, Vilfredo. Manual de Economia Política. Vol. I. Abril. São Paulo, 1984, p. 135 [4] ...reação previsível e generalizada perante a inconcebível, arrepiante e aflitiva variedade de tipos humanos e de costumes que coexistem nas ruas das cidades”... assim, há uma tendência que impele a procurar ilhas de semelhança e de igualdade no meio do mar da diversidade e da diferença. [5] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da Pós Modernidade. Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1997, p.18. [6] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2006. [7] CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Bertand Brasil, Brasília, 2002, p. 51. [8]BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. [9]DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Ed. Contraponto, São Paulo, 1997, p. 43. [10] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. 6° ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 15-28. [11] BAUMAN, Zygmunt. Vidas para consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [12]BECKER, Howard S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. [13]GOFFMAN, Erwing. Estigma- Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Ed. LTC, Rio de Janeiro, 1988, p. 61-72. [14] FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. São Paulo, Martins Fontes, 2015.
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