Artigo de Kaio Cesar Garcia de Freitas na coluna do estudante do sala de aula criminal, vale a leitura! '' Apesar da imensa semelhança com a realidade da periferia no Brasil, Capão Pecado é uma obra literária de ficção que mostra o quanto é comum o domínio da criminalidade em determinadas regiões do país, seja por parte da população carente, seja por parte da polícia autoritária, mas, a lição mais importante com a história de Rael é que nenhum ser humano sob o sol está longe de cometer um homicídio, principalmente, movido a emoção, paixão, ódio ou vingança. Afinal, como diz o próprio autor, “da trairagem, nem Jesus escapou” (FERRÉZ, 2016)''. Por Kaio Cesar Garcia de Freitas Burgos lhe explicara tudo, como proceder, e agora era só esperar. Seu Oscar desceu do carro e abria a primeira porta da metalúrgica. Burgos estava do outro lado, Rael ia fazer por vingança, pela honra; Burgos ia fazer pela grana. Burgos o rendeu facilmente com uma pistola F.N modelo 1903 calibre 9mm, que fora desenhada para o Exército Belga, e o empurrou para dentro do escritório.
Rael adentrou a metalúrgica, e Seu Oscar suou frio quando o viu com uma calibre 12 nas mãos. Burgos começou a revirar o escritório, achou o cofre, e Seu Oscar deu a senha. Rael encostou a arma em sua cabeça e lembrou de Ramon, Burgos pegou o dinheiro e pensou numa CBR novinha e numa mina na garupa, muito gostosa. Rael suava, seu coração batia mais acelerado do que o de Seu Oscar, Burgos falou que iria evadir e que era pra ele fazer o serviço. Rael balançou a cabeça afirmativamente, Burgos saiu. Rael se esqueceu de Deus, de sua mãe e das coisas boas da vida, apertou o gatilho e fez um buraco de oito centímetros na cabeça de Seu Oscar. (FERRÉZ, 2016). O trecho acima, retirado do livro Capão Pecado, do escritor Ferréz, retrata uma cena típica de um dos bairros mais violentos da grande São Paulo: o Capão Redondo. Localizado na zona sul da capital paulista, o bairro é cenário para diversos crimes retratados pelo autor, em especial, o cometido por Rael que, ao ser abandonado pela sua esposa, Paula, e seu filho, Ramon, decide, juntamente com seu amigo Burgos, que matar o pivô de sua separação, Seu Oscar – amante de Paula e ex-chefe de Rael – é a melhor maneira de se vingar pelo sofrimento que lhe fora imposto. Em um primeiro momento, parece tratar-se de um homicídio passional em sua terceira acepção jurídico-penal, haja vista que, é a “conduta daquele que traído, mata o seu parceiro adúltero e/ou o amante deste”( LEAL, 2005), sendo o crime motivado por uma vingança amorosa. Entretanto, em uma análise jurídica dos acontecimentos narrados pelo autor, verifica-se que – assim como todo o Direito – o crime supramencionado é algo mais complexo. O homicídio passional trata-se de um crime motivado por uma paixão, um sentimento de amor ou possessão e, até mesmo, pelo ciúme. Assim são denominados justamente por derivar-se da paixão e, nada mais é, do que uma vingança privada. No entanto, “todo crime é de certo modo passional, por se resultar de uma paixão no sentido vasto do termo. Porém, convencionou-se, na linguagem jurídica identificar de ‘passional’ somente os crimes cometidos a partir de um liame entre as partes, um relacionamento amoroso ou sexual ” (Eluf, 2007 apud Baptista, 2015). Diante disto, parte da doutrina entende que “no homicídio passional é comum entender que a traição, principalmente no contexto sexual – mais que no amoroso ou sentimental – revela com precisão a ideia de ‘injusta provocação da vítima’” (SOUZA, 2020), tipificando-se o fato como homicídio privilegiado, desde que o crime seja cometido logo após essa injusta provocação. Contudo, apesar de o crime cometido por Rael ser motivado pela sua paixão por Paula, diversos fatores corroboram para que ele não se enquadre na forma privilegiada do art. 121, § 1º, CP, por exemplo, o fato de Rael e Burgos premeditarem o delito com antecedência; a ‘emboscada’ feita ao esperar Seu Oscar chegar a sua metalúrgica e o concurso de agentes no fato típico já que, Burgos, contribuiu ao fato principal ao abordar Seu Oscar e o levar até o interior de seu escritório, sendo assim, um possível participe. Em uma segunda análise – não tão profunda – parece ser possível tipificar o delito no art. 157, § 3º, II, CP, como latrocínio, já que houve o roubo ao cofre de Seu Oscar juntamente ao seu assassinato. Todavia, para que se configure o crime de latrocínio é necessário que “o intento inicial e principal da conduta seja a subtração patrimonial” (FILHO, 2020) e não a morte da vítima (ou de terceiro), visto que, esse é um crime contra o patrimônio, não contra a vida. Neste caso, a morte é circunstância ocasional da infração, ou seja, advém da violência empregada para que se conclua o delito. No caso em questão, constata-se que o intento principal e, consequentemente inicial, do delito é a vingança de Rael, Burgos participa da preparação e execução do crime objetivando subtrair o patrimônio de Seu Oscar, não importando se Rael realmente cometeria o assassinato. Desta forma, exclui-se o crime de latrocínio para ambos, visto que, não há conduta que gere esta tipicidade. Em uma terceira análise, buscando tipificar a conduta estudada de maneira correta e, principalmente, justa, há que se falar em diferentes crimes cometidos por Rael e Burgos, apesar de serem cometidos ao “mesmo tempo” e contra a mesma vítima. Analisando primeiramente a conduta de Burgos, não há dúvidas de que se trata de roubo. Mais afundo, é possível afirmar que o roubo cometido enquadra-se no art. 157, caput, CP, sendo este o roubo próprio, ou seja, aquele em que o delito é cometido mediante violência ou grave ameaça ou logo após havê-la, para que, então, subtraia-se o patrimônio da vítima. Nesse modo, “a violência ou grave ameaça ocorre como método de apoderamento da coisa pelo agente, seja anteriormente ou concomitantemente ao ato da subtração” (FILHO, 2020). Além disso, o delito do agente também se configura ao §2º-A, I, do art. 157, CP, dispondo que, na fase de dosimetria da pena – pena essa que para o crime previsto no art. 157, caput, CP, é reclusão de quatro a dez anos – possibilitaria que o magistrado a aumentasse de 2/3 devido ao emprego de arma de fogo ao exercer a violência e a grave ameaça. No que se refere ao caso de Rael, pode-se dizer que se trata de um delito mais complexo, devido aos fatos e circunstâncias que permeiam o homicídio. Como já mencionado, sob um olhar leigo, estamos diante de um homicídio passional, motivo pela imensa paixão de Rael por Paula e por seu desejo de vingar-se de Seu Oscar, amante de sua ex-esposa e seu ex-chefe. Durante toda trama fica claro que Rael – diferentemente de Burgos – é de bons antecedentes, boa índole, sem histórico de envolvimento com crime e sempre trabalhou para ajudar sua mãe com as despesas. Conheceu Paula quando ela namorava Matcherros, seu melhor amigo e, com a convivência, se apaixonaram, ficaram juntos e tiveram um filho: Ramon. Tudo indica tratar-se de alguém incapaz de cometer tão grave crime: matar alguém. Todavia, tal característica está presente na maioria dos casos de homicídio passional, onde, até então, quem mata não se trata de um criminoso de extensa ficha criminal, mas sim, de alguém que ama e, por transformar seu amor em ódio, mata. Conforme escreve Bukowski, “as pessoas apaixonadas, em geral, se tornam impacientes, perigosas. Perdem o senso de perspectiva. Perdem o senso de humor. Ficam nervosas, tornam-se psicóticas, podendo, então, virar assassinos” (BUKOWSKI). Neste momento, entende-se que – assim como qualquer outro ser humano – Rael era totalmente capaz de praticar o crime. Tanto que o fez. Desta forma, há de se questionar se o homicídio analisado pode enquadrar-se em sua forma privilegiada – que, na verdade, é somente causa de diminuição de pena – presente no § 1º do art. 121, CP, dispondo que, para obtenção do “privilégio”, o agente, necessariamente, deve ter agido sob domínio de violenta emoção, logo em seguida de injusta provocação da vítima, ou então, impelido por motivo de relevante valor moral ou social. São três as circunstâncias presentes no texto legal para o acolhimento o privilégio no crime de homicídio: a) motivo de relevante valor social; b) motivo de relevante valor moral; c) sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida de injusta provocação da vítima. Analisando primeiramente o motivo, o porquê o crime cometido por Rael, constata-se que é apenas ciúme e vingança, pois, o agente mantinha um forte sentimento de possessão em relação a sua esposa. Tal sentimento comprova-se quando o autor menciona que Rael, ao saber que as pessoas de seu bairro já sabiam de sua relação amorosa com Paula, não se incomodou, “pois, em sua cabeça já corriam planos de ficar com Paula, de um jeito ou de outro” (FERRÉZ, 2016). Rael não se imaginara viver sem Paula e, consequentemente, não a imaginara vivendo com outra pessoa. Nesta situação, o motivo analisado não pode ser considerado algo de relevante valor social ou moral, já que, segundo doutrina o valor social ou moral do motivo é de ser apreciado não segundo a opinião ou ponto de vista do agente, mas com critérios objetivos, segundo a consciência ético-social geral ou senso comum, da mesma forma que não basta, para efeito da redução da pena, que exista valor social ou moral, mas é necessário que este seja relevante, notável, importante e especialmente digno de apreço (FILHO, 2020). Assim sendo, mesmo que, para Rael, o ciúme, a vingança e, até mesmo, a defesa de sua honra tenham relevante valor moral, tais motivos não figuram relevância social, notoriedade ou, se quer, são dignos de apreço, sendo impossível adequá-los ao texto legal. No tocante ao domínio de violenta emoção e o delito ser cometido logo em seguida a injusta provocação da vítima, tem-se uma vasta discussão. Primeiramente, quanto à emoção, segundo Bitencourt, a emoção “é uma viva excitação do sentimento. É uma forte e transitória perturbação da afetividade a que estão ligadas certas variações somáticas ou modificações particulares das funções da vida orgânica” (BITENCOURT, 2020), ou seja, é uma descarga de tensões naturais ao ser humano, porém, passageira, ao contrário da paixão que é o “estado crônico da emoção, que se alonga no tempo, representando um estado contínuo e duradouro de perturbação afetiva” (BITENCOURT, 2020). Em outras palavras, a emoção vem e vai, já a paixão perdura, não bastasse, alimentando-se de si mesmo. Apesar de muitos lutarem para distinguir esses sentimentos, para o Direito a paixão e a emoção não apresentam grandes problemas, pois nem uma, nem outra, constitui excludente de antijuridicidade, embora, indubitavelmente, podem influenciar na vis electiva entre o correto e o errado. Tais estados emocionais poderão, apenas, atenuar, reduzir a pena, desde que atendidos certos requisitos legais, exemplo disso, o acima mencionado homicídio privilegiado. Destarte, é necessário que juntamente com a violenta emoção haja a injusta provocação da vítima, e que a ação de quem mata seja logo em seguida a esta injusta provocação. Analisando ainda a doutrina de Bitencourt, vê-se que além da intensidade emocional, é fundamental que a provocação tenha sido da própria vítima, e através de um comportamento injusto, ou seja, não justificado, não permitido, não autorizado. Com essa redação, também é admissível a interpretação mais ampla dos referidos dispositivos, para que também sejam passíveis de diminuição de pena os crimes passionais (BITENCOURT, 2020). Trazendo esse conhecimento para o caso em análise, faz-se perceptível que Rael não cometera crime passional, não podendo privilegiar-se com o disposto no §1ª do art. 121, CP. Ora, se para tal privilégio é necessário estar sob domínio de violenta emoção e sabe-se que emoção é estado sentimental passageiro, só está sob seu domínio aquele que presencia a injusta provocação. Todavia, diante dos fatos, atesta-se que, além de não agir sob violenta emoção, Rael não sofreu injusta provocação, pois, Paula o abandonou simplesmente deixando um bilhete para que lesse quando retornasse do trabalho. Rael só fora descobrir que Seu Oscar era o amante de Paula, dias depois, através de outras pessoas, ficando impossibilitado de agir de maneira atual e iminente. Assim, leciona Souza, que a ‘atualidade’ da resposta (homicídio) delimita e distingue o privilégio da premeditação ou da vingança. Se a resposta não ocorre no imediato instante em que o algoz é provocado, retira-se-lhe o privilégio, e provavelmente estaremos diante de um homicídio qualificado (SOUZA, 2015). E é justamente no homicídio qualificado que a conduta de Rael se vincula, podendo figurar no inciso II (motivo fútil) e no inciso IV (à traição, emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido) do §2ª, art. 121, CP, como homicídio “duplamente” qualificado. Quanto ao primeiro, entende-se por fútil aquele motivo que não carrega em toda sua insignificância a capacidade de justificar o crime cometido, é a desproporcionalidade entre a provocação e o resultado final da ação, ou seja, no caso de Rael, matar Seu Oscar por vingança e ciúmes de Paula, ao saber, através de pessoas de sua convivência, que ela o abandonou para ficar com o ofendido. Quanto ao segundo, é visto que Rael e Burgos agiram mediante emboscada, que é a “dissimulada espera da vítima em algum lugar que esta deverá passar, é a tocaia na expressão dos sertanejos” (FILHO, 2020). Faz-se possível essa qualificação pois os dois agentes aguardaram a chegada de Seu Oscar a sua metalúrgica, fazendo com que o ofendido ficasse vulnerável, facilitando ação dos agentes. Deste modo, segundo legislação vigente Rael poderá ser condenado, por intermédio do tribunal do júri, à pena de reclusão de doze a trinta anos, iniciando seu cumprimento em regime fechado. Por tratar-se de crime hediondo, terá tratamento mais rigoroso do que as demais infrações penais, sendo crime inafiançável e insuscetível de graça, anistia e indulto. Vale ressaltar que, apesar de o crime cometido por Rael ser homicídio “duplamente” qualificado, é majoritário o entendimento de que não há dupla qualificação no momento da dosimetria da pena. Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, na hipótese de concorrência de qualificadoras num mesmo tipo penal, uma delas deve ser utilizada para qualificar o crime e as demais devem ser consideradas como circunstâncias agravantes genéricas, se cabíveis, ou, residualmente, como circunstâncias judiciais (STF, 2011, on-line). sendo assim, utiliza-se o termo “duplamente qualificado” somente para fins didáticos. Diante o exposto, é possível afirmar que, no mundo real, Rael provavelmente seria preso, condenado e passaria vários anos de sua vida em algum presídio de segurança máxima, sairia sem perspectiva de futuro, pois o sistema penal brasileiro – e de quase todo o mundo – não incentiva o trabalho, o estudo, enfim, a ressocialização do apenado, tampouco, luta contra o preconceito existente na sociedade contra quem já esteve do lado de lá das grades, fazendo com que a imensa maioria destes volte a cometer delitos ao fim de seu período de dívida com a justiça. Na trama, Rael fora visto saindo da metalúrgica armado. Fora denunciado e preso. No presídio, fora assassinado brutalmente a mando de Burgos para “queimar arquivo”. Tempos depois, Burgos fora morto pela polícia, que vendeu as armas que estavam em sua posse a outro traficante qualquer no morro. Apesar da imensa semelhança com a realidade da periferia no Brasil, Capão Pecado é uma obra literária de ficção que mostra o quanto é comum o domínio da criminalidade em determinadas regiões do país, seja por parte da população carente, seja por parte da polícia autoritária, mas, a lição mais importante com a história de Rael é que nenhum ser humano sob o sol está longe de cometer um homicídio, principalmente, movido a emoção, paixão, ódio ou vingança. Afinal, como diz o próprio autor, “da trairagem, nem Jesus escapou” (FERRÉZ, 2016). KAIO CESAR GARCIA DE FREITAS Graduando em Direito pelo Centro Universitário Uninter. Membro do Grupo de Pesquisa: Processo Penal e Jurisdição Constitucional. BIBLIOGRAFIA BAPTISTA, Carla Viviane Bertoch. Homicídio passional – Uma discussão entre crime privilegiado e qualificado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 116, p.4, set./out.2015. Disponível em: [http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RBCCrim_n.116.05.PDF]. Acesso em: 08.11.2020. BITENCOURT, Cezar Roberto. Coleção Tratado de Direito Penal Parte Geral, Vol. 1. 26 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 99809/PR. Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 23.08.2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-178. DIVULG 15-09-2011 PUBLIC 16-09-2011 EMENT VOL-02588-01 PP-00048. BUKOWSKI, Henry Charles. Pensador.Info. Disponível em: [http://pensador.uol.com.br/autor/charles_bukowski/]. Acesso em: 08.11.2020. FERRÉZ. Capão Pecado. 2 ed. São Paulo: Planeta, 2016. FILHO, Acacio Miranda da Silva... [et al.]; JALIL, Mauricio Schaun. FILHO, Vicente Greco. Código Penal Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 3 ed. Barueri: Manole, 2020. LEAL, João José. Cruzada doutrinária contra o homicídio passional: análise do pensamento de Leon Rabinowicz e de Nelson Hungria. Jus Navigandi. 29 ago. 2005. Disponível em: [http://jus.com.br/revista/texto/7211]. Acesso em: 10 nov. 2020. SOUZA, André Peixoto de. Teses sobre homicídio (parte 1). Canal Ciências Criminais. 05 out. de 2015. Disponível em: [https://canalcienciascriminais.com.br/teses-sobre-homicidio-parte-1/]. Acesso em: 08.11.2020.
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