Artigo de Jean Paulo Pereira sobre o caso Mari Ferrer, vale a leitura! ''É um notório caso de vitimização secundária[7] (revitimização ou sobrevitimização), muito bem estudada pela criminologia crítica, que é marcada pela atuação das instituições estatais de controle social (Polícia Judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário) frente ao cometimento de um crime, ao passo que a vítima, depois de já ter sofrido na pele as consequências da infração (vitimização primária), tem que novamente enfrentar e relembrar todo o episódio doloroso que sofrera, devendo repetir os fatos na sua colheita de depoimento perante à Autoridade Policial e, também em juízo, em audiência, na segunda fase da persecução penal, como foi o caso de Mariana Ferrer''. Por Jean Paulo Pereira Como bem repercutiu no último dia 03 de novembro de 2020, o “caso Mari Ferrer” acabou alvo das mais diversas publicações, nas mais diversas redes sociais, em razão de um motivo que, inicialmente, parecia (pasmem!) legítimo e que, no decorrer das vindouras horas do dia, se mostraria vazio e inexiste.
Não que tal episódio não mereça repúdio. O merece, e muito, mas, por razões outras das inicialmente apontadas no frescor da hora. Inicialmente, muito chamou a atenção a escandalosa figura do “estupro culposo” que, somente na terra descoberta por Cabral, e num ano tão atípico como o de 2020, poderia ser alvo de uma discussão séria e acadêmica. É evidente que, caso tal narrativa fosse verdadeira, estaríamos diante de uma aberração jurídica. Não é de hoje que se sabe que os crimes culposos, quaisquer que sejam os bens jurídicos afetados, necessitam de previsão legislativa. Não podem, em outras palavras, serem acrescentados (ou inventados) no transcurso da persecutio criminis. Como bem leciona o professor Paulo César Busato[1] “a determinação da imprudência deriva da falta de compromisso com a evitação de um resultado previsto e proibido pela norma, que afinal consiste na violação de um dever de cuidado”. Ainda, há parcela doutrinária, ao exemplo Cleber Masson[2], que traz, dentre os elementos essenciais para configuração dos crimes culposos, a “tipicidade”, que, em breve resumo, seria a subsunção da conduta praticada pelo homem no mundo concreto ao disposto pela legislação vigente. Ou seja, para que exista um crime rotulado como “culposo”, além da conduta humana, da violação de um dever objetivo de cuidado (que se dará por imprudência, negligência ou imperícia), do resultado naturalístico involuntário e da eventual relação de causalidade, deverá haver, por óbvio, previsão deste crime em lei. Em não havendo tal subsunção do fato à norma, não há que se falar em crime culposo. Contudo, como já bem salientado anteriormente, na data mencionada, as redes sociais ficaram em estado de azáfama (e não por menos, caso verdade fosse), em razão da veiculação do “caso Mari Ferrer” que, conforme noticiado, haveria sido aplicado ao acusado o crime de “estupro culposo”. Em verdade, ao se ler a sentença[3] proferida pelo juízo monocrático, constata-se que não houve qualquer menção a esta enfadonha figura do “estupro culposo”. Foi, em outros dizeres, uma espécie de lawfare[4] pós-condenação, ou, nos melhores ensinamentos de Salo de Carvalho[5], a presença da “hiperbolia sensacionalista” do processo penal. Assim, vencida esta premissa, passemos os olhos ao que realmente merece zelo, atenção e repúdio: o truculento (e arcaico) processo de revitimização que passa a vítima nos crimes contra a dignidade sexual. Além do clamor (vindo das redes sociais) sobre a figura do já questionado “estupro culposo” (que nunca existiu, por sorte), outro fato indignou a população internauta: a disponibilização de trechos da audiência de instrução[6], haja vista ter sido realizada de forma virtual. No ato em comento, várias foram as indevidas exposições sofridas pela Sra. M ariana Borges Ferreira (conhecida no mundo virtual por “Mari Ferrer”), além da evidente falta de respeito para com sua dignidade pessoal. Como bem percebe-se no vídeo acoplado às notas de rodapé, no ato de audiência ocorreram diversas ofensas à honra e à imagem da vítima vindas do advogado de defesa atuante no caso, como, aos exemplos, as frases “uma filha do teu nível. Graças a Deus.”, “E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você.”, “É seu ganha pão a desgraça dos outros.”, “Onde a única foto chupando dedinho é essa aqui. E com posições ginecológicas.”, “E só aparece essa sua carinha chorando. Só falta uma auréola na cabeça. Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lágrima de crocodilo.”. Após tais frases de incalculável desrespeito, percebe-se que Mariana Ferrer começa a chorar (ainda no ato de audiência), vindo a proferir “Eu gostaria de respeito, doutor, excelentíssimo, eu estou implorando por respeito no mínimo. Nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma que eu estou sendo tratada, pelo amor de Deus gente. Que que isso? Nem os acusados de assassinatos são tratados como eu estou sendo tratada. Eu sou uma pessoa ilibada, nunca cometi crime contra ninguém”. É um notório caso de vitimização secundária[7] (revitimização ou sobrevitimização), muito bem estudada pela criminologia crítica, que é marcada pela atuação das instituições estatais de controle social (Polícia Judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário) frente ao cometimento de um crime, ao passo que a vítima, depois de já ter sofrido na pele as consequências da infração (vitimização primária), tem que novamente enfrentar e relembrar todo o episódio doloroso que sofrera, devendo repetir os fatos na sua colheita de depoimento perante à Autoridade Policial e, também em juízo, em audiência, na segunda fase da persecução penal, como foi o caso de Mariana Ferrer. Sobre o tema, bem ensina Paulo Sumariva[8]: “Cada vez que a vítima é atendida por uma nova autoridade, ela necessita relatar novamente tudo o que aconteceu com ela. Quando isto acontece, podem surgir novas versões, munidas pelo sentimento de vergonha, medo, insegurança, culpa. Com isso podem surgir relatos onde ela se posiciona como autora do delito”. Ainda no que tange à vitimização secundária, importante destacar que esta pode se interligar com outros indivíduos ou instituições (ao que se denomina “heterovitimização”), ou, também com sentimentos internos de culpa, que são autoimpositivos (“autovitimização”)[9]. O fato é que, sendo verdadeira ou não acusação (até porque, ao que se sabe lendo a sentença, a decisão foi de absolvição), precisamos repensar de forma urgente nossos meios e procedimentos de revitimização. Por mais que a Lei nº 13.505/2019 tenha adicionado o artigo 10-A à Lei 11.340/06 (Lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher), que traz, mais precisamente em seu §1º, inciso III, a figura da “não revitimização da depoente”, que busca evitar sucessivas inquirições sobre o fato delituoso, além de indesejada intromissão na vida íntima da vítima, acredita-se que as mudanças ainda são muito tênues e discretas. Um exemplo disto é o fatídico episódio em comento. Não houve, para Mariana Ferrer, uma busca concreta e eficaz para se evitar a revitimização. A vítima não pode (nem deve) sofrer qualquer espécie de humilhação, transtorno ou vexame quando de seu depoimento, seja em sede policial, seja em sede judicial. Além da alta carga emocional já suportada quando do momento que sofreu o delito, a vítima ainda deve suportar toda recapitulação dos fatos criminosos quando de seu depoimento, devendo, ainda, no transcorrer da persecução criminal, receber perguntas da acusação, da defesa e também por parte do magistrado (neste último caso, registre-se: temos uma posição mais crítica quanto à possibilidade do magistrado poder arguir diretamente perguntas a qualquer das partes envolvidas nos autos, especialmente com a aprovação do novo art. 3º-A, primeira parte, Código de Processo Penal). No caso em tela, por óbvio, Mariana Ferrer sofrera na pele a mais cruel e brutal forma de vitimização secundária, como bem se observa nas frases aqui transcritas, que foram ditas pelo próprio defensor atuante in casu. Portanto, devemos esquecer urgentemente esta figura bizarra do “estupro culposo” que nunca existiu e, com sorte, nunca existirá, e focar no que realmente importa: o cruel e desconfortante tratamento que se é dado, nos moldes atuais, às vítimas dos crimes contra a dignidade sexual no processo de sobrevitimização. Jean Paulo Pereira Advogado criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Pós-graduando em Direito Penal pela Faculdade Arnaldo (Belo Horizonte). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2017. CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Saraiva. 6. ed. São Paulo: 2015. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/palavra-mariana-ferrer-nao-basta.pdf. Acesso em: 04/11/2020. CORREIO BRAZILIENSE. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/11/4886356-video-mostra-advogado-de-denunciado-por-estupro-humilhando-mari-ferrer.html. Acesso em: 04/11/2020. FONTES, Eduardo. Criminologia. JusPodivm. 3. ed. Salvador: 2020. GONZAGA, Christiano. Manual de criminologia. Saraiva. 1. ed. São Paulo: 2018. MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – vol. 1. ed. Forense. 13. ed. Rio de Janeiro: 2019. SUMARIVA, Paulo. Criminologia: teoria e prática. Impetus. 3. ed. Niterói: 2015. TAVORA, Nestor. Curso de direito processual penal. JusPodivm. 15. ed. Salvador: 2020. NOTAS: [1] BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 417. [2] MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – vol. 1. ed. Forense. 13. ed. Rio de Janeiro: 2019, p. 249. [3] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/palavra-mariana-ferrer-nao-basta.pdf [4] “Lawfare é o termo que designa estratégia jurídica de dominação de um sujeito em detrimento de outro, mediante manipulação de meios legais disponíveis para mitigar o sigilo das investigações em detrimento das garantias do investigado. Trata-se de abuso de direito que, em tese, pode ser usado pela parte acusadora (Ministério Público ou querelante) ou pelo imputado (defesa).”. TAVORA, Nestor. Curso de direito processual penal. JusPodivm. 15. ed. Salvador: 2020, p. 140. [5] “É interesse perceber que a espetacularização da notícia criminal realizada pelo jornalismo sensacionalista, sobretudo nos delitos de sangue praticados com violência contra pessoas “de carne e osso”, guarda semelhança com determinadas formas jurídicas de descrição e de julgamento destes eventos trágicos. (...) a tradução da situação delitiva em um processo penal igualmente produz discursos potencialmente sensacionalistas.”. CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Saraiva. 6. ed. São Paulo: 2015, p. 421. [6] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/11/4886356-video-mostra-advogado-de-denunciado-por-estupro-humilhando-mari-ferrer.html. [7] GONZAGA, Christiano. Manual de criminologia. Saraiva. 1. ed. São Paulo: 2018, p. 160. [8] SUMARIVA, Paulo. Criminologia: teoria e prática. Impetus. 3. ed. Niterói: 2015, P. 98. [9] FONTES, Eduardo. Criminologia. JusPodivm. 3. ed. Salvador: 2020, p. 201.
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