O episódio da série Black Mirror sobre o qual hoje nos debruçamos (T1-E1) é um tanto quanto polêmico. Não que os demais episódios não sejam, vez que Black Mirror chama a atenção de maneira única justamente pela forma peculiar de retratar críticas. Mas o episódio em questão é tido como o mais intragável de todos – e isso dito num aspecto visceral. Para os que já tiveram contato com a série, pode-se apontar para o episódio em comento sem medo de errar: “o episódio do porco”. É isso mesmo, leitores. O famoso episódio do porco, aquele que inaugurou a série criando a polêmica das polêmicas. Continue apenas se tiver estômago! É bom lembrar também: spoiler a partir deste ponto! O enredo se passa no Reino Unido. A princesa, querida por todo o povo, é sequestrada. O desespero já se inicia com o próprio ato em si, mas o pior está por vir. Em contato com os responsáveis pelo sequestro, as condições para a liberdade da princesa são estipuladas. O que eventualmente era imaginável, a título de resgate (dinheiro, por exemplo), se esvai como fosse esperança, quando o "preço" é determinado: "o primeiro-ministro deve fazer sexo com um porco". Não bastasse a bizarrice do pedido de resgate, a exigência é ainda mais específica: "o ato sexual deve ser feito numa transmissão ao vivo pela televisão, a fim de que toda a nação possa assistir". O prazo também é estipulado, além ainda de diversos detalhes a fim de que não haja tentativa de engodo por parte do político, visando burlar o cumprimento da exigência. Isso ou a morte da princesa! O tempo é curto, de modo que o primeiro-ministro e sua equipe passam a agir para que o resgate da princesa seja realizado antes do findar do prazo dado. Em que pesem todas as tentativas realizadas, não se obtém o êxito almejado. A ampulheta da vida da princesa está com a areia se esvaindo. Nada mais resta que não o cumprimento da exigência feita. Não restando qualquer outra opção, o primeiro-ministro se rende. O ambiente é preparado a fim de que a relação sexual do político com o animal se efetive e seja transmitida em cadeia nacional para toda a população. Momentos antes do horário agendado para o início da coisa toda, a população está "antenada". As ruas estão vazias, vez que todos estão acompanhando a transmissão na televisão. Seja em casa, seja no bar – seja onde for – há um televisor ligado e sintonizado no canal em que a transmissão será feita. Todos contam os segundos para assistir ao vivo o ato grotesco. Até o ato de piscar é evitado pelos telespectadores. E assim é feita a transmissão. Exigência cumprida. Princesa liberta. O sacrifício do primeiro-ministro valeu a pena!?! Pôs em jogo a sua reputação, a sua honra, a sua imagem, a sua dignidade... Mas o que estava em jogo era uma vida! Ato justificado. Princesa sã e salva. O episódio poderia encerrar assim. Convenhamos que já seria uma baita história, só que em um gênero diverso daquele em que se situa Black Mirror. Como se sabe, a série possui um âmago próprio de crítica social ferrenha e pesada. Há sempre um gran finale que estapeia qualquer um que assista ao seriado. No caso do episódio do porco, eis a angustiante sacada: antes mesmo de findar o prazo para o início do cumprimento da exigência dos sequestradores, a princesa já havia sido liberta. Foi deixada, meia hora antes do prazo, num local público. Entretanto, o local público estava deserto – justamente pelo fato de que todos estavam reclusos aguardando o início da transmissão do ato sexual bizarro. Assim, ninguém se deu conta de que a exigência tinha sido dispensada. Imaginou-se que o perigo ainda estava presente. A grande sacada é a exposição crítica da sociedade do espetáculo. A atenção na transmissão de algo nefasto fez com que ninguém percebesse que aquilo tudo era um golpe de cunho crítico contra a própria sociedade. Apostou-se que o interesse maior se daria para com o bizarro espetáculo e não para o fato realmente importante: a vida da princesa! A crítica é fenomenal. O episódio é fantástico pela forma com a qual aborda a questão da cultura da espetacularização da barbárie. E aqui podemos fazer vários comparativos que se encaixam como uma luva em nossa sociedade atual. Vejamos alguns. O conceito de indústria cultural, cunhado por Adorno e Horkheimer em “Dialética do Esclarecimento”, pode ser utilizado como ponto crítico do produto (as cenas de sexo transmitidas ao vivo) utilizado como meio para satisfazer a vontade massificada da população. O produto que proporciona uma sensação de agrado efêmero nos indivíduos irreflexivos é acrítico, não tendo sido sequer desvelado por aqueles responsáveis pela distribuição dessa forma de poder massificador e dominador. Quem fez a “pegadinha” sacou a questão de uma maneira tão profunda que arquitetou a coisa toda de modo que o feitiço virasse contra o feiticeiro. A indústria cultural, traduzida ali como o espetáculo televisivo, impedindo qualquer tipo de mobilização crítica, tragou os próprios disseminadores de seu poderio. Todos foram enganados! Noutra linha de raciocínio, é possível traçar paralelo entre o episódio e a espetacularização das questões de segurança, do controle penal e das punições. É o processo penal espetáculo, assistido diariamente com regozijo por espectadores ávidos pelo sofrimento alheio. O jurista Rubens R. R. Casara (Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira, 2015) aduz que “o espetáculo é uma construção social, uma relação intersubjetiva mediada por sensações, em especial produzidas por imagens e, por vezes, vinculadas a um enredo”, o que acarreta na espetacularização do processo penal, vez que a ideia de espetáculo faz com que “o fascínio pelo crime [...], a fé nas penas [...], somados a um certo sadismo” transformem o julgamento num “objeto privilegiado de entretenimento”. O sociólogo francês Loïc Wacquant (Punir os Pobres, 2007) chega a comparar o espetáculo da segurança criminal com a pornografia. De acordo com Wacquant “a gesta da segurança é concebida e executada não tanto por ela mesma, mas sim com a finalidade expressa de ser exibida e vista, examinada e espionada: a prioridade absoluta é fazer um espetáculo, no sentido próprio do termo”. Ainda de acordo com as palavras do pensador francês “o manejo da lei-e-ordem está para a criminalidade assim como a pornografia está para as relações amorosas, ou seja, um espelho que deforma a realidade até o grotesco”. A publicidade do processo e da punição chega a ser utilizada como uma forma de propaganda pelo Estado, seguindo aquilo que Zaffaroni (O Inimigo no Direito Penal, 2007) denomina de völkisch (popularesco). As “pessoas de bem”, ou, na melhor expressão de Wacquant, os “cidadãos respeitáveis” parecem se satisfazer com o “circo punitivo” promovido pelo Estado ou, o que é ainda pior, por eles próprios, em grotescas sessões de justiçamento promovidas à luz do dia. A velocidade com que as informações correm pela internet faz com que as cenas mais bárbaras e cruéis sejam compartilhadas com naturalidade e assistidas como se fossem roteiros ficcionais. A tecnologia avança em alta velocidade, enquanto o senso comum parece ter estacionado na era medieval. Não é mais preciso se reunir em praça pública para assistir a um "enforcamento", basta aguardar para receber a filmagem pelo whattsapp. Neste cenário caótico, em que ficção e realidade se confundem, não é de se duvidar que uma cena de “sexo com porco” poderia realmente fazer sucesso. André Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR Membro da ABRACRIM Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura
2 Comments
Raiane Ferreira
12/3/2023 08:02:31 pm
Sinceramente, quem escreveu o texto tem 13 anos? Kkkk
Reply
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |