Com o lançamento da quarta temporada de Black Mirror, retornamos com a nossa série[1] que busca lançar algumas reflexões que interessam ao direito a partir dos episódios desse verdadeiro fenômeno televisivo. Assim, nas próximas semanas, os leitores do Sala de Aula Criminal poderão contar com algumas novas dessas singelas abordagens.
Em que pese possa se dizer que a nova temporada de Black Mirror não tenha causado tanto impacto quanto as suas anteriores, também não se pode falar que tenha sido fraca. Muitos ficaram decepcionados, uma vez que acostumados com as explosões de mentes proporcionadas pelas temporadas anteriores – ausentes pelo menos em nível de proporção, na temporada atual. Mas seria injusto dizer que de nada valem os episódios atuais. Convenhamos, se por um lado há motivos de sobra para reclamar do episódio “Metalhead”[2], por exemplo, por outro, há os bons ou excelentes episódios que carregam e transmitem todas aquelas críticas dignas de Black Mirror – incluindo aí os ótimos enredos, fazendo jus à fama que a série possui. Com os costumeiros alertas de possíveis spoilers, debruçamo-nos aqui sobre o episódio “Arkangel”. Podemos seguir juntos? Dirigido por ninguém menos que Jodie Foster, “Arkangel” conta a história de uma mãe paranoica com a segurança de sua filha. Quando criança, numa típica tarde no parque onde as crianças brincam enquanto os pais conversam, uma menina some, dando-se momentaneamente por desaparecida. O desespero toma conta da mãe, que passa a pedir socorro para que todos a auxiliem a procurar por sua criança. E assim se inicia a busca pela menina, quando, além da mãe, aflita e angustiada pela culpa autoimposta em ter perdido a criança de vista por rápidos segundos, alguns populares ajudam na procura. Instantes de uma terrível euforia depois, eis que uma boa alma encontra a criança. A menina tinha apenas rolado por um barranco próximo ao parquinho, saindo assim da vista de todos os presentes. Nenhum sequestro, nenhum ferimento, nenhum mal causado. Apenas o susto momentâneo. O episódio do sumiço acaba por ampliar a necessidade de cuidados da mãe. Aquela preocupação inerente da condição materna passa para um nível maior. Assim, a genitora acaba investindo numa nova tecnologia que permite acompanhar totalmente os passos da criança. Após implantar uma espécie de chip na menina, a mãe passar a ter acesso a tudo o que sai filha vê, fala e ouve, controlando sua localização através de um GPS. Por meio de um tipo de tablet, a mãe pode acessar os olhos da filha, de modo que literalmente tudo aquilo que a criança vê é transmitido em tempo real para a tela do dispositivo. Ao contratar o produto, a mãe ainda recebe um plus: é possível impedir que a criança tenha acesso à conteúdos que a genitora julgue impróprios, capazes de formar, a partir da liberação hormonal típica de situações de estresse, memórias cognitivas relacionadas com fortes emoções, em especial emoções tidas como “negativas”, tornando assim sons inaudíveis e imagens embaçadas. Satisfeita com o desempenho da tecnologia, a mãe passa a fazer uso constante do dispositivo. O primeiro teste realizado com êxito é feito sobre o som e imagem do cachorro de um vizinho, cujo porte e latidos assustavam a menina. A mãe então obnubila o cão, cessando assim o medo que a filha tinha cada vez que passava na frente da casa do vizinho. E assim vai. Cada vez que se preocupa se a filha está bem, a mãe ativa o GPS e pesquisa sua localização. Palavrões e cenas de violências são censuradas na mente da criança, a qual passa a ver apenas manchas e grunhidos quando se depara com situações geradoras de grave desconforto emocional. Vale destacar que tudo aquilo que a menina vê pode ser assistido a qualquer tempo pela mãe. Assim se estabelece uma peculiar forma de controle: uma superproteção maternal que leva à sérias consequências. O desfecho trágico da trama pode ser sacado tanto quando considerada a história em si (tem como o final disso tudo ser divertido?), como quando o telespectador já conhece o mundo de Black Mirror. As reflexões possíveis são diversas, cabendo à vários campos do saber análises específicas sobre os problemas ali presentes. Aqui, a ideia de controle é o mote que promove a intersecção proposta. Em “Arkangel” vemos espécie sui generis das teletelas de Orwell. O Grande Irmão estava presente em todos os lugares, observando e exercendo seu poderio de controle sobre os súditos. No mundo de “1984”, a observação sobre todos os passos dos cidadãos era constante, de modo que não havia como fugir. Inexistia qualquer lugar seguro, pois a tudo o Grande Irmão observava, garantindo que os regramentos totalitários que regiam a Oceania fossem seguidos à risca. No controle da mãe exercido sobre a filha a semelhança é perceptível. A diferença residia no fato de que a teletela era implantada na cabeça da criança – que um dia se tornou crescida e, inevitavelmente, os conflitos surgiram. Por mais que a intenção da mãe fosse boa (diferente das ideias do Partido de “1984”), o controle exacerbado sobre a pessoa da filha acabou sendo tão nefasto quanto aquele sofrido por Winston Smith. Porém, seria uma redução muito grande da perplexidade causada pelo enredo se tentássemos oferecer uma análise tão “seca” ou “direta” da relação de controle apresentada. Afinal, não se trata do controle pelo Estado em “Arkangel”. Não se trata de um ente moral que vigia a todos sem ser observado. Trata-se da figura histórica e sociologicamente mais conectada a demonstrações de afeto e carinho: a figura materna. Torna-se necessária uma reflexão mais complexa, mais robusta, sobre o controle. Procurando por uma vertente de pensamento que possibilite uma reflexão mais acentuada do conteúdo crítico deste enredo, é indiscutível a pertinência da genealogia do poder construída por Foucault. Ela parece fornecer um ferramental de análise mais robusto para aquilo que se quer ponderar com o episódio “Arkangel”. Em uma das ocasiões em que foi entrevistado sobre a microfísica do poder, a partir da qual o autor percebe que o fenômeno da manifestação de poder nas relações não pode receber um tratamento analítico estritamente vertical, mas precisa ser compreendido em rede e sempre a partir das resistências manifestas e não da mera submissão ou imposição, o filósofo francês assim se manifestou: Sem dúvida é o que há de diabólico nessa ideia assim como em todas as suas concretizações. Não se tem nesse caso uma força que seria dada por inteiro a alguém e que este alguém exerceria isolada e totalmente sobre os outros; é uma máquina que circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o poder quanto aqueles sobre os quais o poder se exerce.[3] A capacidade de “circunscrever” a todos é que faz do poder um objeto de análise tão árduo. Aqui, mais do que em qualquer outro campo, a pretensão de separação ontológica entre o ser e o objeto de desvanece completamente. Nós somos produto e mecanismo reprodutor de relações de poder ao mesmo tempo, sempre e em qualquer lugar. O controle, o fetiche pelo controle, pode ser entendido como mais uma das manifestações da “vontade de poder” que nos “circunscreve”. É isso que o episódio “Arkangel” consegue demonstrar de modo tão lúdico e marcante. Seria preciso muito espaço para que as lições de Foucault sobre disciplina e vigilância fossem trazidas a esta modesta reflexão. Ainda assim, é interessante concluir que Foucault vai de encontro a ideia de que sejamos as vítimas inocentes do Big Brother totalizante. Seria mais honesto afirmar que pertencemos aos elos mais fracos da grande teia de relações de vigilância e controle em que estamos profundamente entranhados. Nos viciamos em controle. Nos tornamos dependentes desta percepção subjetiva e manipulável do que vem a ser segurança. Aprendemos a acreditar numa capacidade ilusória de ter tudo sob nossa particular “jurisdição”. Acreditamos ser os “senhores de nossa própria casa”, embora Freud já houvesse noticiado de que as coisas não são bem assim. O intento de nossa série sempre foi o de estabelecer rápidos insights, abordagens concisas (mas sem pecar pela leitura rasteira) e enfoques iniciais para chamar a atenção para toda a riqueza da crítica que a série possui. Estabelecendo um diálogo a partir de uma abordagem própria, que foge um pouco tanto do senso comum, como também daquele desenvolvimento teórico intrincado, tem-se como possível proceder uma abertura mais ampla para o debate necessário sobre várias questões controvertidas tratadas em Black Mirror. Tem dado muito certo. Deixamos aqui o convite para que acompanhem os próximos textos da série e que participem ativamente com o dialogo, auxiliando na promoção do debate. Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Paulo Incott Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Vice presidente científico da World Complexity Science Academy Membro do Research Committee on the Sociology of Law Advogado [1] Caso não tenha lido os artigos anteriores, pode conferir clicando aqui nos links: Black Mirror, Michel Foucault e o Sistema Penal “White Bear”; Black Mirror, Segredos e Psicanálise: “SHUT UP AND DANCE”; Black Mirror: o porco, a princesa e o espetáculo penal; Black Mirror, Freud, Bauman o o direito ao silêncio; Black Mirror: a Fuga da Realidade em “San Junipero” e o Fracasso do Sistema Penal; Black Mirror e a EXCLUSÃO SOCIAL - Nosedive e os outsiders; Black Mirror: Guerra, Psicanálise e Direito Penal do Inimigo [2] O episódio foi tão nonsense (mesmo considerando o contexto das propostas de Black Mirror) que o criador da série se viu compelido a justificar as motivações que levaram à produção do fraco episódio (http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-136789/ ) [3] FOCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. p. 332 Comments are closed.
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