Um assassinato nunca será apenas o ato de matar uma outra pessoa. Sempre haverá uma história por detrás da vida de todos os indivíduos envolvidos, um cenário e, principalmente, uma motivação. Seja esta intencional ou não; consciente ou não.
Ao analisarmos os casos mais famosos desses tipos de crime, que, naturalmente, nos chamam a atenção pela gravidade e, muitas vezes, pela peculiaridade da situação, é comum nos pegarmos dando uma de detetives, como num jogo Scotland Yard, em que recebemos dicas fragmentadas e tentamos coloca-las dentro de uma mesma imagem para formar a ideia do que acreditamos ter acontecido. Alguns canais e redes midiáticas passaram a investir nesse sentimento de desejo da resolução de crimes, principalmente quando estes possuem desdobramentos que vão além do fato em si. Dessa forma, vem sendo comum o aparecimento de séries e filmes como American Crime Story, Mindhunter, entre outras. Recentemente também, um documentário investigativo foi lançado, colocando um holofote em uma história antigamente ouvida, mas que poucos tem coragem de falar abertamente. No catálogo da Netflix, “The Keepers” parte do homicídio da freira Catherine Cesnik, desenterrando uma cruel realidade, que tomou proporções inimagináveis. A irmã, muito querida por todos, inclusive suas alunas, lecionava no colégio católico Archbischop Keough, em Baltimore, nos Estados Unidos, e que era exclusivo para meninas. Entretanto, em 1969, ela chegou em casa após o trabalho e saiu de carro para ir à padaria e comprar um presente que seria para sua irmã. Nunca mais voltou. Misteriosamente, seu corpo foi encontrado meses depois. Tendo o caso sido arquivado sem solução, com o intuito de descobrir quem matou a irmã Cathy, duas de suas alunas na época, Gemma Hoskins e Abbie Schaub, hoje com mais de 60 anos de idade, passaram a procurar quaisquer pistas que pudessem esclarecer o que ocorreu. Para isso, utilizaram-se das redes sociais e foram coletando dados a partir das mensagens que recebiam das próprias pessoas que sentiam saber de algo. Logo que se iniciou a pesquisa, juntamente com as informações de jornalistas e as investigações da polícia da região, chegou-se a um dado que ninguém esperava: o padre Joseph Maskell, colega de Cathy, foi acusado de abuso sexual por diversas meninas que estudaram naquele colégio. Com isso, já se começou a desconfiar de sua participação no desaparecimento da freira e, consequentemente, em sua morte. Conforme os episódios vão sendo apresentados, nos envolvemos cada vez mais na história e também nos personagens apresentados, que, na realidade, são pessoas como nós, que viveram aquelas histórias. Assim, descobrimos uma inteira rede de abuso que acontecia em Keough, envolvendo não apenas o padre, mas outros homens tanto de dentro quanto de fora da igreja. A série, então, “se embrenha em uma sociedade perversa, difícil de denunciar e muito polêmica: as alunas que conduzem a investigação apontam um acobertamento da Igreja Católica e omissão da polícia” (PEREIRA, 2017). Muito tempo se passou desde a terrível morte de Catherine e ainda há quem não se canse de buscar a verdade. Nesse período, várias pessoas foram contatadas e puderam expor fatos antes não conhecidos. The Keepers expõe as informações de maneira única, pois apresenta uma sequência de fatos que nos torna parte daquilo que está sendo investigado, além de dar a voz para diversas pessoas que passaram anos escondidas ou sentindo-se sozinhas por vivenciarem algo totalmente errado. Após conseguirem falar diretamente com algumas das adolescentes abusadas, os detalhes da história e todo o procedimento que era seguido nas “sessões” de estupro, percebemos que o quanto é difícil ter que encarar essas situações. As pessoas envolvidas mantiveram segredos durante anos e anos e foi necessário um estímulo externo que servisse de gatilho para que aquilo que estava guardado pudesse vir à tona. Juridicamente, essa movimentação também trouxe algumas mudanças. Ao final, vemos que, em Maryland, a lei permitia que quem tivesse sofrido abuso sexual quando criança teria apenas até os 25 anos para processar o agressor. Em apenas sete episódios, podemos perceber a energia física e psicológica que é necessário para reunir forças e entrar numa briga como esta. Não apenas por estar “jogando” contra pessoas e instituições poderosas, mas por travar uma batalha com aquilo que é mais íntimo em suas próprias vidas. Até o final de The Keepers, o pedido para que a lei aceitasse vítimas de idade maior não havia sido aceito. Felizmente, hoje em dia, é possível entrar na justiça até os 38 anos de idade (KELLY, 2017). Além de uma série que entretém e nos faz querer desvendar o mistério da morte da irmã Cathy, que até hoje permanece sem solução, algo muito maior pode ser exposto: o quanto nos esforçamos para manter as aparências daquilo que não queremos “mexer”. A igreja confirma que nunca soube de denúncias em relação à Joseph Maskell, mas seu histórico de transferências parece dizer o contrário. Quanto a isso, ainda há uma petição pública que pede para que a Arquidiocese de Baltimore libere todos os registros referentes ao padre, visto que a série trouxe diversos questionamentos sobre a omissão de informações e a ajuda ambígua fornecida às vítimas. E, falando nelas, não se pode deixar de noticiar a coragem de aparecerem em um documentário que expõe seus mais íntimos segredos. Lorenzi (2017) completa a ideia dizendo que tais mulheres aparecem como uma “fortaleza de resignação e uma mescla de pavor e tristeza”. Conforme a série avança, percebemos também que elas podem não ter sido as primeiras a sofrerem abuso deste padre. Mas todas as vítimas que mostraram seus rostos e falaram em voz alta aquilo que as perturbava desde a infância puderam passar para um outro nível de entendimento, pois não precisariam mais esconder algo que só trazia vergonha em suas vidas. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS KELLY, Steven J. Maryland Lengthens the Statute of Limitations for Victims of Childhood Sexual Abuse. Disponível em: < https://www.marylandaccidentattorneyblog.com/2017/04/maryland-lengthens-statute-limitations-victims-childhood-sexual-abuse.html>. Acesso em: 26 nov. 2017. LORENZI, Rodrigo. Perturbador, ‘The Keepers’ assusta por mostrar o pior do ser humano. Disponível em: < http://www.aescotilha.com.br/cinema-tv/olhar-em-serie/the-keepers-netflix-serie-documentario/>. Acesso em: 26 nov. 2017. PEREIRA, Aline. "The Keepers": assassinato, crimes sexuais e Igreja são tema de documentário da Netflix. Disponível em: < https://www.vix.com/pt/series/545964/the-keepers-assassinato-crimes-sexuais-e-igreja-sao-tema-de-documentario-da-netflix>. Acesso em 26 nov. 2017. Comments are closed.
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