Para compreender a nova lógica que envolve esse universo paralelo ao processo penal tradicional, será preciso invocar conceitos e compreensões próprias do mercado, dos mecanismos de negociação e da teoria dos jogos, como leciona Alexandre Morais da Rosa[1]. A colaboração premiada sendo um acordo em que se “vendem” informações de um lado e se “vendem” benefícios penais de outro, e ambas as partes, ao mesmo em que vendem também “compram” os “produtos” umas das outras, permitindo revelar que se está diante de uma negociação complexa, que opera sob o modelo de “matching”, que é, como explica o vencedor do Prêmio Nobel de economia Alvin Roth, “o jargão dos economistas para denominar de que maneira obtemos muitas coisas na vida, coisas que escolhemos mas que também precisam nos escolher”[2]. Portanto, a negociação também se dá em moldes diferentes daqueles nos quais alguém tem um produto para vender e não interessa quem irá adquiri-lo, havendo ampla gama de consumidores em potencial. Para o colaborador que quer “vender” sua informação só há um único “comprador”: o Ministério Público. Neste processo de negociação, o colaborador deve considerar que muitas vezes ele está em posição de ligeira desvantagem numérica no processo de compra e venda, pois os demais integrantes da organização criminosa também podem estar dispostos a participar do “mercado” da delação. Já no que concerne ao Estado/Ministério Público opera-se uma visão inversa, pois, em crimes praticados no contexto de organização criminosa, ele é o único comprador (detém o monopólio da oferta de menor pena) e costuma haver mais vendedores em potencial lhe oferecendo a mesma mercadoria. Por outro lado, o investigado/acusado colaborador tem a vantagem do domínio do processo criminoso, da estrutura da organização criminosa e de seu “modus operandi”. Joga em seu favor o dado de que, em investigações de crimes complexos, normalmente a Polícia/Ministério Público demora para ter um diagnóstico do todo da complexidade e do modo de agir da organização criminosa. A investigação “tradicional” costuma ser mais morosa e custosa, exigindo tempo e energia para que o Estado possa ter condições de compreensão dos crimes praticados. Seja como for, o Ministério Público pode chegar a obter as provas para sustentar uma acusação pelos delitos investigados e, se as conseguir, deixa de ser interessante, para o Estado, a celebração de acordos de colaboração. A questão, portanto, envolve o poder de encurtar o acesso às provas contra o investigado e também em relação ao envolvimento de outras pessoas que só o investigado tem como demonstrar. Por isso é importante que o investigado/acusado que pretenda colaborar saiba que o tempo também joga. Quanto antes ele se disponha a promover uma “oferta de venda” de suas informações, mais benefícios poderá “lucrar”. Mas é preciso ter cuidado para não acreditar que basta um cálculo matemático e racional que vise maximizar lucros. Muitas vezes outros fatores emocionais, psicológicos, inconscientes até, também jogam. Engana-se, assim, quem desconsidera que o emocional e a dissonância cognitiva possam ser desconsiderados no mecanismo de negociação e definição do melhor acordo. O que para um investigado possa ser considerado um bom acordo, para outro, o mesmo acordo, nos mesmos termos, pode representar um péssimo negócio. As pessoas não são as mesmas, possuem diferentes formas de compreensão do mundo, com diferentes valores e perspectivas. Aliás, as mesmas pessoas, devendo decidir sobre um mesmo determinado assunto, quando em face de diferentes circunstâncias, tomam decisões diferentes. Foi assim, por exemplo, com Alberto Youssef, quando negociou seu acordo de colaboração premiada com a Lava Jato. No primeiro contato, foi-lhe dito que não sairia acordo se ele não cumprisse pelo menos três anos em regime fechado. Youssef recusou o acordo, considerando-o muito pesado. A operação Lava Jato estava em seu início e até então nenhum investigado havia firmado acordos de colaboração premiada. Foi então, que Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, resolveu que era chegado o momento de firmar o acordo. Com isso, Alberto Youssef seria delatado por Paulo Roberto Costa. Sua situação probatória pioraria. Mas não só isso. Seu potencial de barganha também diminuiria, pois muito do que poderia “vender” de informação aos Procuradores da Lava Jato, estava sendo antecipado e admitido/”vendido” pelo próprio Paulo Roberto Costa. Antes que muito pouco lhe sobrasse de ineditismo de informação a ser “vendida” em eventual negociação, não demorou muito para o advogado de Youssef entrar em contato com os Procuradores para aceitar se submeter àqueles três anos de regime fechado e, assim, firmar o acordo de colaboração premiada. Quem explica essa passagem, e ilustra os processos subjetivos que envolvem a mecânica de negociação, inclusive sob a ótica do Ministério Público, é o Procurador da República Deltan Dallagnol:
Como visto, o ânimo varia a depender das chances em jogo. Se há muitos coautores ou partícipes do delito, há menor probabilidade de que a informação de um dos investigados tenha valor depois que um deles participe do acordo. Como não se sabe quem falará primeiro, a incerteza e o risco de não sair com nenhum benefício impulsionam o investigado a “pular na frente” ou, no pior cenário, a tentar minimizar os efeitos danosos de sua morosidade em firmar o acordo. Ademais, o estado de espírito dos envolvidos no fechamento do acordo pode mudar ao longo do processo de negociação. Mario Dias e Roberto Figueiredo Costa apresentam um exemplo que ilustra a questão:
O exemplo vale para os acordos de colaboração, pois, caso o investigado espere uma redução da pena em 1/3, em regime semiaberto, e faça a proposta por redução de 2/3 em regime aberto, já esperando uma contraproposta nos moldes inicialmente pretendidos, talvez fique achando que fez um mal negócio se o Promotor aceitar de plano os 2/3 e o regime aberto proposto. Talvez ele fique pensando que seria merecedor de uma pena alternativa…ou sequer ser denunciado, como ocorreu com os irmãos Joesley e Wesley da JBS. Mas o problema é que não há como saber, de antemão, o que seria razoável aceitar e o que se tem visto, por exemplo, na Lava Jato, é uma variação bastante significativa nas propostas e acordos de colaboração firmados com inúmeros investigados/acusados colaboradores. Há que se levar em conta também o quanto a psicologia cognitiva já avançou na definição de como opera a mente humana e as diferentes formas de se conduzir o processo decisório. Isto é, como se dá a decisão na mente do sujeito negociador. O que o faz decidir “fechar o acordo”; ou “recuar”; ou “resistir – ou não – a uma proposta” de acordo. Aqui opera-se a distinção feita pelos psicólogos Keith Stanovich e Richard West, aproveitada por Daniel Kahneman para explicar como funcionam os dois sistemas da mente: o Sistema 1, que é rápido, irrefletido, inconsequente, intuitivo, que encurta o processo decisório pela heurística da representação mental e o Sistema 2, que é ponderado, reflexivo, avaliativo das consequências[5]. Caso a negociação se dê sem muita margem para reflexão, a tendência do ser humano é operar a partir do Sistema 1, decidindo intuitivamente, e o resultado pode ser um acordo à luz do que se está acostumado a aceitar. Porém, como adverte Kahneman, “nossas mentes são suscetíveis de erros sistemáticos” e muitas vezes, “preferências intuitivas violam consistentemente as regras de escolha racional” no processo decisório.[6] Portanto, muito cuidado na discussão, valoração e aceitação das propostas que exigem certa maturação e ponderação a respeito de seus custos e vantagens. Para exemplificar uma diferença de trato na negociação, é interessante comparar o acordo fechado com a empresa Odebrecht e o acordo fechado com a empresa JBS, ambos na Lava Jato. A Odebrecht negociou ao longo de dez meses com os Procuradores da República até fechar o acordo, ao passo que o acordo da JBS demorou pouco mais de um mês entre as conversas iniciais, ao que tudo indica realizadas no dia 28 de março de 2017 como referido no “termo de confidencialidade” a respeito das negociações para eventual acordo de colaboração premiada assinado entre o advogado dos colaboradores e os membros do Ministério Público. As negociações da JBS implicaram até mesmo na inédita lavratura de pré-acordo de colaboração no dia 07 de abril de 2017, para só depois efetivar-se o acordo definitivo, firmado em 03 de maio de 2017. Na reunião realizada com os Procuradores da República no dia da lavratura do pré-acordo de colaboração, em 07 de abril, um dos colaboradores apresentou gravações ambientais por ele realizadas clandestinamente alguns dias antes, em março, com o Presidente da República Michel Temer, com o Senador e Presidente do PSDB Aécio Neves e com o Deputado Federal Rodrigo Rocha Loures, em circunstâncias indicativas, em tese, de crimes em curso. Essas informações, somado ao fato de que crimes estavam em curso e outros estavam para ocorrer em breve – para ser mais preciso ocorreram nos dias 12, 19 e 28 de abril de 2017 –, conduziu à pressa em fechar tanto o pré-acordo com os executivos da JBS naquele mesmo dia 07 de abril, quanto o acordo definitivo em 03 de maio. Como se percebe, o Ministério Público Federal corria contra o tempo, pois alguns delitos estavam para ocorrer cinco dias depois da primeira reunião, com a chance de produzir provas de crimes em flagrante. Assim, entre formalizar pré-acordo de colaboração e formular estratégia que implicava em adotar dez medidas cautelares probatórias e pessoais, dentre técnicas investigativas que exigem prévia autorização judicial junto ao Supremo Tribunal Federal (em razão da prerrogativa de foro dos investigados), previstas na Lei 12.850/13 denominadas “ação controlada”, “interceptação telefônica” e “monitoração ambiental” (os pedidos do MPF são do mesmo dia 07 de abril e as decisões do Ministro Fachin são de três dias depois, 10 de abril)[7], além pedidos de busca e apreensão e prisões preventivas, protocolizados nos dias 03 e 15 de maio[8], bem como operacionalizar a filmagem do recebimento de propina e monitorar o trajeto do dinheiro, ampliando o quadro de cognição e modo de operar da organização criminosa, acabou sendo um fator favorável aos empresários, já que “lucraram” significativamente no processo de negociação e a falta de tempo para maturar uma proposta e decidir pelo melhor para a sociedade. Já no pré-acordo, o único aceno de “punição” - melhor seria de limite máximo de punição – ficou anotado apenas para o colaborador Ricardo Saud, que não seria punido com pena superior a quatro anos em “regime domiciliar diferenciado” (depois, no acordo definitivo, nem isso permaneceu). Aos proprietários da JBS, os irmãos Joesley Mendonça Batista e Wesley Mendonça Batista, não foi anotada perspectiva alguma de punição penal no pré-acordo e, por evidente, também não no acordo definitivo. Os executivos da JBS foram beneficiados com o não oferecimento da denúncia, devendo arcar apenas com uma multa de cento e dez milhões de reais com carência de um ano para iniciar o pagamento parcelado em dez meses e para iniciar a correção monetária[9]. É claro que cento e dez milhões de reais parece, aos ouvidos do cidadão comum, muito dinheiro – e, de fato, é –, mas para os empresários acostumados a cifras de bilhões de reais, com carência de um ano, parcelamento, e incidência de correção monetária também somente depois de um ano, desconsiderando o processo inflacionário e de depreciação da moeda frente ao dólar (dólar que costuma ser a moeda usada pelos mesmos empresários em seus amplos negócios nos Estados Unidos), é quase troco para café. Só para se ter uma ideia, no termo de declaração de Joesley, ele informa que a empresa pagou mais de 400 milhões de reais em propina. Já com a Odebrecht o resultado da negociação foi diferente. Como se sabe, o Presidente do grupo em empresarial, Marcelo Odebrecht, não escapou de punição penal, cumprindo pena em regime fechado. Interessante anotar que, segundo noticiado – e diferentemente do que ocorreu na Odebrecht – no acordo com a JBS os próprios empresários Joesley e Wesley participaram ativamente do processo de negociação com a Procuradoria-Geral da República e, talvez este tenha sido um fator decisivo para a obtenção da vantagem que levaram no acordo. Como são negociadores profissionais há muito tempo, a expertise que possuem pelos anos de prática em processos de negociação comercial se sobrepôs à falta de experiência do Ministério Público. Ainda que os Procuradores da República sejam bem preparados juridicamente, não possuem o mesmo traquejo comercial dos irmãos Batista. A impressão que passa é que o Sistema 1 operou em larga escala na mente dos Procuradores, pois desconsideraram a repercussão amplamente negativa do acordo que fizeram, justamente porque os empresários da JBS saíram lucrando demasiadamente no acordo que passou até a ser chamado de “delação hiper-premiada”. Isso mais ou menos se antevê nas declarações recentes do Procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que afirma ter ficado enojado e literalmente passado mal com as informações e gravações recebidas. E também transparece no quanto ficou anotado no pedido de homologação do acordo encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. A justificativa de ter optado pelo não oferecimento de denúncia contra os colaborares, feita pelo Ministério Público Federal, foi “em razão do ineditismo de muitos dos temas trazidos pelos colaboradores, da atualidade das ilicitudes reportadas e da grande utilidade dos elementos de corroboração trazidos tanto para investigações em curso como para novas frentes relevantes de apuração”. Portanto, acessar o sistema 2 no processo decisório parece uma recomendação lógica, ainda que isso também implique no cuidado de não se promover, paradoxalmente, uma diminuição da capacidade reflexiva, já que acessar o sistema 2 requer autocontrole e a “aplicação do autocontrole é exaustiva e desagradável”, como alerta Kahneman. Como as negociações de acordos de colaboração premiada giram em torno de possíveis traições e do risco de ir preso, há uma grande chance do investigado participar de um processo de negociação já com sua capacidade de reflexão exaurida, decorrência de um “esgotamento do ego”[10]. E, nesse estado mental, deve-se levar em conta que “erros intuitivos são em geral muito mais frequentes entre pessoas com esgotamento do ego”, o que pode ser minimizado com o aumento do consumo de glicose, conforme estudos realizados[11]. Enfim, há muita coisa para se refletir, avaliar e aprender nesse novo modelo de processo penal negociado. Rodrigo Régnier Chemim Guimarães Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito de Estado pela UFPR. REFERÊNCIAS: [1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 4ª ed., Florianópolis: Emporio do Direito, 2017. [2] ROTH, Alvin E. Como Funcionam os Mercados. A nova economia das combinações e do desenho de mercado. Tradução de Isa Mara Lando e Mauro Lando. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2016, p. 15. [3] DALLAGNOL, Deltan. A Luta Contra a Corrupção. A Lava Jato e o futuro de um país marcado pela impunidade. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa, 2017, pp. 77; 82-83. [4] DIAS, Mario. COSTA, Roberto Figueiredo. Manual do Comprador. Conceitos, técnicas e práticas indispensáveis em um departamento de compras. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 147. [5] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar. Duas formas de pensar. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, pp. 29 e ss.. [6] KAHNEMAN, Daniel. Ob. cit., p. 18. [7] Conforme Ações Cautelares 4315 e 4316, no Inquérito 4483, STF, disponível em http://www.poder360.com.br/wp-content/uploads/2017/05/AC_4315_VOLUME_01.pdf [8] Conforme Ação Cautelar 4324, no Inquérito 4483, STF, disponível em http://www.poder360.com.br/wp-content/uploads/2017/05/AC_4324.pdf [9] Conforme documentos e termos disponíveis em: http://www.poder360.com.br/wp-content/uploads/2017/05/PET_7003_APENSO_1.pdf [10]KAHNEMAN, Daniel. Ob. cit., p. 56. [11]KAHNEMAN, Daniel. Ob. cit., p. 57. Comments are closed.
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