Eis o nosso quarto artigo sobre o seriado Black Mirror. Quem tiver curiosidade pode conferir os outros três: "Whithe Bear", "Natal" e "Porco". Neste quarto texto vamos abordar o "episódio do soldado" (T3-E5). No início do “episódio do soldado”, a impressão que se tem é que iremos acompanhar um roteiro de ação, baseado apenas no bom e velho jogo de guerra: militares combatendo os tenebrosos inimigos da nação. Mas, seguindo o que se espera de Black Mirror, em questão de instantes, os tiros e explosões dão lugar à profunda crítica sociológica, personificada psicanaliticamente no sentimento de culpa do soldado. Em um futuro aparentemente distante, no qual a alta tecnologia é apresentada como relevante instrumento de guerra, os militares passam boa parte do tempo combatendo uma nova espécie de inimigos, seres medonhos, portadores de grave patologia, denominados de “baratas”. As “baratas” são esteticamente horríveis, deformadas, não falam, emitem grunhidos, vivem escondidas em buracos e sobrevivem de restos de alimentos e de saques praticados contra os moradores dos vilarejos. As “baratas” ainda contam com a ajuda de algumas poucas pessoas, as quais, estranhamente, revelam empatia pelos horrendos seres e acabam dificultando a vida do exército. A verdade é que o jovem soldado seguiria firme no propósito de combater as “baratas” caso algo diferente não tivesse lhe acontecido, alterando o curso das coisas. Sem entender exatamente o porquê, o soldado passa a ver as “baratas” como seres humanos “normais”, que falam, se emocionam, sentem dor e se comportam racionalmente. Ao perceber a condição humana das “baratas”, o soldado experimenta o amargo sentimento de culpa e inicia uma incansável busca por respostas. Eis o esclarecimento: inesperadamente, quando em combate, o soldado sofreu avaria no equipamento de guerra, perdendo a máscara virtual que o fazia ver determinados humanos como “baratas”. Tal máscara se revela como instrumento bélico indispensável, que passou a ser utilizado pelo exército para evitar que os soldados tivessem compaixão pelo “inimigo”, evitando, igualmente, eventual remorso e vacilação na hora de “apertar o gatilho”, afinal, é muito mais fácil combater “monstros” do que “iguais”. Aqui vale lembrar que para Freud (Compêndio da Psicanálise, 2014) são aceitos apenas dois impulsos fundamentais: “eros e impulso de destruição”. Pode-se dizer que no episódio é arquitetado um instrumento para impulsionar esse impulso de destruição (também chamado de impulso de morte), cuja meta “é desfazer conexões e assim destruir as coisas”. O soldado descobre, ainda, que as “baratas” não fizeram nada de específico para justificar a violência do Estado. São apenas pessoas que foram “reprovadas” em “triagem biológica” e, portanto, consideradas geneticamente inferiores. Eis os “inimigos” futuristas que precisam ser eliminados. O soldado nada mais é do que parte do instrumental de eliminação eugênica. Potencializa-se assim aquele afã combatente da figura do soldado com relação ao objeto da guerra mediante o inovador equipamento bélico apresentado no episódio. Freud (Psicologia das Massas e Análise do Eu, 2013) demonstra essa lógica que se deduz na manutenção da reunião organizada de pessoas, tomando como exemplo concreto a própria instituição do exército. O psicanalista traça um panorama diferenciador sobre a identificação do eu com o objeto e a substituição do ideal do eu pelo objeto, onde naquilo que chama de grandes massas artificiais se faz possível observar essa diferenciação: no exército, seria no sentido de o soldado tomar o comandante como ideal, enquanto a identificação se dá para com os seus iguais. O problema fica assim para com aqueles que não se incluem nesses “iguais” ou “ideal”. Característica extremamente elogiável de Black Mirror é a de que o seriado projeta futuro hipotético, mas como forma de, concretamente, criticar o presente e o passado. Neste episódio parece evidenciar-se a crítica sociológica aos processos históricos de rotulação e eliminação de “inimigos” escolhidos “a dedo” pelos detentores do poder, os quais, de forma ardilosa, criam suas próprias máscaras, não tecnológicas, mas discursivas, para ludibriar os incautos “soldados” dedicados à frente de batalha. Hereges e mulheres na Idade Média. Judeus, negros e homossexuais no Nazismo. “Viciados” em drogas nos EUA (sobretudo nas décadas de 70 e 80). Estes são apenas alguns poucos exemplos de inimigos de Estado, dos quais se retirou discursivamente a condição de humanidade, cada um à sua maneira, mas com o intuito comum de rotulação e segregação. Destinatários dos mais desmoralizantes rótulos: feiticeiros, bruxas, inferiores, vagabundos! “Condenados” por coisas que nunca fizeram! René Girard (O Bode Expiatório, 2004) mostra que esse fenômeno persecutório está presente há tempos, quando demonstra que a existência do bode expiatório enquanto fenômeno observável é demonstrável e concreta. Em toda e qualquer sociedade é possível analisar, vez que presente, o processo persecutório que enseja no bode expiatório – o perseguido, o estigmatizado, o culpado. A forma escolhida para que ocorra essa dicotomia (nós x eles) se estabelece por diversos critérios. Para Girard, além dos fatores culturais e religiosos, existem também aqueles puramente físicos que acabam por ensejar na persecução contra os “outros” (o bode expiatório), ou seja, “a doença, a loucura, as deformações genéticas, as mutilações acidentais e até as enfermidades em geral tendem a polarizar os perseguidores. Para compreender que temos aí algo de universal, basta olhar ao redor de si ou mesmo dentro de si próprio”. Eis aí as “baratas” de Black Mirror enquanto bode expiatório, tendo contra si construídos artificialmente as deformações, a fim de que o ranço persecutório presente nos perseguidores seja fomentado. A questão é, em verdade, muito simples: quando não se consegue lidar adequadamente com problemas sociais, revela-se necessário que a culpa recaia sobre alguém e o culpado tem de pagar caro por esta responsabilidade. Eis o contexto em que surgem os inimigos, escolhidos a partir de realidades de emergência, a fim de subsidiar as mais improváveis guerras, conforme relata Mássimo Pavarini (Punir os Inimigos, 2011). Agora, tal qual no “episódio do soldado”, é necessário o uso de máscaras, no caso: máscaras discursivas. É aquilo que Zaffaroni (O Inimigo no Direito Penal, 2006) denomina de propaganda volkish, para se referir a discursos que subvertem valores sociais de maneira a destruir a imagem de determinado grupo de pessoas, que passam a ser tratadas como “não cidadãos”, como seres inferiores, contra os quais tudo é válido, até mesmo porque não são destinatários de direitos. Relevante dizer que o elemento mais bem explorado na estruturação da “máscara” discursiva é o medo, o pavor, o apontamento do “outro” (“inimigo”) como potencial causador de todos os males. É o medo da “sociedade de risco” intuída por Ulrich Beck. É o medo do desconhecido, do diferente, do incontrolável. Pensar o “outro” como fonte de medo é a base de autorização psíquica para a eliminação deste, como instrumento de alívio da tensão causada. Em sua última obra (Estranhos batem à nossa porta, 2016), Zygmunt Bauman bem analisa esta questão do medo com relação aos refugiados, tão explorada discursivamente nos últimos anos na União Europeia e, com maior agressividade, na última campanha presidencial nos EUA. Bauman revela preocupação com a repulsa política aos refugiados, “apresentados” à população como “invasores” na disputa pelos espaços urbanos. Cria-se, a partir do discurso, a tensão entre o cidadão e o estrangeiro, através da exploração do medo da crise econômica, do desemprego, da perda do status quo. Mais um processo de criação retórica do “inimigo”. É um ciclo histórico vicioso: (1º) adentra-se à situação de emergência social (pestes, crises econômicas, catástrofes naturais, etc.); (2º) aponta-se o eventual “inimigo”; (3º) retira-se a condição humana do "inimigo", discursivamente, através da exploração do medo, a fim de que seja combatido sem maiores resistências morais. O que se tem como resultado é a guerra, interna ou externa, em que muitos “combatentes” estão mascarados e nem percebem. Que consigamos perceber que essa questão diferenciadora de “nós” e “outros” muitas vezes nos é imposta com ludibrio. Arranquemos nossas máscaras! André Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Mestrando em Direito pela UNINTER Advogado Criminal Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR Membro da ABRACRIM Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Mestrando em Direito pela UNINTER Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura
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