Algo que intriga na prática e na jurisprudência se refere ao uso de entorpecentes e o tratamento dado ao usuário de entorpecentes, que conforme será debatido, muitas das vezes não se coadunam com a própria Política de Drogas adotada atualmente.
Na visão da jurisprudência, a natureza jurídica do uso de substância entorpecente ilícita seria um crime, contravenção penal ou uma infração sui generis? O Supremo Tribunal Federal em 2007 assentou o seguinte posicionamento sobre o tema:
Assim, ficou assentado pelo Supremo Tribunal Federal que o uso de substâncias entorpecentes ilícitas continua sendo definido como crime, sendo que a lei 11.343/06 apenas adotou o posicionamento de uma possível “despenalização” das penas privativas de liberdade. Contudo, há posições divergentes na doutrina, sendo que alguns compreendem que pelo fato de não ser atribuída uma pena ao delito de uso, houve uma descriminalização formal, uma vez que o crime dependeria de uma previsão de pena, neste sentido GOMES e SANCHES:
Para os autores, há uma nova classificação da natureza jurídica do uso de entorpecentes, sendo que para os mesmos:
Ou seja, para os autores o uso de entorpecentes, na verdade, se trata de uma infração sui generis, o que nos parece mais acertado, mas ressaltando que existem posições diversas na doutrina como expõe MARCÃO:
Mas há algo mais profundo nas consequências da definição da natureza jurídica, qual seja a incidência da figura da reincidência quando da condenação anterior pelo uso de substâncias entorpecentes, senão vejamos dois julgados do STF e do STJ, respectivamente:
Assim, adotando a linha de posicionamento do Supremo Tribunal Federal de que o uso de entorpecentes permanece com natureza jurídica de crime, abre-se a possibilidade da aplicação da reincidência para condenação anterior pelo uso de entorpecentes. Ao que nos parece, tal natureza jurídica, bem como a aplicação de reincidência por condenação anterior ao uso de entorpecentes vai de encontro com as próprias diretrizes e tratamento conferidos ao usuário definidos pela lei 11.343/06. Adotando a técnica hermenêutica da interpretação prevista no artigo 12 do Código Penal, que assim disciplina: “Art. 12 - As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso.” Temos que não há como conceber a aplicação de reincidência por condenação anterior pelo uso de entorpecentes, em especial pelas próprias diretrizes da lei 11.343/06, uma vez que nos próprios julgados que versam sobre a natureza jurídica, é mencionado reiteradamente que houve a despenalização do usuário de entorpecentes, não lhe aplicando o cárcere. Assim, quando avaliada a circunstância agravante da reincidência, estamos diante de um impasse: Ao aplicar a circunstância agravante da reincidência, estamos por atribuir uma pena maior ao novo delito, em razão do uso de entorpecentes, desta feita, de modo indireto, estamos por aumentar a pena de cárcere pelo uso de entorpecentes. Ora seja, a Política de Drogas adotada não permite o cárcere ao usuário, mas ao mesmo tempo a jurisprudência admite o aumento de pena (com cárcere) pelo delito de uso de entorpecentes, assim, é por deveras contraditório (para dizer o mínimo) tal definição jurídica e a aplicação da agravante pela reincidência. No mesmo sentido, há que se ressaltar que a condenação anterior por uma contravenção penal não gera reincidência, então porque no uso de drogas incidiria? Seria pelo simples fato do entendimento, ao nosso ver equivocadamente, de que o uso de drogas possui natureza jurídica de crime? Para sustentar a posição diversa que sustentamos aqui, alguns se valem do argumento de que a reincidência por condenação anterior ao uso de entorpecentes está prevista no §4º, do art. 28 da lei 11.343/06. Porém, analisando detidamente o referido artigo, a reincidência do referido dispositivo também não prevê a pena de reclusão ao usuário de entorpecentes, sendo extremamente específico dispondo que: “§ 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses”. Em uma leitura em conjunto com os incisos II e III do artigo 28 da lei 11.343/06, verifica-se que a reincidência é aplicada restritivamente quando a pena culminada for as previstas nos incisos II e III, não abrindo possibilidade a aplicação de reincidência quando se trata de crime com pena de reclusão. Ademais, a própria Lei de Introdução ao Código Penal, em seu primeiro artigo assim disciplina:
Assim, se o artigo 28 da lei 11.343/06 não estabelece pena de reclusão ou detenção, pena de prisão simples, é impossível a adoção da natureza jurídica de crime ou até mesmo contravenção penal. Veja que adotando a classificação do uso de entorpecentes como infração sui generis, a aplicação da reincidência por condenação anterior pelo uso de entorpecente cai por terra, uma vez que conforme GOMES e SANCHES:
Talvez o argumento mais válido no que tange a crítica com relação a tal classificação do uso de entorpecentes como crime, é a associação do usuário à figura do criminoso com todos os ônus inerentes de ser considerado como tal. Contudo, as próprias diretrizes da lei assim estabelecem:
Ou seja, o usuário de drogas não pode ser reprimido com medidas prisionais, mas sim reinserido na sociedade, e as medidas previstas aos usuários de entorpecentes devem ser compatíveis com tal premissa, e qualquer outra medida, envolvendo principalmente o cárcere, vai de encontro com as diretrizes da lei, sendo que o usuário deve ser tratado como doente aos olhos da lei, e não como criminoso. Desta forma, temos duas questões, a primeira concerne na “escolha” da natureza jurídica dos entorpecentes, e a segunda se refere ao fato da aplicação da agravante da reincidência por condenação anterior pelo “crime” de uso de entorpecentes ilícitos. Ao que nos parece, a escolha adotada pela jurisprudência não se coaduna com as próprias diretrizes da lei 11.343/06, vez que classificando o usuário de entorpecentes como criminoso, não se estará reinserindo-o na sociedade, mas sim excluindo-o. Ainda, aplicando a natureza jurídica do uso de entorpecentes ilíticos como crime, abre-se as portas para a incidência da agravante da reincidência por condenação anterior ao uso de entorpecentes, e conforme já mencionado, isso por si só já configura um atentado contra a própria Política de Drogas adotada atualmente. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Formado em Direito pela Universidade Positivo Pós-graduado em Direito Contemporâneo com Ênfase em Direito Público pelo Curso Jurídico Especialista em Direito Penal e Processo Penal Pela Academia Brasileira de Direito Constitucional Mestrando em Direito pela Uninter BIBLIOGRAFIA GOMES, Luiz Flávio Gomes; SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal: crime, infração penal “sui generis” ou infração administrativa?. Pub. em 19/01/2007. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI34439,41046-Posse+de+drogas+para+consumo+pessoal+crime+infracao+penal+sui+generis> Acesso em: 10/06/2018. MARCÃO, Renato. O art. 28 da nova lei de tóxicos na visão do Supremo Tribunal Federal. Pub. 30/03/2007. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI37341,91041-O+art+28+da+nova+lei+de+toxicos+na+visao+do+Supremo+Tribunal+Federal> Acesso em: 11/06/2018. JURISPRUDÊNCIA. STF, 1º Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n. 456. Brasília, 12 a 23 de fevereiro de 2007. JURISPRUDÊNCIA. STF. HC 151864 SP - SÃO PAULO 0015950-67.2017.1.00.0000. Rel. Min. Luiz Fux. Julg. 01/02/2018. Pub. 07/02/2018. JURISPRUDÊNCIA. STJ. AgRg no REsp 1519540 SP 2015/0050774-6. 5ª Turma. Rel. Min. Felix Fischer. Julg. 16/02/2016. Pub. 24/02/2016. [1] GOMES, Luiz Flávio Gomes; SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal: crime, infração penal “sui generis” ou infração administrativa?. Pub. em 19/01/2007. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI34439,41046-Posse+de+drogas+para+consumo+pessoal+crime+infracao+penal+sui+generis> Acesso em: 10/06/2018. [2] GOMES, Luiz Flávio Gomes; SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal: crime, infração penal “sui generis” ou infração administrativa?. Pub. em 19/01/2007. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI34439,41046-Posse+de+drogas+para+consumo+pessoal+crime+infracao+penal+sui+generis> Acesso em: 10/06/2018. [3] MARCÃO, Renato. O art. 28 da nova lei de tóxicos na visão do Supremo Tribunal Federal. Pub. 30/03/2007. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI37341,91041-O+art+28+da+nova+lei+de+toxicos+na+visao+do+Supremo+Tribunal+Federal> Acesso em: 11/06/2018. Comments are closed.
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