“Perder uma ilusão torna-nos mais sábios do que encontrar uma verdade”. (Karl Ludwig Börne – escritor alemão do Século XVIII) Vivemos tendo de lidar com situações desconfortantes. As rupturas em nossas vidas se apresentam das mais diversas e abruptas formas. Desde cedo, quando somos obrigados a sair do quentinho do líquido amniótico, para enfrentar a dureza da vida e do mundo, já experimentamos os desafios que nos aguardam. E são muitos. Diversos. Costuma-se dizer que é necessário matar um leão por dia! É verdade. Seja qual for a situação, contexto ou ambiente, todos nós enfrentamos os problemas diários, os quais se apresentam das mais variadas formas possíveis. O suporte para os desafios inerentes ao próprio viver depende muito da perspectiva do fio condutor da vida que se adota. Não apenas isso, claro, mas o modo através do qual se enxerga o mundo é um dos fatores que pode confortar ou perturbar ainda mais o ser, influenciando-o na forma de se portar e conduzir a vida. Para Schopenhauer o sofrimento estaria no querer e, como a vida em si é um querer constante, a existência seria basicamente dor e sofrimento. Para o filósofo quanto mais se eleva o ser, mais se sofre, sendo um erro acreditar que o viver visa a felicidade. Nietzsche, por sua vez, concebia o sofrimento como algo inerente à vida, porém, adotava a concepção de que o sofrer representaria condição necessária à elevação do ser, no sentido de que somente pelas dificuldades encontradas no cotidiano – superando-as – é que se teria uma boa compleição do viver. Em “San Junipero”, episódio da terceira temporada de Black Mirror (T3-E4), vemos o sofrimento do viver quando da aproximação da morte, o que faz com que as protagonistas Kelly e Yorkie busquem, ao lado de uma infinidade de outros desenganados, a oportunidade de uma nova vida, em ambiente virtual alternativo reconfortante, ainda que ilusório. Explicamos melhor: o episódio avança aos poucos, propositalmente de maneira confusa (dificultando ao espectador captar de pronto o que está acontecendo). Várias épocas são passadas e vividas por Yorkie, enquanto busca por Kelly, após ter por ela se apaixonado, em um bar típico da década de 1980, na primeira vez em que esteve em “San Junipero”. Contudo, um importante aspecto fica evidenciado desde o início: “San Junipero” é uma “cidade” envolta em atmosfera nostálgica, perfeitamente estruturada para agradar aos seus visitantes nos mais ínfimos detalhes. A confusão é aclarada quando tomamos conhecimento de que a vida de Yorkie em “San Junipero” não é a sua vida, mas uma existência irreal, construída virtualmente para ela. Yorkie, na realidade, é uma pessoa idosa, que se encontra internada numa espécie de asilo, enquanto aguarda pela morte. Entretanto, ao invés de apenas realizar atividades monótonas ao lado dos outros idosos, pode desfrutar da invenção futurista que a permite viver na utópica “San Junipero”. E, caso queira, a visita à cidade “mágica” pode se tornar eterna! “San Junipero” é, também, um cemitério – ou paraíso, a depender da perspectiva – virtual. A máquina milagrosa faz com que as pessoas se desliguem do mundo real e experimentem uma realidade virtual altamente sensorial. Os visitantes optam pelo viver no irreal, vez que ali, no imaginário, podem ser quem quiserem ser. Desta forma, podem fugir da dura realidade da vida (e da morte), assumindo as suas próprias versões mais jovens, felizes, sem culpas e responsabilidades. Eis alguns questionamentos: Fugir da realidade é possível? Existem artifícios que podem ser utilizados para viver optativamente no irreal ao invés de enfrentar as dificuldades do real? A partir do momento em que se escolhe deliberativamente pelo irreal, os problemas do real, que são ignorados, assim o são por serem insuperáveis, ou apenas porque não foi feito um esforço suficiente para tratá-los? O irreal proporciona algum tipo de solução efetiva para o real? Essas e outras reflexões trazidas pelo episódio de Black Mirror podem ser também feitas a partir do Direito. Afinal, o que seria o real e o irreal no Direito? Na verdade, esta pergunta é irrespondível em virtude da amplitude. Mas, tragamos então alguns questionamentos cabíveis para o campo específico do Direito Penal. Dentre as críticas mais contundentes, e justamente onde é mais fácil se perder na irrealidade e na ilusão, estão aquelas que dizem respeito à função do Direito Penal. Façamos alguns questionamentos exemplificativos: O sistema como um todo recupera o indivíduo? E recupera de quê? Penas maiores evitam que crimes sejam cometidos? O Direito Penal “funciona”? Inúmeras outras perguntas poderiam ser feitas, mas estas são suficientes para demonstrar o quão ilusório é o sistema penal, mais até do que a realidade em “San Junipero”. Ao menos esta parece ser inofensiva, enquanto aquele, por sua vez, é extremamente deletério, pois, ao invés de viabilizar a estabilização igualitária do consenso social, faz exatamente o oposto, a partir de perseguições desiguais e desestabilizadoras. Se a ideia do sistema penal é a de evitar a violência (de quem contra quem?) ou proteger bens jurídicos (quais e quem escolhe?), a verdade é que – desculpe se estivermos quebrando ilusões – ele nunca conseguiu e dificilmente vai conseguir! Neste sentido, interessante citar algumas ponderações feitas pelos doutrinadores abolicionistas, a iniciar por Louk Hulsman e Jacqueline de Celis (Penas Perdidas: o sistema penal em questão. Luam, 1993):
Hulsman faz uma análise minuciosa do sistema penal e conclui – evidente que não com as palavras que usamos aqui – que este não agrada nem gregos e nem troianos. Em síntese, a conclusão é que a repressão penal não funciona, de forma que precisa ser urgentemente repensada, com a busca por novas concepções:
Encarar os verdadeiros problemas. É exatamente esta a preocupação real que deveríamos ter em mente! Ainda sobre a ilusão do Sistema Penal não poderíamos deixar de fazer referência aos escritos de Edson Passetti (Ensaio Sobre um Abolicionismo Penal. Revista Verve, 2006), a partir de um importante trecho que bem resume a situação como um todo:
A repressão penal é solução absurdamente irreal e ilusória, mas continua sendo “vendida” política e midiaticamente como a principal medida para lidarmos com os problemas sociais. É a insistência “burra” em uma (pseudo)verdade, que não se sustenta minimamente diante de qualquer observação empírica. Contudo, a perda da ilusão é uma escolha individual de cada um e, ao que parece, muitos ainda insistem em ignorar o real para continuar na “virtualidade” penal. André Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Mestrando em Direito pela UNINTER Advogado Criminal Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR Membro da ABRACRIM Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Mestrando em Direito pela UNINTER Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Comments are closed.
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