O conceito de bem jurídico foi fundamental no desenvolvimento de uma dogmática penal de cunho mais humano, limitadora e dotada de maior coerência democrática e constitucional.
Fato é que o Direito Penal acompanha o modelo de Estado em que está inserido. Assim, Estados absolutistas, autoritários, dão vazão a um modelo de Direito Penal com ênfase vingativa, enxergando na pena ora um castigo (função retributiva), ora uma compensação pela desestabilização da vigência da norma (função preventiva geral fundamentadora). Segundo esta concepção do poder punitivo, o Direito Penal é o instrumento de que se vale o Estado para perseguir seus inimigos, neutralizá-los e separá-los do convívio com as “pessoas de bem”. Num Estado de Direito a visão precisa ser outra. A Constituição servirá como parâmetro para o estabelecimento dos “fins” legítimos a serem perseguidos pelo Estado (Art. 3º da CF/88). No caso do Direito Penal, como ferramenta de centralização do poder de punir nas mãos do Estado, estará este limitado a servir como a última ferramenta (ultima ratio) a ser utilizada para manutenção da paz social, tendo sido absolutamente insuficiente toda uma série de outras e para proteger bens jurídicos legitimados pelo consenso. O problema é que a história demonstra que esta construção teórica, a exemplo de outras[1], tem servido não para limitar o poder punitivo, mas para fundamentar sua expansão, num discurso que só pode ser caracterizado como völkisch[2]. Na realidade, não há tática mais bem articulada do que usar os argumentos que legitimam a constrição do Direito Penal para expandi-lo. Existem inúmeros exemplos desta prática fria e calculista. O próprio pensamento dos reformistas (Beccaria, Bentham, Voltaire – e outros) acabou servindo de fundamento para o uso de um Direito Penal mais abrangente e incisivo. Mais tarde o racionalismo positivista e a lógica do raciocínio capitalista tiverem o mesmo efeito. Desta feita, não admira que na atualidade vejamos surgirem diversos “ensinamentos”, teorias e digressões que utilizam o conceito de bem jurídico para bem longe daquilo para o qual deveria servir. Cabe aqui fazer um breve resumo da história do desenvolvimento do conceito de bem jurídico, com a ajuda do professor Cezar Roberto Bitencourt. Este leciona:
Trazendo a questão para nossos dias o professor conclui:
Em adição a estas observações, Bitencourt explica que Hassemer contribuiu significativamente com a conceituação do bem jurídico, concebendo-o como “interesse humano concreto, isso é, bens do homem, indispensáveis a sua sobrevivência”. Ainda mais: “Sob esta perspectiva, os bens jurídicos coletivos somente serão admitidos como objeto de proteção pelo Direito Penal, na medida em que possam ser funcionais ao indivíduo”[5]. Aqui está a questão central que precisa ser abordada. Há em ação um movimento, infelizmente apoiado e até liderado por penalistas de carreira, que tem feito muito por desnortear a função do conceito de bem jurídico, transformando-o ora num elemento tão difuso que não mais possui poder de contenção, ora reforçando uma aplicação destorcida do mesmo, para fazê-lo legitimar outros conceitos sistêmicos, como “perigosidade”, “regras morais mínimas”, “nocividade social”, ou seja, para permitir a implantação de um direito penal de autor, ou melhor, de inimigo. Zaffaroni denuncia fortemente a decadência desta vertente doutrinária e demonstra de que modo essa (des)construção acontece no pensamento acadêmico e, por consequência, na doutrina. Em primeiro lugar, corroborando o que já comentamos acima, o doutrinador argentino declara: “A necessidade de um bem jurídico afetado apresenta outro limite máximo de irracionalidade tolerada, que não pode ser ultrapassado sem que se caia no absurdo total.[6]” Em sequência, elucidando o modo como o conceito de bem jurídico tem sofrido uma constante dilapidação conceitual, explica:
Estas observações são importantes porque não há prática sem um referencial teórico que as sustente. Assim, se estamos a observar no Brasil, eterno consumidor do discurso político-penal alemão (muitas vezes com boa razão, outras sem a adaptação discursiva inteligentemente trabalhada), uma exacerbação de conceitos como “paz social”, “ordem pública”, “sistema financeiro”, “ordem tributária”, “ordem econômica”, “moralidade pública”, com o status de “bens jurídicos coletivos”, empurrados goela abaixo do grande mar de acadêmicos de direito que se formam todo ano, precisamos entender qual a fonte teórica de que se alimentam estas ideias. Tendo percebido sua origem, é possível oferecermos resistência justamente por trabalhar, em contraponto, um discurso sociológico humanitário, que venha a compor uma dogmática penal voltada ao enobrecimento de um Direito Penal democrático e genuinamente limitador (o que significa, no final das contas, um Direito Penal Constitucional). A visão paternalista de Estado, oferecida por Luhmann, com forte inclinação ao consenso, ainda que forjado na violência estatal, não pode (poder-dever) perpetuar um sistema penal que já deu origem (em nossos país) a um “Estado de coisas inconstitucional”[8], formando a quarta maior população carcerária do planeta, com um nível genocida sem precedentes nos Estados de Direito e que agora se vê ameaçado a sofrer uma expansão discursiva vinda “de dentro”. A aceitação de bens jurídicos “difusos”, “coletivos”, “sistêmicos”, “funcionais” resultará no agravamento das condições observadas. Caberá aos advogados criminalistas, em especial aos professores e escritores, oferecer uma clara e efetiva resposta doutrinária a esta tendência, se queremos ter alguma esperança de não ver o Estado de Direito transformado num Estado de Polícia, onde o direito penal será eficiente; tão eficiente que advogados criminalistas não serão mais “necessários” nem “bem-vindos”. Paulo Incott Acadêmico de Direito - Faculdades OPET Bacharel em Contabilidade pela Universidade Federal do Paraná Bibliografia consultada: Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral – Vol. 1 – 17ª ed. São Paulo : Saraiva, 2012. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 05/10/1988.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 22/10/2016 Bretas, Adriano Sérgio Nunes. Fundamentos da Criminologia Crítica. Curitiba : Juruá, 2010 Lopes Jr, Aury. Direito processual penal – 10ª ed. São Paulo : Saraiva, 2013. Santos, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Curitiba : ICPC : Lumens Juris, 2006. STF. Plenário. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015 (Info 798). Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo798.htm.> Acesso em: 22/10/2016 Zaffaroni, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro : Revan, 1991 Notas: [1] Note-se, por exemplo, como a guilhotina foi introduzida sob o manto teórico de representar uma “humanização” da maneira de o Estado aplicar a sanção penal. [2] Völkisch é a palavra que designa uma abordagem, uma propaganda, populista, midiática, de cunho vingativo, denunciada, entre outros, por Zaffaroni em sua obra “Direito Penal do Inimigo”. [3]Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal : parte geral – Vol. 1. 17ª ed. São Paulo : Saraiva, 2012, p. 41 [4]Id. [5]Ibid. [6]Zaffaroni, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro : Revan, 1991, p. 255 [7]Ibid., pp. 85 e 87 [8]ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015. Veja a crítica de Lênio Streck à mera “constatação” do ECI aqui: http://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo Comments are closed.
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