Imagine uma sociedade futurista na qual o mundo virtual e a realidade encontram-se fundidos em uma única estrutura organizacional. Não precisa imaginar, basta assistir ao episódio “Nosedive” (T3-E1) do seriado Black Mirror. O episódio retrata uma sociedade hipotética em que as pessoas passam o tempo todo com os celulares em mãos (futurista?), despreocupadas das experiências sensoriais.O foco de cada indivíduo direciona-se, exclusivamente, ao cumprimento das “metas” de um sistema de reconhecimento social que funciona, em síntese, da seguinte maneira: cada um julga os demais por aquilo que fazem durante o dia, concedendo notas que variam de uma a cinco estrelas. Assim, cada pessoa fica marcada (rotulada) como sendo a representação viva da média aritmética das notas virtuais que lhes são atribuídas. No contexto de “Nosedive”, conseguir boas notas passa a ser a razão existencial dos integrantes do grupo social. Ser bem avaliado torna-se quase pressuposto de sobrevivência. Notas boas revelam melhores oportunidades nos variados extratos da vida cotidiana, enquanto o oposto também é verdadeiro. É a lógica do “in or out”! As pessoas com avaliações negativas não conseguem bons empregos, são proibidas de frequentar determinados lugares e são evitadas pelas demais. Ao contrário, as bem avaliadas vivem nas melhores regiões, ocupam os melhores postos de trabalho e são “admiradas” pelos pares sociais. Através dos olhos de uma protagonista específica, o episódio de Black Mirror mostra a obsessão por reconhecimento, em um estressante sistema social de rotulação, ainda que decorrente de comportamentos artificiais e despido de valores substanciais. Enquanto, de um lado, a protagonista não mede esforços para agradar desconhecidos que encontra pela rua, de outro lado, destrata o próprio irmão sem maiores preocupações. Na mistura do real com o virtual, as pessoas de “Nosedive” parecem ter passado a valorizar mais a aparência do que a essência nas interações sociais. Pensando bem, talvez o roteiro não seja tão ficcional quanto possa parecer. Interessante que a protagonista, exatamente no momento em que figura como “emergente” às notas mais altas, quase pronta a ocupar posição de destaque entre as pessoas bem “estabelecidas”, começa a experimentar o revés da “roda da fortuna”. Tudo passa a dar errado e, em pouco tempo, a sua reputação (medida pelas notas conferidas) cai vertiginosamente, passando de “emergente” a “excluída”, tendo que conviver com as dificuldades próprias dos rejeitados pela sociedade, aqueles que vivem à margem, que não se amoldam às regras estabelecidas. O desajuste superveniente revela-se tão significativo que a protagonista, beirando à loucura, perde por completo as expectativas de reverter a situação e, de “boa moça” no início do episódio, passa à posição de criminosa. Destruída, rotulada e marginalizada por um sistema de padrões rígidos e “castas” virtualmente estabelecidas a partir de aparências! O episódio “Nosedive” permite conexão com a sociologia do desvio, mais precisamente com as ideias de Howard Becker e Norbert Elias, notadamente quando estes pensadores se referem aos sujeitos que não se amoldam às exigências dos grupamentos sociais, os denominados “outsiders”. Nas palavras de Becker[1], aqueles que não se enquadram às “regras” do grupo são encarados como “outsiders”:
Referindo-se ao estudo de Norbert Elias, Iverson Kech Ferreira[2] faz interessante análise sobre os “outsiders”, assim considerados os indivíduos que não se assemelham, por condições pessoais peculiares (a exemplo da posição superveniente da protagonista de “Nosedive”), aos estabelecidos ("insiders"):
Consequência (i)lógica disso se faz presente muitas vezes na exclusão seletiva proporcionada pelo Direito Penal. Tal qual a rede social efetiva esse processo de exclusão no episódio em análise de Black Mirror, o sistema penal também o faz mediante a catalogação previamente estabelecida daquilo que faz com que a “reputação” da pessoa caia vertiginosamente. Um dos meios utilizados para tanto é o discurso que se cria sobre o “bem jurídico” a ser tutelado pela norma penal, ensejando, algumas vezes, construções teóricas que visam justificar a imposição de preceito legal proibitivo, mas que acabam se traduzindo como exercício de mera retórica sem substrato concreto. Airto Chaves Junior e Fabiano Oldoni[3] explicam a dinâmica desse processo:
Assim, tem-se a criação de todo um aparato que dá efetividade a esse processo de exclusão. Tal qual no episódio de Black Mirror, onde a rede social faz as vezes desse aparato - excluindo de maneira formal e assim exercendo um efeito prático nesse processo de exclusão -, a punição dada pelo Estado, por meio do artifício do Direito Penal, funciona muitas vezes como esse fator que legitima formalmente a divisão “nós” x “eles”. Importante aqui mencionar a lição crítica, com base em Nietzsche, que Amilton Bueno de Carvalho[4] faz nesse ponto:
Observemos então que o episódio em comento se faz tão presente nos dias atuais que, em realidade, já possuímos aquela rede social que exclui os indesejados: o sistema penal. As estrelas utilizadas para qualificar ou desqualificar alguém em Black Mirror, estão presentes nas certidões de antecedentes criminais de muitos indesejados por aí. E continuamos negativando esses com poucas estrelas, contribuindo cada vez mais para com essa divisão entre “nós” e “eles”. Os “outsiders” permanecem em voga, cada vez mais com menos estrelas, impossibilitando-se assim um movimento de efetiva inclusão: o esquema de pontuações negativas e positivas não permite esse processo. E o fim desses excluídos é bastante parecido com o da protagonista do episódio “Nosedive” de Black Mirror. André Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Mestrando em Direito pela UNINTER Advogado Criminal Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR Membro da ABRACRIM Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Mestrando em Direito pela UNINTER Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura [1]BECKER, Howard S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. [2] FERREIRA, IversonKech. Insiders, Outsiders e a Ideologia da Defesa Social. Justificando, 2017. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/17/insiders-outsiders-e-ideologia-da-defesa-social/ [3] CHAVES JUNIOR, Airto. OLDONI, Fabiano. Para que(m) Serve o Direito Penal?: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 23-24 [4] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.75
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