Conforme bem colocado pelo Prof. Maurício Dieter ao anunciar o lançamento do caderno com propostas legislativas contra o encarceramento em massa do IBCCRIM[1], a crítica elaborada pelos criminalistas (com ênfase à trazida pela criminologia) é frequentemente taxada de meramente desconstrutiva, sem capacidade operacional de transformação.
Em resposta clara e eloquente à essa acusação veio à tona, em evento hospedado pela PUC/PR nesta semana, um trabalho de admirável escopo. Trata-se de um caderno com 16 medidas legislativas tendentes a reduzir a irracionalidade de operação do sistema penal brasileiro. Como decorrência da importância do que ali foi colocado e da necessidade de se propagar estas medidas em alto e bom tom, teço abaixo breves comentários acerca de três das medidas propostas. Espero que estes apontamentos incitem o leitor ao desejo de conhecer o inteiro teor das medidas e, indo além, colaborar na mais ampla divulgação possível. Já na apresentação do caderno há um trecho que merece destaque. Concretizando a noção de que vivemos em uma fase de expansão e recrudescimento de aplicação do direito penal, o caderno aponta para o fato de que “desde a promulgação da Constituição da República até o mês de Agosto de 2015 foram editadas 77 leis ordinárias e complementares criando novos tipos penais”. Diante deste fato, um primeiro foco ou desafio para as medidas é “consolidar um consenso mínimo na sociedade no sentido de que o superencarceramento não é uma solução, mas sim um grande problema”. Ainda que nos pareça que qualquer possibilidade de argumentação em sentido contrário precise passar por uma visão fascista de governabilidade, fato é que o senso comum ainda é “pacífico” no sentido de que a punição e o cárcere previnem crimes e solucionam conflitos. A tarefa de esclarecimento se faz então, não só necessária, mas urgente. Uma última observação importante antes de mencionar alguns pontos do caderno: as instituições que subscrevem as propostas estão cientes de que “as medidas legislativas não são suficientes para transformação do estado de coisas inconstitucional”, mas entendem que “a mudança de verdade é sobretudo cultural e depende de um impulso político que poderá vir da união de forças em torno desse conjunto de medidas”. Feitos estes comentários introdutórios, passo a análise de três medidas que merecem, em minha visão, atenção especial. A primeira de cunho preventivo (processo legislativo). A segunda voltada ao direito penal material. A última substancialmente processual. No sentido de “estancar o sangramento”, as propostas começam com algo ao mesmo tempo singelo e fundamental. Trata-se da primeira medida, intitulada “Análise de impacto econômico de alterações legislativas especiais”. Em seu teor, trata de alterar o inciso “X” do art. 32 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, para fazer inserir esta análise como requisito para propostas de alteração legislativa em matéria penal. A redação ficaria assim, segundo a proposta: Art. 32. …………………….. X - ………………………… m) aspectos financeiros e orçamentários públicos de quaisquer proposições que tratem da criação de novos tipos penais, aumentem a pena cominada ou tornem mais rigorosa a execução da pena, considerando a quantidade de vagas necessárias no sistema prisional. ……………………...” (NR) A recomendação vem acompanhada de robusta justificação, embasada em doutrina nacional e estrangeira altamente qualificada. O grande mote desta proposta é o de “responder ao problema da expansão do direito penal”. A medida caminha no sentido de atender a recomendações de órgãos internacionais (como a Comissão Europeia para produção de legislações mais eficientes), com a implantação efetiva de estudos prévios de impacto político-criminal, ainda que voltados a aspectos utilitaristas (econômicos). Aqui a força da proposta em minha visão. Trabalha ela no terreno desconfortável, para muitos criminalistas, de funcionalismo sistêmico-penal (nem mesmo axiológico/teleológico, mas puramente sistêmico), tentando oferecer resistência dentro do âmbito de linguagem daqueles que parecem não possuir a sensibilidade social necessária para tratar do problema penal em termos sociológicos. Opera-se então no campo próprio do pragmatismo, para fazer perceber que mesmo aí o quadro atual é irracional (no sentido mais weberiano possível). Passando para análise de medidas de cunho de direito penal material, seria extremamente válido analisar a recomendação que pretende alterar a Lei de Drogas. Por opção restritiva, no entanto, no desejo de não estender muito o texto, me atenho a uma outra medida, de número 3, versando sobre os crimes de furto e roubo. Segundo a proposta, os artigos 155 e 157 do Código Penal sofreriam alteração em seu conteúdo, da seguinte maneira: Art. 155 – (...) Pena – detenção, de 6 meses a dois anos e multa. § 1º - (...) § 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz aplicará somente a pena de multa. Se houver reparação do dano ou devolução da coisa subtraída pelo agente, até a sentença de primeiro grau, a punibilidade será extinta. (NR) § 3º - (...) Furto qualificado § 4º - A pena é de reclusão de um a cinco anos, e multa, se o crime é cometido: I - com invasão de domicílio; II - com abuso de confiança; III - mediante fraude, escalada ou destreza; IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas. § 5º (...) § 6º (...) § 7º - Em todas as hipóteses previstas no artigo, somente se procede mediante representação. (NR) Art. 157 – (...) Roubo privilegiado § 4º Se o crime for praticado sem violência real e o meio empregado for inidôneo para ofender a integridade física da vítima, ou se o bem for de pequeno valor, o juiz reduzirá a pena de um sexto a um terço. § 5º Para fins deste artigo, arma é instrumento que tenha efetividade para lesionar efetivamente a integridade física da vítima. (NR) A justificação da medida não precisa de muito estudo para se mostrar pertinente. Conforme aduz o caderno de propostas, trata-se de mera correção de um histórico de desproporcionalidade gritante, claramente produzido pelos interesses segregacionistas com que os crimes patrimoniais foram severamente apenados. Volta-se aqui a discussão para necessidade de implantação corajosa de “novos” mecanismos de composição, capazes de permitir ao direito penal que ocupe seu lugar constitucionalmente estabelecido, ou seja, como última ratio. Partindo para citação de uma última medida, agora no campo processual, chamo a atenção para a de número 6: a criação do/a Juiz/a de Garantias. Dentre as atribuições sensíveis que a este/a seriam implicadas, destacam-se: Art. 4º - A O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (...) V – decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar; VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las; (..) VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pelo delegado de polícia e observado o disposto no parágrafo único deste artigo (...) XI – decidir sobre os pedidos de: a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; b) quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar; d) acesso a informações sigilosas; e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado. XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia XIV – arquivar o inquérito policial Nota-se de pronto a relevância em atribuir tais competências a um magistrado preparado justamente para este fim. Neste sentido há um outro item dentro desta proposta legislativa que versa especificamente sobre a separação de competências em decorrência do momento processual, algo que grandes processualistas vêm literalmente exigindo como superação do modelo inquisitório em nosso país há muito tempo. Esta separação ficaria assim delimitada: Art. 4º -C. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências deste Capítulo ficará impedido de funcionar no processo Em sede de justificação desta medida, o caderno aponta para o fato de que a separação de competência e a existência efetiva de um juiz apto a salvaguardar a legalidade da investigação criminal é uma exigência constitucional de proteção de direitos fundamentais do acusado. Em que pese, como bem assentado na apresentação do caderno, essas medidas não serem capazes de solucionar por completo o grave problema do expansionismo penal e da degradação operada pelo encarceramento em massa, mostram-se fundamentais para o atingimento de um patamar civilizatório mínimo na maneira como um país, que se proclama Estado Democrático de Direito, lida com os conflitos sociais. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal, Processual Penal e Criminologia Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Referência: Acesso ao caderno de propostas: http://www.ibccrim.org.br/docs/2017/16MEDIDAS_Caderno.pdf [1] Juntamente com a CNBB, a AJD e o CEDD/UnB Comments are closed.
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