Em 1999, o Código de Processo Penal Alemão (“Strafprozessordnung” – StPO) passou a permitir a aplicação de alguns meios de gravação no âmbito da intimidade e da privacidade das pessoas, o que era chamado de “Großen Lauschangriff”. Essa previsão, principalmente no § 100 c I, n. 3, da StPo, autorizava a autoridade a escutar e fazer gravações de conversas em moradias, desde que houvesse suspeita da prática de algumas infrações (ALEMANHA, Strafprozessordnung, 1950). Com precisão, o Tribunal Constitucional Federal Alemão (“Bundesverfassungsgerich”), no dia 3 de março de 2004, declarou inconstitucionais os referidos dispositivos legais, fundamentando sua decisão nos princípios da legalidade e da proporcionalidade (ALEMANHA, Bundesverfassungsgerich, 2004). Recentemente, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, no caso Riley v. California, que quase sempre haverá necessidade de um mandado judicial antes que a autoridade policial vasculhe o telefone celular de uma pessoa presa. No Brasil, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no RHC 51.531, decidiu em 2016 que necessita de autorização judicial o acesso ao conteúdo de conversas do WhatsApp que estejam em celular apreendido pela polícia no momento do flagrante. Caso contrário, o conteúdo dessas conversas não poderá ser considerado como prova no processo criminal. Como se observa nesses três casos acima, a privacidade do domicílio (Alemanha) e das conversas de telefone celular (Estados Unidos e Brasil) está recebendo proteção judicial de acordo com a evolução tecnológica. De fato, é da essência do processo penal que a obtenção de provas afete a privacidade somente na medida necessária para a consecução dos seus fins. Acima disso, há excesso, e a privacidade restará violada. Contudo, analisando os casos acima, questiono se a privacidade do domicílio e das conversas de redes sociais e outros aplicativos de celular estariam no mesmo patamar. Em outras palavras, devem ser idênticos os procedimentos para violar, por necessidade de um processo criminal, a privacidade domiciliar e a de conversas em redes sociais e aplicativos? Em ambos os casos, exige-se, como já mencionado, a prévia autorização judicial. Até esse ponto, acredito não haver divergência. Entrementes, defendo que o acesso a dispositivos telefônicos, mensagens privadas de redes sociais, WhatsApp e qualquer outro ambiente tecnológico em que a privacidade é uma característica relevante deve ter uma proteção posterior maior. Não se pode conceber que os critérios para acessar uma casa sejam idênticos aos de acesso de mensagens privadas. O acesso às informações que fazem parte de mensagens privadas, normalmente digitadas ao longo de muitos meses ou anos, deveria ter exigências mais rígidas do que o acesso ao domicílio. Defendo essa necessidade maior de tutela da privacidade de conversas privadas a partir de vários motivos. Inicialmente, constata-se que a casa de alguém abriga informações e objetos apenas dos moradores e das poucas pessoas que a frequentam. Por outro lado, as redes sociais e os aplicativos de conversa instantânea reúnem, para cada indivíduo, falas de dezenas ou centenas de interlocutores. Cada pessoa potencialmente sujeita a um processo criminal dialoga com inúmeras outras, que respondem acreditando que a conversa não será de conhecimento de terceiros. Além disso, os dispositivos tecnológicos guardam informações pretéritas, de muitos meses ou anos, ao contrário das casas, que refletem apenas a situação atual das coisas. Assim, seja pela tutela da privacidade do investigado/réu, seja pela proteção da privacidade dos terceiros que com ele conversaram, deve-se buscar um critério mais protetivo para a aferição do conteúdo que se encontra em dispositivos tecnológicos. Na tentativa de separar o que é relativo ao crime e o que tem relevância apenas pessoal ou profissional, a autoridade policial que examina um dispositivo tecnológico tomaria conhecimento de conteúdos desonrosos oriundos do investigado ou dos seus interlocutores. Como evitar essa exposição desnecessária? Como “invadir” a privacidade alheia apenas de modo a descobrir eventuais infrações penais praticadas? Acredito que, além da prévia autorização judicial, deveria haver uma análise “cega” pela autoridade policial, ou seja, dever-se-ia ocultar o nome dos interlocutores antes da análise do conteúdo, fazendo a reidentificação apenas depois de extraídas as partes relativas a eventual crime. Noutros termos, um perito, sem analisar o conteúdo, copiaria todas as conversas e, por meio de um procedimento de exclusão (algo um pouco mais evoluído que o “localizar e substituir” dos editores de texto), retiraria o nome do investigado, substituindo por algum código identificador ou por números. Outro perito analisaria as mensagens, já com a supressão do nome, e identificaria quais seriam relevantes para o crime apurado, descartando o conteúdo de caráter pessoal, profissional ou íntimo que não tivesse relação com o processo criminal. Em seguida, haveria a reidentificação dos interlocutores. Dessa forma, o primeiro perito saberia quem são os interlocutores, mas não analisaria o conteúdo bruto. Somente ao final do procedimento, após o descarte do conteúdo irrelevante (informações de caráter pessoal e profissional que não tenham relação com os crimes), analisaria as conversas relacionadas com as condutas criminosas. O segundo perito, por sua vez, teria acesso à integralidade das conversas, mas não saberia quem são os interlocutores. Um inconveniente é que isso deveria ser feito em relação a todos os interlocutores, ou seja, todos que, em algum momento, conversaram com o titular do aparelho apreendido. Caso contrário, pessoas que não tiveram contra si expedido um mandado de busca e apreensão teriam menos privacidade do que aquele cujo celular foi apreendido pela investigação. No âmbito das interceptações telefônicas, também deveria haver esse critério de ocultação dos interlocutores quando da aferição da relevância das conversas. Entretanto, como a conversa é gravada em áudio, sendo impossível prever quando serão ditos os nomes dos interlocutores, não seria possível, com a tecnologia atualmente existente, realizar essa ocultação dos interlocutores. Assim, continuará havendo a interceptação e a oitiva por autoridades policiais de conversas de conteúdo pessoal ou profissional que não possuem relação com os crimes investigados. Por fim, quanto à busca e apreensão em domicílio, não é possível essa prévia separação entre objetos, documentos e informações relativas aos crimes apurados e aqueles que possuem caráter unicamente pessoal. A análise da sua (ir)relevância para o processo criminal se dá no momento da busca, de modo que, inevitavelmente, a autoridade policial tomará conhecimento de questões pessoais de modo desnecessário. Em suma, acredito que, havendo a possibilidade de evitar desnecessárias violações à privacidade e à intimidade, como no caso de conversas privadas em dispositivos tecnológicos, deve-se buscar a medida que preserve tais direitos, gerando aos envolvidos o menor prejuízo moral, social e psicológico possível. Evinis Talon Advogado Criminalista, consultor e parecerista de Direito Penal e Processo Penal, professor de cursos de pós-graduação em Direito Penal, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processual Penal, Constitucional, Filosofia e Sociologia, ex-Defensor Público do Estado do Rio Grande do Sul, Secretário-Adjunto da Associação dos Advogados Criminalistas do Rio Grande do Sul (ACRIERGS), palestrante e escritor. BIBLIOGRAFIA: ALEMANHA. Bundesverfassungsgerich. BvR 2378/98 und 1 BvR 1084/99. Berlim, 3 mar. de 2004. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2017. ______. Strafprozessordnung. Bundesministerium der Justiz.Berlim, 12 mai. 1950. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2017.
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