Enfim concluímos o segundo artigo conectando o seriado Black Mirror e o Direito. Neste texto vamos abordar o episódio “NATAL”, quarto episódio da segunda temporada (T2-E4), um dos melhores da série. Contudo, não prossiga sem ler o alerta inicial sobre spoiler. * Contém Spoiler (depois não diga que não avisamos) Opções contra spoiler: (a) caso você seja fã de Black Mirror, mas não assistiu este episódio específico, vá correndo assistir e depois volte aqui; (b) agora, caso nunca tenha assistido Black Mirror, já está atrasado, então leia o artigo antes e depois vá assistir. Não tem erro! Agora sim, vamos lá: - “Ninguém acaba aqui se não tiver feito uma grande merda do outro lado”. Aparentemente é Natal. Dois desconhecidos estão em um casebre isolado, cercados apenas por neve. Estão ali há cinco anos, mas não sabem exatamente porquê. Trabalho, exílio, prisão? A incerteza é angustiante. Um dos homens é extrovertido e falante, enquanto o outro é calado e reticente. O falante, Mathew Trent, alegando estar cansado do silêncio, toma a iniciativa de confessar seus pecados, passando ao outro homem a sensação de estar se livrando de um grande peso, libertando-se de suas culpas mais corrosivas. - “O silêncio pode ser opressor. Você pensa merdas estranhas no vácuo”. Mathew inicia contando como teria se envolvido indiretamente em um caso de homicídio. Atuando como “guru de encontros”, acabou “ajudando” um rapaz a conquistar uma garota com problemas psiquiátricos. O encontro deu errado: um homicídio e um suicídio! Ele tentou esconder o fato das autoridades e de sua família, mas foi descoberto e o evento gerou grande turbulência em sua vida. Ponto interessante é que sua mulher o “bloqueou”, ou seja, usou um mecanismo futurista que faz com que pessoas indesejadas sejam vistas como uma imagem sombreada e não consigam se comunicar com a pessoa bloqueadora. Na sequência Mathew fala sobre o seu peculiar trabalho de criação de clones virtuais, na empresa Smart Elligence. Explica que eles implantam cirurgicamente um “cookie” no cérebro do cliente e depois extraem este mesmo “cookie”, o qual passa a agir como clone virtual. O clone é programado e adestrado para realizar tarefas eletrônicas cotidianas, facilitando a vida do cliente. Nem sempre funciona de imediato, pois às vezes o “cookie” se nega a fazer o que lhe mandam. É aí que entra o habilidoso programador Mathew Trent, capaz de manipular as condições de tempo e espaço em que está virtualmente inserido o “cookie”. É possível torturar o “cookie” através da manipulação do tempo e, assim, adestrá-lo facilmente. Cinco minutos podem virar mil anos. - “Dobrá-los sem deixar que se quebrem completamente. Deixe tempo demais na solitária e eles perdem a cabeça”. O outro homem, após ouvir tudo atentamente, manifesta repulsa. Fala que o trabalho narrado é desumano, revela compaixão pelo “cookie” escravizado. Mathew aproveita o gancho para provocar o interlocutor e estimular que ele comece, então, a confessar os próprios pecados. - “Você é um cara bom. Um cara bom, que fez coisas ruins? Você pode falar sobre isso, só tem a gente aqui”! O outro homem, com os olhos marejados, tomado por nítido sentimento de culpa, passa a confessar o crime praticado: Inesperadamente sua namorada engravidou. Ao invés da gravidez os aproximar, como ele imaginava, foi a causa da separação. Sem muita explicação, a namorada o “bloqueou” completamente. A filha nasceu, mas ele não podia vê-la, apenas a sombra, pois estava bloqueado para ela também. Alguns anos se passaram e a ex-namorada faleceu. Com o óbito desapareceu o “bloqueio” da filhinha. Ele foi, então, tentar visitá-la na casa do avô. A surpresa: a garotinha era oriental! Não era sua filha. Em um momento de angústia, deu uma pancada na cabeça do velho e foi embora. O avô morreu na hora. A garotinha, isolada no meio do nada, em um casebre de madeira cercado por neve, morreu ao sair no frio congelante para tentar conseguir ajuda. Eis a confissão! - “Ele sabia que era culpado. Tinha que desabafar”. O grande final: O homem, na verdade, era um “cookie” e Mathew foi chamado pelas autoridades para, com suas habilidades humanas e tecnológicas, tentar extrair a confissão, em troca de diminuição de pena pelo seu próprio crime, uma espécie de colaboração premiada. Este episódio de Black Mirror permite múltiplas leituras, das mais variadas possíveis: jurídicas, filosóficas, sociológicas, psicanalíticas, entre outras. Poderíamos discorrer demoradamente sobre o “bloqueio” e o conceito de liquidez das relações em Zigmunt Bauman, fazendo um comparativo com o que já acontece hoje nas redes sociais, quando as pessoas bloqueiam outras diante de um mínimo desentendimento, ou por uma banal discordância de ideias. Amizades que se desfazem a partir de um único toque no mouse. A projeção futurista do episódio de Black Mirror não se distancia muito da realidade atual. Poderíamos ainda discorrer sobre sentimento de culpa e confissão, a partir da doutrina psicanalítica de Freud, retomada com viés criminológico por Theodor Reik e Paul Reiwald. O criminoso, tomado pelo sentimento de culpa, chega a desejar a pena como único “remédio” para um sofrimento profundo. Reik teoriza que o sentimento de culpa pode, inclusive, fazer com que o criminoso deixe pistas propositais com o intuito de ser pego pelas autoridades. Seguindo noutra linha, poderíamos buscar em Foucault algumas palavras para avaliar as técnicas de Mathew Trent no adestramento punitivo dos “cookies”, a fim de torna-los dóceis para o exercício de comportamentos esperados. Enfim, são muitas e muitas as conexões possíveis! Daria um livro, mas para fechar vamos focar em um ponto jurídico-penal, qual seja, a invalidade da confissão provocada e/ou sob tortura. Destaca-se que foi por uma artimanha desleal que a confissão fora obtida. O resultado desse peculiar procedimento seria apto para ser utilizado e definido como prova? Vale frisar que quem confessou não fora o investigado, pelo menos não enquanto “eu”. A confissão foi dada por uma cópia de si. “Dada” a confissão, e não “feita”, pois numa perspectiva situacional do ambiente ali retratado, o “eu” do investigado em momento algum externou sua culpa. Mantém -se calado, utilizando o seu direito ao silêncio. Quem (ou “o quê”) relatou a confissão foi um outro, e não enquanto “outro”, mas enquanto “análogo”, pois esse “outro” se tratava de uma cópia do “eu”. Essa forma de proceder pelo Estado pode ser considerada como legítima? Aqui vale lembrar de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, na parte em que é narrada a história de um promotor que se utiliza de subterfúgios desleais e ardilosos para obter uma confissão de um casal, de modo que, através de um procedimento intragável, consegue fazer com que um acusado entregue o outro. Um bispo que ouviu o relato de tal história indaga onde seriam julgados o casal. - “No tribunal do júri”, é a resposta dada. Na sequência, nova pergunta do bispo, que ainda ecoa em vários processos vistos por aí: - “E onde será julgado o promotor do rei”? No final do episódio, o investigado, preso, é mostrado consternado pela situação vivenciada naquele momento. Porém, ainda se mantém resoluto com relação aos ímpetos consubstanciados na extração da verdade por parte do Estado. Quando lhe é dito, com um sorrisinho sarcástico, que o Estado não mais necessitava provar a sua culpa, pois o “cookie” havia contado tudo, essa consternação aumenta e destrói o que restava de sua alma – isso é visto em seu olhar. - “Pode continuar calado se quiser. Não faz diferença, você já falou”, diz a agente estatal responsável pela investigação, encerrando assim o procedimento contra o investigado. A “confissão”, ali, como a rainha das provas. Sobre a confissão e a validade probatória seria possível até imaginar uma ementa hipotética de julgamento: CONFISSÃO. “COOKIE” CEREBRAL. CENÁRIO FICTÍCIO. MANIPULAÇÃO DO TEMPO. CINCO ANOS EM CINCO MINUTOS. TORTURA PSICOLÓGICA. AGENTE PROVOCADOR. DISSIMULAÇÃO. ACUSADO DESCONHECE QUE ESTÁ CONFESSANDO. INVALIDADE PROBATÓRIA. O episódio mostra perspectiva futurista em que o acusado, sem saber, se vê instigado a confessar por agente provocador, após ser torturado psicologicamente, através da manipulação do tempo (impressão de que muitos anos se passaram) e do espaço (inserção no local do crime). É bem verdade que o episódio tende ao absurdo jurídico. Agora, abstraindo os elementos futuristas, expedientes parecidos compõem o “arsenal” das autoridades na busca de confissões: agentes infiltrados, escutas unilaterais, flagrantes preparados, prisões sem requisitos, etc. O grande problema é que o sujeito que confessa sem saber ou sem espontaneidade, acaba por ter desrespeitado direito universal: o direito de silenciar, de não produzir prova contra si próprio (nemo tenetur se detegere). Assim, tanto a confissão futurista de Black Mirror é inválida, quanto confissões extraídas de forma não republicana nos dias de hoje. André Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR Membro da ABRACRIM Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura
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