![]() Artigo do colunista Iverson Kech Ferreira no sala de aula criminal, vale a leitura! ''E como tudo fica muito mais casual, eventual e aleatório, também ficam os contatos particulares de cada um, os valores se desfazem numa ação que sugere desapego. Veja, por exemplo, as amizades. Há nas redes sociais, como Whatsapp, Facebook e Instagram uma falsa sensação de apego''. Por Iverson Kech Ferreira É um novo mundo. Para aqueles que conviveram com suas duas faces existem valores diferentes. Aqueles que nasceram nesse paradigma somente há essa referência, e uma história antiga contada pelos mais nostálgicos. No início dos anos 2000 era clara a possibilidade de que a tecnologia moldaria o futuro a partir de suas peculiaridades, entretanto, ninguém poderia imaginar com qual força ela seria remetida aos lares e vidas das pessoas.
Dez anos depois, ela já era uma realidade. Celulares, TVs, computadores, veículos inteligentes. Robôs. A dualidade que fazem aqueles que viveram os dois tempos serve para atestar e reconfigurar os novos valores que surgem. Pessoas que nasceram antes da evolução tecnológica maciça conseguem enxergar os princípios do antes e do depois. E conseguem, de algum modo, fazer uma conexão com o mundo que se abre de uma maneira mais abrangente, formada pela experiência de vida (LIPOVETSKY, 2004). Para aqueles que nasceram e se desenvolveram já nesse paradigma, na conhecida geração do milênio, somente possuem os valores desse padrão; pois não vivenciaram o outro mundo de fato. Livros de história podem ensinar, mas jamais entregar a sensação de vivência. Onde havia a comunidade, agora vive o mundo virtual. E as facilidades que a tecnologia trouxe ficam cada vez mais evidenciadas: aulas virtuais, citação digital nos processos, e-books, informação veloz, contatos imediatos pelos aplicativos, audiências virtuais. Tudo isso sugere um novo padrão, que realça valores e torna a vida mais facilitada. Porém, cria por outro lado, um mundo próprio, de linguagem própria e símbolos peculiares. As redes sociais, por exemplo, conseguem desestabilizar até mesmo instituições ou planejamentos estatais diversos, como uma vacinação, através de notícias falsas e da propagação da mentira como se verdade fosse. E isso voa longe, a partir de cada compartilhamento. O mundo digital não perde um minuto sequer. Democracias perdem força, assim como instituições e valores gerais, a partir da desinformação em massa que somente as redes sociais conseguem, a curto prazo, disseminar. E por trás disso tudo, interesses diversos. Quem molda as massas, molda o futuro (LEVITSKY, ZIBLATT, 2018). E como tudo fica muito mais casual, eventual e aleatório, também ficam os contatos particulares de cada um, os valores se desfazem numa ação que sugere desapego. Veja, por exemplo, as amizades. Há nas redes sociais, como Whatsapp, Facebook e Instagram uma falsa sensação de apego. Por certo Bauman foi o precursor mais honesto sobre esse tema. Ele trouxe a importância da “desonestidade ou da covardia casual”, que essas redes trazem como função principal. Não há apego, somente há sensação. Para o sociólogo, hoje é muito mais fácil de se desvincular de uma amizade através dos bloqueios nas redes sociais, o que antigamente era impossível. Hoje apenas um botão no teclado precisa ser apertado para nunca mais encontrar determinada “pessoa amiga novamente”. Antes, isso teria que ser feito olho no olho, pois certamente haveria a cobrança dos motivos que causaram a mudança no relacionamento; e isso era muito mais complicado pois evidenciam valores (BAUMAN, 2004). Valores que ficaram no passado. Muitos pensadores e doutrinadores do direito e da sociologia compreendem as novas tecnologias como um real formador de novas possibilidades, o que claro, é correto. Como é algo recente, é certo trazer novidades. Há um movimento após a pandemia do Covid 19 da manutenção das audiências virtuais. Mas mesmo em casos de menor potencial lesivo, como ameaça ou lesão corporal até os de grandes proporções, as audiências virtuais encontram meio efetivo e econômico para gerenciar as controvérsias. Mas ainda assim, perde-se o fator mais importante que para o magistrado é essencial nos julgamentos, tanto de casos difíceis, como os de menor complexidade; que é a humanidade e o sentimento. Assim como as redes sociais retiram o humano que há em todos nos contatos pessoais e nas amizades virtuais, que em um bloqueio ou em um aceite, troca-se ou ganha um novo amigo, as audiências virtuais fazem perder o sentido humano, retornando o juiz a ser apenas a boca da lei, mas não interprete dos acontecimentos. Muitas vezes é na audiência que se afloram os fatos. Na frente do magistrado, que para uns pode ser o julgador implacável, para outros é visto como a solução para os seus problemas e que sabem que podem contar com ele, naquele momento fatídico. A audiência virtual faz perder esse contato, essa conexão entre as pessoas. Os trejeitos, as maneiras de falar, as várias formas de se enxergar os indivíduos a partir de seus dilemas não são possíveis de serem vistas através das audiências online. Perde-se o toque humano. Autores e doutrinadores escrevem que audiências virtuais são inclusivas. Esquecem da comunidade e que essa somente é feita e evolucionada pelo contato pessoal, pela experiência na interação com o outro. Provavelmente esses autores nasceram no novo paradigma, não fazendo a dualidade comentada acima no texto. Não há inclusão na falta de contato, muito menos uma sociedade em evolução onde não haja comunidade. E parece que é para esse ponto que a sociedade está rumando. A falta de um movimento critico já é um passo para a barbárie. Tempos atrás, grupos diversos convocaram pessoas pelas redes sociais a se associarem em prol da quebra da democracia, pedindo intervenção militar. Pessoas que nasceram e sentiram a história, e pessoas que nasceram no novo paradigma tecnológico, juntas em uma luta inconstitucional. Entre eles, políticos e grupos da sociedade civil organizada. O que faz alguém lutar por algo que para a maioria das pessoas não seria benéfico, como a quebra de direitos que somente a ditadura e o militarismo poderiam fazer? Justamente aqueles que não precisam da comunidade, não necessitam de inclusão e nem de direitos (BAUMAN, 2013). Por esse motivo, as audiências online, bem como a falta de estabilidade das amizades que se desfazem num simples bloqueio nas redes sociais, somente servem para consolidar o novo mundo do cada um por si. O novo mundo onde o social e a comunidade perdem seus valores mais importantes; que é a convivência, a empatia e o amor ao próximo. Iverson Kech Ferreira Mestre em Direito (UNINTER), Especialista em Direito Penal e Processual Penal (ABDCONST), Professor de Direito Penal, Criminologia e História do Direito. Advogado Criminalista. Autor de livros e artigos jurídicos. REFERÊNCIA: BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo. Ed. Barcarolla, 2004. LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. https://periodicos.ufpe.br › article › download › pdf Tradução: Renato Aguiar. 1 ed. São Paulo: Zahar, 2018 (LIVRO. DIGITAL).
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