Artigo do colunista Gabriel Teixeira sobre direito e literatura e o Professor José Calvo González, vale a leitura! ''Ser diferente e saber conectar as mais variadas fontes (de Machado de Assis a Niemayer, tendo Stevens e Picasso por ponto de partida) não só é algo válido, mas um verdadeiro desafio. Enxergar além, ainda que através de linhas tortas e uma narrativa desastrosa – com possível final feliz. Obrigado Calvo!'' Por Gabriel Teixeira Me escreva uma carta sem remetente
Só o necessário e se está contente Tente lembrar quais eram os planos Se nada mudou com o passar dos anos (Thiago Pethit – Mapa-Múndi) Escrever sobre alguém que se foi é sempre uma tarefa difícil. Não só por ter sido antecedido (e sucedido) por pessoas que realizaram esta atribuição de uma forma mais marcante e com memórias mais próximas, mas também pelas experiências e vivências compartilhadas que ensejam um momento único para cada um. Assim foi (e será) com José Calvo González que nos deixou em junho deste ano (aliás, anteriormente neste espaço, houve uma homenagem belíssima feita por outros amigos colunistas [1]). Seu legado, em terras latinas e espanholas, de forma singela e restringindo uma ampla gama de conhecimentos transmitidos, ficou conhecido pela “Teoria Narrativista” [2], o chamado “Direito Curvo” [3] e o Direito e Literatura, teorias que oxigenaram o pensamento doutrinário. Entretanto, buscando romper paradigmas (uma marca do próprio autor), há uma obra recente e com ares provocativos [4] que abrange uma perspectiva alternativa criminológica: a visual (para alguns tratada como subproduto ou desdobramento da cultural [5]). De forma didática (e ilustrada), abordando temas que perpassam desde a política de drogas até a formação (e publicização) da polícia, através de uma perspectiva global, o autor demonstra como o signo é tão representativo na política criminal (estatal). Referida construção pelo autor se dá através de selos postais. Sim, selos! Frise-se que boa parte das pessoas (especialmente as mais antigas, o que pode ser um representativo das idades dos leitores) adquiriu referidos selos, sejam pela compulsoriedade aplicada pelo Estado em sua aquisição para a remessa das correspondências, pela beleza ou pelos filatelistas. Em inúmeras passagens, o escritor demonstra a sua argumentação e posição sobre os temas importantes já supracitados e, indiscutivelmente, constata que há grande compatibilidade entre os mais diversos países através do emprego de imagens ideologicamente semelhantes em seus selos postais. A proposta, “curva” e incisiva, faz com que a escrita seja despicienda. As imagens são tão representativas que cada um dos selos colacionados poderia dar ensejo a um livro próprio sobre o lugar, contexto e mensagem que reproduz. O fenômeno se torna completo ao avocar a chamada Pictorial Turn [6] que, em síntese e para alguns, constitui uma diferenciação entre imagem em linguagem, ainda que o traço inicial e a existência da primeira tenha sido trilhada e/ou construída com base na filosofia daquela (Gadamer e Heidegger, aqui). Em tom de spoiler, o autor ao final menciona o impacto da criminologia visual, por exemplo, nas mensagens estampadas nas camisetas que atravessam as grandes grifes e agasalham o peito dos mais pobres (ainda que já crivadas). A mensagem, além de atual e simbólica, é igualmente mutável. Transpor a barreira estética-física para uma virtual (através de um meme, por exemplo) é demonstrar o quão volátil e adaptável essa visão para estudar o fenômeno criminológico. Eis a genialidade do maestro. Quem duvidará que as atuais figurinhas no whatsapp traduzem mais do que a sua denominação e geram uma experiência inevitavelmente única, seja ela coletiva ou individual (especialmente considerando o contexto e o interlocutor)? Desse modo, o legado por essa obra é o de que o direito se reinventa. De todas as maneiras possíveis. Há um amplo campo para a difusão de ideias e propagação de ensinamentos através da aplicação prática e teórica desta discussão. A reestruturação e aplicação de novos sentidos ao direito, através de outros sentidos e teorias críticas (literárias, pictorial turn, crítica, filosófica, etc.) é uma revolução em andamento. Cabe a nós escolher a farda, lado da batalha e, quiçá, teremos nossas ideias difundidas em selos – ou figurinhas? PS: Não éramos próximos, mas minha admiração era maior que o abismo do nosso desconhecimento. O primeiro contato que tive com a obra de Calvo foi decorrente dos vários escritos do meu maestro e amigo Paulo Silas Filho, intensificados pelas obras do também professor Paulo Ferrareze Filho (recomendo os livros de ambos). Era, pois, referência das minhas referências, assim como Franco Cordero. Ao ler “Direito Curvo” senti um dos maiores alívios da minha vida: o da diferença. Ser diferente e saber conectar as mais variadas fontes (de Machado de Assis a Niemayer, tendo Stevens e Picasso por ponto de partida) não só é algo válido, mas um verdadeiro desafio. Enxergar além, ainda que através de linhas tortas e uma narrativa desastrosa – com possível final feliz. Obrigado Calvo! Gabriel Teixeira Santos Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG e em Direito Civil e Processo Civil pela Toledo Prudente Centro Universitário. Advogado. E-mail: [email protected]. NOTAS EXPLICATIVAS: [1] http://www.salacriminal.com/home/a-narrativa-do-adeus-em-memoria-de-jose-calvo-gonzalez [2] FERRAREZE FILHO, Paulo. Decisão Judicial no Brasil: narratividade, normatividade e subjetividade. Florianópolis: EMais, 2018. [3] GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. [4] GONZÁLEZ, José Calvo. Criminologia Visual: selos postais como artefatos imagéticos de aculturação ideológico-jurídica; Tradução Tamara Flores e Augusto Jobim do Amaral – 1. ed. – Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019. [5] HAYWARD, Keith J.. Focando as lentes: criminologia cultural e a imagem /Opening the lens: cultural criminology and the image. Revista de Direito da Cidade, [S.l.], v. 11, n. 1, p. 550-580, fev. 2019. ISSN 2317-7721. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/36354>. Acesso em: 05 out. 2020. doi:https://doi.org/10.12957/rdc.2019.36354. [6] SANTIAGO JUNIOR, Francisco das Chagas Fernandes. A virada e a imagem: história teórica do pictorial/iconic/visual turn e suas implicações para as humanidades. An. mus. paul., São Paulo , v. 27, e08, 2019 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142019000100305&lng=en&nrm=iso>. access on 05 Oct. 2020. Epub Apr 29, 2019. https://doi.org/10.1590/1982-02672019v27e08.
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ISSN 2526-0456 |