Caro leitor, iniciemos com o seguinte exercício mental (um tanto quanto perturbador): Imagine que você tem um segredo terrível, inconfessável. Algo realmente grotesco, torpe, fonte de culpa e sofrimento. Imaginou? Agora imagine que alguém descobre e tem todas as provas necessárias para revelar este humilhante segredo; ou pior, a pessoa se aproveita da sua fragilidade emocional para obrigá-lo a fazer outras coisas horrendas, em um crescente de atrocidades, que levam a um final incerto. Em resumo, esta é a ideia geral contida no episódio “Shut up and Dance” (T3-E3) da série Black Mirror, apimentada, por óbvio, com pitadas generosas de ação e suspense. A partir de uma cadeia de eventos enigmáticos, dois homens, em fases distintas da vida, correm contra o tempo, seguindo ordens remotas, para evitar que seus segredos obscuros sejam revelados. Até um assalto a banco está incluído no “pacote de maldades”. A lógica é um tanto quanto similar à do filme “Jogos Mortais”. O segredo do sujeito mais velho é revelado (ao telespectador) desde o início: uma aventura extraconjugal. Nada que cause espanto, sobretudo em Black Mirror, mas o suficiente para destruir toda uma história de vida! Já o segredo do sujeito mais jovem é apenas lançado ao ar, sem maiores detalhes: algo relacionado a pornografia. É evidente que o desespero escancarado do jovem indica que há algo de muito mais grave por trás da sua conduta. A luta para esconder o segredo é tão significativa que o jovem se torna capaz de duelar e matar um desconhecido, simplesmente para não se ver exposto em sua vergonha íntima. Contudo, por mais que o jovem tenha ultrapassado todos os limites para realizar as exigências criminosas que lhe foram feitas, seu segredo acaba sendo revelado e as consequências experimentadas. Aqui fica evidenciado um relevante ponto: os algozes do jovem só queriam vê-lo sofrer! Uma verdadeira “pegadinha” sádica! Eis o que nos lega o episódio: desejos, escolhas, segredos e consequências! Façamos então breves considerações sobre tão rico legado. Todos possuímos um lado (id) que não gostaríamos que fosse revelado ao público. Segredos obscuros fazem parte da individualidade de todo e qualquer sujeito, de modo que, reconhecendo ou não, há coisas que intencionalmente preferimos (superego) não externalizar. O nível mais profundo de nosso ser, onde as coisas podem ficar escondidas de tudo e de todos, é o local adequado para aquilo que, conhecido, acarretaria consequências terríveis. Somos guiados por nossos desejos. Esses desejos podem ser conhecidos ou não. No inconsciente, como ensinou Freud, situam-se aqueles desejos que se manifestam de formas muitas vezes não compreendidas pelo ser cognoscente. As manifestações de tais desejos se dão, portanto, de maneira velada à mente consciente. Daí as construções psicanalíticas que passaram a buscar, em demonstrações do nível inconsciente, por traços que indicassem uma possível “tradução” para se entender tudo aquilo. Através dos sonhos ou dos atos falhos, por exemplo, é possível, segundo a psicanálise, captar esses indicativos de desejos intrínsecos fornecidos pelo inconsciente e traduzi-los para o nível do consciente, a fim de que se possa ter maior compreensão do sujeito. Se temos de reconhecer que existem questões que fogem à nossa mente pensante (e ciente de si mesma), também podemos apontar para aqueles desejos dos quais possuímos ampla ciência, porém, diante do receio das consequências que podem advir da divulgação de tais desejos, preferimos sufocá-los. Vale lembrar que aqui se fala em tais desejos de uma maneira bastante genérica, bem como das ditas consequências, de modo que pode se falar tanto de questões simplórias (um adolescente que prefere não admitir seu verdadeiro gosto musical por receio da chacota que seus amigos fariam caso tal gosto viesse à tona), como de mais preocupantes (um sadismo que se fosse externalizado poderia ensejar na prática de violência contra outrem). Ocorre que os desejos muitas vezes podem ser caracterizados como um tipo de doença, vez que disformes com a postura funcional do indivíduo - ou pelo menos considerando aquilo que se espera dos cidadãos pertencentes a determinada comunidade - de modo que, em não se atendendo às expectativas necessárias para o convívio em sociedade, determinada conduta, postura ou até mesmo desejo, podem ser catalogados como não saudáveis. No episódio “Shut up and Dance”, de Black Mirror, vemos que a externalização de desejos não aceitos dá ensejo a reações violentas. Os desejos dos protagonistas recebem o status de segredos perigosos, passíveis de consequências desagradáveis. Enfim, o que se tem no episódio abordado são consequências arquitetadas e levadas ao extremo, intencionalmente articuladas por terceiro(s) a fim de impor reprimenda brutal contra quem teve seus obscuros e intragáveis segredos descobertos. O que mais chama a atenção é que as consequências são ditadas por um indivíduo (ou grupo, não fica claro) que sente prazer com o sofrimento alheio e parece querer reprimir no outro, por meio de catarse punitiva, os próprios desejos violentos inconscientes, fazendo do outro o “bode expiatório” de sua própria culpa, raciocínio que se constrói com base na doutrina, de base freudiana, inaugurada por Paul Reiwald e depois repetida por Theodor Reik e René Girard. Afinal, é mais fácil recriminar os outros do que a si próprio, o que acaba por resultar em bizarros comportamentos hipócritas. A fim de exemplificar, não são poucas as pessoas que “gritam” contra a imoralidade nas redes sociais e, pouco tempo depois, estampam as manchetes policiais. Mais uma vez Black Mirror se supera na tarefa de escancarar a realidade nua e crua, desmistificando a fórmula dualista de heróis x bandidos, para mostrar que, em verdade, os defeitos são inerentes ao ser humano e se revelam de maneiras muito peculiares. André Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Mestrando em Direito pela UNINTER Advogado Criminal Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR Membro da ABRACRIM Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Mestrando em Direito pela UNINTER Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura
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