“Dança na corda bamba de sombrinha e, em cada passo dessa linha, pode se machucar” (Elis Regina)
I . CLÁUSULA PÉTREA E A IMPORTÂNCIA PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. No que tange ao Estado social e democrático de Direito, ilustra José Afonso da Silva que O individualismo e o absenteísmo ou neutralismo do Estado liberal provocaram imensas injustiças, e os movimentos sociais do século passado e deste especialmente, desvelando a insuficiência das liberdades burguesas, permitiram que se tivesse consciência da necessidade da justiça social[1] A Constituição Federal de 1988 possui algumas classificações que compõe a base de um Estado democrático de Direito. Observa-se que a nossa constituição é classificada portanto como rígida e superrígida no tocante as cláusulas pétreas. Conforme preceitua Ingo Sarlet:
Dessa forma, torna-se fundamental a cautela em discussões que preveem uma alteração hermenêutica com inúmeras consequências para a consolidação de um ordenamento jurídico, suas garantias e a segurança jurídica como um todo. O artigo 5º, inciso LVII aduz: ''Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória''. A mutação constitucional prevê a modificação da interpretação do texto sem a sua alteração. Nesse sentido SARLET:
Essas garantias constitucionais abrangem as denominadas cláusulas pétreas no ordenamento jurídico brasileiro, sendo previstas no artigo 60, §4º da Carta Magna, no qual aduz: ''A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais''. As cláusulas pétreas, portanto, não podem ser alteradas nem por proposta de emenda a constituição, pois constituem garantias imutáveis e base para a consolidação de um Estado democrático de Direito, sendo demasiadamente preocupante vislumbrar no Judiciário as alterações hermenêuticas nos tempos atuais, o que contribui para a insegurança jurídica frente a todas as questões suscitadas. Dessa forma:
Essa previsão constitucional possui o intuito de assegurar a eficácia dos direitos e garantias fundamentais, não podendo der suprimidos de forma alguma. As constituições regulam a estabilidade e permanência no ordenamento jurídico, e mesmo prevendo formas para a alteração do texto constitucional, é fundamental observar os limites das alterações propostas. Conforme o pensamento de Ferdinand Lassale na sua obra denominada: A essência da constituição, SARLET aduz:
II . LIMITES DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL Sendo assim, observa-se que a constituição pode ser alterada, para adequar-se as mudanças sociais e regulando as situações de forma ampla e efetiva, contudo, deve ser observado os limites para que uma mudança interpretativa não mitigue direitos e garantias individuais e prejudicando os indivíduos em sua totalidade. Essas alterações hermenêuticas podem ser feitas alterando-se o texto constitucional, por emendas constitucionais, ou alterando a interpretação de uma determinada norma, as denominadas mutações constitucionais. Nesse entendimento:
Dessa forma, conforme boa parte da doutrina brasileira, uma reforma constitucional não poderá nunca mitigar direitos e garantias individuais, devendo observar a existência dos limites previstos, vedando a reforma de elementos e direitos essenciais aos indivíduos em sua totalidade[7]. Atualmente o que é vislumbrado é um crise hermenêutica como preceitua Lênio Streck, sendo fundamental refletir sobre as consequências de determinadas interpretações. No que tange a dificuldade de aplicação efetiva dos direitos fundamentais preceituados pela Carta Magna, tornando as referidas garantias como um dever – ser, aduz STRECK:
III. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA Um dos direitos consagrados pela Carta Magna, dotado de imutabilidade tratando-se cláusula pétrea (artigo 60, §4º, inciso IV) no que tange aos direitos e garantias individuais é o princípio da presunção de inocência. O que vislumbra-se estarrecedor, é observar a mudança interpretativa de um princípio basilar em um ordenamento jurídico, relativizando sua aplicação[9] sem refletir sobre o impacto para os indivíduos em sua totalidade. A defesa dos referidos princípios para um Estado democrático de Direito é fundamental, devendo ser resguardado de todos os ativismos e interpretações que atendam a clamores populares, sob o risco de comprometer a própria democracia. Discorre STRECK sobre a importância do controle judicial e aduz:
Essa subjetividade hermenêutica e relativização de direitos e garantias fundamentais são óbices para a consolidação democrática e segurança jurídica. A ausência de integridade na aplicação de normas fundamentais e princípios enseja um problema complexo, dando abertura para inúmeras decisões arbitrárias e abusivas. Para efeitos ilustrativos, passa-se a analisar as eventuais – e graves – consequências da relativização de princípios constitucionais através de breve exame ao direito positivo, mais especificamente ao direito processual e seus efeitos práticos. Tentadora é a linha argumentativa sustentada por aqueles que optam pela relativização principiológica constitucional no que tange à presunção de inocência, que sugere não haver problemáticas atinentes ao cumprimento de pena privativa de liberdade após a segunda instância, visto que os recursos às instâncias superiores não envolveriam discussões acerca de matéria fática, relativa à materialidade e autoria de um fato típico. Contudo, apesar das espécies recursais comuns após a segunda instância, notadamente os recursos especial e extraordinário, de fato, não possuírem por objetivo o ataque à estas questões, inegável é a possibilidade que outra espécie recursal venha a influenciar o mérito da ação, como é o caso dos embargos de declaração, que podem possuir eventuais efeitos infringentes. Importante frisar a flagrante diferença entre as espécies recursais embargos infringentes dos embargos declaratórios com efeitos infringentes. Os primeiros, previstos no art. 609 do Código de Processo Penal, são cabíveis contra decisão não-unânime de segunda instância, sendo, portanto, oponíveis apenas dentro desta mesma instância, visto que não possuem efeito devolutivo. Os segundos, por sua vez, são cabíveis dentro de qualquer decisão judicial, desde que apresente ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão, sendo seus efeitos infringentes, isto é, seus efeitos modificativos, mera decorrência lógica de seu cabimento. Neste sentido, TALAMINI aduz que
Por serem cabíveis em qualquer decisão judicial[13], bem como por não possuírem efeito devolutivo, decisões defeituosas proferidas por tribunais superiores em eventuais recursos são passíveis de serem embargadas, e, consequentemente, são passíveis de terem sua matéria fática revista em virtude de eventual efeito infringente. Embora trate-se de hipótese excepcional a circunstância onde decisão proferida por tribunal superior venha a ser alterada em virtude de efeitos modificativos do funcionamento normal dos embargos declaratórios, é certo que o ordenamento jurídico brasileiro, à luz dos direitos e garantias fundamentais, em uma perspectiva deôntica, não poderia impor o cumprimento da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado, sob pena de lesionar permanentemente o réu, sua presunção de inocência e o texto constitucional. Sendo assim: ‘’Se ferirmos a integridade e a coerência do sistema abrimos a caixa de Pandora. Aí, o céu é o limite (leia-se inferno) é o limite. Isto é, não existem mais regras e princípios, tudo é a vontade de poder de quem o está exercendo’’[14]. IV. O ESTADO PÓS DEMOCRÁTICO DE DIREITO Rubens Casara na obra denominada Estado Pós Democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis, aborda o caráter pós democrático do Estado no qual os direitos e garantias fundamentais são dotados de subjetividade, dificultando a consolidação de um estado democrático e efetivo. São nos momentos de instabilidade econômica, política e nas crises, que os discursos enaltecendo decisões arbitrárias surgem, escondendo diversas vezes as reais intenções por trás de seus discursos. Nessa perspectiva, a crise é ‘’Por definição, algo excepcional, uma negatividade que põe em cheque o processo ou o sistema, mas que justamente por isso o confirma como algo que ainda existe e pode ser salvo, desde que a negatividade seja extirpada ou transformada em positividade’’[15]. O Estado democrático de direito possui como objetivo conter as ilegalidades e os abusos, em consonância com a legalidade estrita, no qual busca-se limitar o exercício do poder estatal, decisões arbitrárias e a violência institucional. Assim: ‘’A legalidade estrita exige uma produção legislativa dotada de referências empíricas para que seja possível a sua aplicação a partir de eventos ou proposições verificáveis’’[16]. Nesse sentido, o Estado Pós Democrático é a contraposição a legalidade, efetivação dos direitos e garantias fundamentais vislumbrado no Estado democrático. Preceitua CASARA:
Vislumbra-se a importância de reflexão sobre o momento atual, no qual uma garantia fundamental dotada de imutabilidade por meio das cláusulas pétreas são interpretadas sem a devida cautela e observância dos requisitos de legalidade, base para a consolidação democrática e garantia da segurança jurídica. Por meio dos discursos do combate à corrupção, que é efetivamente uma preocupação da maioria da população e deve ser contida, deve-se ter razoabilidade e coerência para que as referidas decisões não afetem direitos fundamentais inerentes a todos. Dessa forma significa enfatizar que: o poder, além de limitado, deve exercer-se de forma democrática e direcionado à concretização do projeto constitucional moderno da vida digna para todos, até para aqueles que podem ser tidos por indesejáveis por parcela da população, e também para aqueles que não servem aos interesses do mercado e do capitalismo financeiro[18] Analisar questões históricas de um país com uma democracia ainda em construção, é fundamental para entender a gravidade na relativização de direitos. Reflexos de governos autoritários, oscilações de constituições outorgadas e promulgadas, uma ditadura militar que durou 21 anos, Presidentes que não concluíram o mandato (ex: Collor e Dilma Rouseff), e todas as questões históricas e políticas que denotam a importância de conter os discursos autoritários. Assim, no Estado Pós Democrático:
Dessa forma, a luta pela consolidação da democracia, respeito a constituição e observância dos direitos e garantias fundamentais são base para a consolidação de um Estado que garanta a existência harmônica de todos os indivíduos. A cautela em proferir decisões que não prezam pela legalidade e respeito constitucional, bem como ser influenciado por questões populares e clamores sociais[20] em um país com uma democracia ainda em construção deve ser observada, sob o risco da história repetir-se outra vez. Nesse sentido:
Assim, devemos aprender com a história, com o passado e seus regimes autoritários, com as ilegalidades que foram perpetuadas, almejando lutar sempre para garantir a eficácia dos direitos fundamentais. Como preceitua Geraldo Vandré em uma das canções de um dos períodos mais tristes da história política brasileira: ''Vem vamos embora que esperar não é saber, Quem sabe faz a hora não espera acontecer’’. Que o autoritarismo não prevaleça, que sejamos resistência. Paula Yurie Abiko Graduanda Centro Universitário Franciscano do Paraná – FAE Estagiária do Ministério Público Federal Membro do grupo de pesquisa O mal estar no Direito Modernas Tendências do Sistema Criminal Trial by Jury e Literatura Shakesperiana Membro do International Center for Criminal Studies e da Comissão de Criminologia Crítica do Canal Ciências Criminais Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM Gustavo Vinicius Moreira Graduando Universidade Federal do Paraná Grupo de Simulação e Pesquisa em Tribunal do Júri – Iuris Trivium Membro do Núcleo Discente de Direito do Trabalho - NUDT REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira. 2017. SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição revista e atualizada. Saraiva,2016. SILVA, José Afonso.Curso de Direito Constitucional Positivo.36ª edição atualizada.Malheiros, 2013. STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica em crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª edição, revista, atualizada e ampliada. Livraria do advogado. 2014. http://emporiododireito.com.br/leitura/presuncao-de-inocencia-e-principio sem regra, acesso em 06 de abril de 2018. https://www.conjur.com.br/2018-abr-04/alexandre-moraes-presuncao- inocencia-relativa?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook, acesso em 05 de abril de 2018. http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI236300,61044-Embargos+de+declaracao+efeitos+no+CPC15 EMBARGOS DECLARATORIOS. DECISÃO INTERLOCUTORIA. CABIMENTO. OS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO SÃO CABIVEIS DE QUALQUER DECISÃO JUDICIAL. (STJ - REsp: 48727 SP 1994/0015281-7, Relator: Ministro CLAUDIO SANTOS, Data de Julgamento: 23/08/1994, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 17.10.1994 p. 27892). [1] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36ª edição atualizada. Malheiros, 2013. p. 117. [2] SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição revista e atualizada. Saraiva,2016. p. 70. [3] SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição revista e atualizada. Saraiva,2016. p. 117. [4] SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição revista e atualizada. Saraiva,2016. p. 117. [5] SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição revista e atualizada. Saraiva,2016. p. 117. [6] SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição revista e atualizada. Saraiva,2016. p. 134. [7] SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição revista e atualizada. Saraiva,2016. p. 134. [8] STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica em crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª edição, revista, atualizada e ampliada. Livraria do advogado. 2014. p.380 e 381. [9] Alexandre de Moraes Ministro do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Ex Presidente: “Princípio da presunção da inocência não pode ser interpretada de maneira isolada e prioritária, sendo necessária análise em confronto com outros princípios constitucionais”, disse, citando o princípio da tutela penal efetiva. “Não cabe ao STJ ou STF analisar prova, matéria fática. O tribunal de segunda instância que faz isso. Inverter essa lógica do sistema penal segundo a Constituição parece ilógico”, defendeu''. https://www.conjur.com.br/2018-abr-04/alexandre-moraes-presuncao-inocencia-relativa?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook, acesso em 05 de abril de 2018. [10] STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica em crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª edição, revista, atualizada e ampliada. Livraria do advogado. 2014. p.65. [11]. http://emporiododireito.com.br/leitura/presuncao-de-inocencia-e-principio-sem-regra, acesso em 06 de abril de 2018 [12]http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI236300,61044-Embargos+de+declaracao+efeitos+no+CPC15, acesso em 07 de abril de 2018. [13] STJ - REsp: 48727 SP 1994/0015281-7, Relator: Ministro CLAUDIO SANTOS, Data de Julgamento: 23/08/1994, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 17.10.1994 p. 27892. [14] http://emporiododireito.com.br/leitura/presuncao-de-inocencia-e-principio-sem-regra, acesso em 06 de abril de 2018. [15] CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira. 2017. p. 12. [16] CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira. 2017. p. 20. [17] CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira. 2017. p. 12. [18] CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira. 2017. p. 63, [19] CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira. 2017. p. 65. [20] Barroso : ‘’ — A minha posição sobre a execução da pena em segundo grau, se mudei ou não em relação à ultima vez, vocês vão saber saber na quarta-feira’’. https://oglobo.globo.com/brasil/barroso-diz-que-constituicao-deve-ser-interpretada-em-sintonia-com-sentimento-social-22549589, acesso em 07 de abril de 2018. [21] CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira. 2017. p. 66. Comments are closed.
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