O exercício do poder punitivo do Estado é um dos temas de maior relevo nos cenários social, jurídico e político do Brasil. Muito embora as diretrizes teóricas do Direito singrem pelos princípios encartados na Constituição Federal, a realidade fática atinente ao tema traduz a aplicabilidade das penas legalmente previstas desvinculadas dos parâmetros democráticos que permeiam, a rigor, o sentido e a forma do texto constitucional. A questão torna-se ainda mais tormentosa ao problematizar a eficácia da persecução penal não apenas para a redução dos índices de criminalidade, mas também – e principalmente – sobre os personagens inseridos em tal tablado, contemplados na concretude existencial do agente ofensor e da vítima, bem como seus familiares. Tal discussão se abre em margens de teses opostas e distintas: de um lado, o tratamento penal reservado ao ofensor (que ultrapassa a perspectiva de encará-lo como inimigo da sociedade[1]) e, de outro, a ocorrência ou não de satisfação da vítima com a punição estatal aplicada, ponderando-se, efetivamente, se a pena, em algum sentido, se presta a recompor o estado pessoal da vítima antes da ocorrência do delito, ou ao menos minimizar a ofensa praticada. Justamente na esteira de tais problematizações é que se inserem os limites e possibilidades de aplicação da chamada justiça restaurativa, mecanismo que leva em conta justamente o enfrentamento da pena em seu estado da arte no Brasil, propondo a participação ativa do ofensor e da vítima (ou seus familiares) ao intento de buscar uma alternativa eficaz em face da mera aplicação da punição estatal. Como bem aponta André Giamberardino, em obra exemplar sobre o tema, é possível pautar a noção central de justiça restaurativa como a projeção de uma crítica à pena como única “solução” consequente da prática de determinado ilícito. Abrolha, então, uma problematização embasada na reflexão atinente à possível utilização de práticas de censura penal que se fundem na alteridade, com a participação ativa dos envolvidos, em lugar da evidenciação única da imposição da pena aflitiva ao ofensor.[2] Logo, tal reflexão parte do problema que visa perquirir sobre a possível construção de uma forma de mediação que efetivamente decorra e dialogue com as relações sociais horizontalmente tomadas, não sendo simplesmente e sempre re-cooptada na esfera penal. Essa problematização busca evidenciar, de uma margem, o aspecto pernicioso da irrelevância outorgada pela dimensão processual penal à participação dos sujeitos envolvidos no cometimento de um delito (ofensor e vítima) e, de outra, a ausência de preocupação em tornar a aplicação da lei penal em mecanismo consoante com a realidade social que lhe é subjacente. Ao mesmo passo, tal ponderação não releva a perspectiva extremamente relevante de que o “desejo” das vítimas nem sempre coincide com a imposição de sofrimento ao ofensor, havendo diversos fatores que poderiam ser levados em conta, isso partindo do ponto de vista do próprio ofendido, o que, a rigor, não é considerado nos moldes pelos quais é operacionalizado o sistema penal no Brasil. Logo, o conceito de justiça não integra a definição ou justificação da pena, sendo ela entendida, a rigor, como um mal necessário para a proteção de bens jurídicos de maior relevância, seguindo uma lógica utilitarista que vinca a pena com caráter eminentemente utilitarista:
Nesse sentido, a própria noção de crime, tal qual disposta no Código Penal brasileiro (objeto da influência da doutrina italiana e do normativismo kelseniano), parece restar alijada de qualquer concepção sociológica ou filosófica, sendo determinado como um ato contra a própria ordem jurídica, resultando no Estado, ao lume de tal pressuposto, a definição de “vítima primária” delito. Eis em tela um dos traços justificadores do monopólio estatal da pena. Todavia, e ainda seguindo as ponderações de Giamberardino, faz-se mister uma redefinição do próprio conceito de crime para que se possa, então, ponderar sobre as implicações da aplicação da pena que lhe é consequente. Levando em conta a ponderação de Louk Hulsman, é possível apontar uma definição otimizada de delito, compreendido como a violação de direitos individuais e relações interpessoais e não como mero desrespeito à ordem jurídica – perspectiva que poderá, ao seu turno, possibilitar uma participação mais ativa dos envolvidos (ofensor e vítima) em lugar da aplicação automática da pena ante a desconstituição do Estado como a “vítima primária”.[4] Tal perspectiva se alinha, de certo modo, com as ponderações de Roberto Gargarella acerca de uma “resposta republicana ao delito”. Escorando-se em uma crítica à predominância da doutrina liberal em face do desiderato de resguardo do direito à liberdade perante o Estado (que conduziria apenas ao retributivismo), Gargarella evidencia os aspectos positivos da incidência de uma filosofia política calcada no republicanismo[5], que aduz uma concepção de liberdade não apenas como uma “[...] mera esfera de não-interferência, mas sim ‘ausência de dominação’; não se trata somente da fixação de limites, mas concerne à ampliação dos direitos políticos de participação.”[6] A dita “resposta republicana ao delito” proposta por Gargarella importaria na concepção de que censura penal não necessita de aflitividade, devolvendo à comunidade parte dos poderes exercidos pelo Estado em um sentido de alteridade. Eis outra evidencia da possível participação ativa dos envolvidos na definição das consequências desinentes da prática de um ilícito penal. Nada obstante tais problematizações, a realidade da aplicação da pena no Brasil pressupõe uma redução da complexidade social para se admitir que toda a censura que está para além da pena estatal configuraria uma violência intersubjetiva e forma de dominação. Tal redução apontaria para uma homogeneidade entre a aplicação da pena em si e o desejo das vítimas, fato que não corresponde com a realidade. Em outro giro, a exclusão dos envolvidos no processo penal também implica no agravamento da situação de vitimização, uma vez que toda a complexidade de relacionamento entre o ofensor e vítima é ignorada. Tal dissonância foi apreendida por Giamberardino ao realizar uma pesquisa empírica ambientada na 2º Vara do Tribunal do Júri do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, consubstanciada em entrevista com ofensores, vítimas e seus parentes acerca da confluência da pena com o desejo de satisfação ou reparação daqueles que suportaram os prejuízos do delito. Em síntese, a pesquisa realizada na obra, bem como seu respectivo método, podem ser sumariados da forma constante da tabela ao final colocada. Diante dos resultados colhidos na pesquisa, Giamberardino propõe o incentivo à adoção das práticas restaurativas de justiça, constituído em um modelo fundado em autonomia, sem relação de dependência obrigatória com o sistema penal. Ter-se-ia, assim, a apreciação, em sentido horizontal, das relações sociais, permitindo-se que ofensor e vítima (ou seus familiares) busquem, quando possível, meios alternativos de resolução que transcendam o sentido da pena, como atualmente considerado, servido o sistema processual penal como ferramenta de inclusão da realidade social, e não como via de exclusão. Para tanto, deve entrar em cena a accountability do Estado para prover a segurança jurídica necessária ao cumprimento e proporcionalidade das práticas restaurativas. No Paraná, as práticas restaurativas foram formalizadas como método de resolução alternativa no de 2015, com a oficialização do projeto “MP Restaurativo e a Cultura de Paz”, promovido pelo Ministério Público Estadual.[7] O projeto partiu da compreensão de que o sistema penal, de ordem retributiva, não cumpre com eficácia o desiderato de prevenção em face de novos ilícitos penais. Há, portanto, a necessidade de uma conscientização do ofensor e satisfação da vítima. Tal compreensão, de característica conclusiva, somente foi alcançada por meio de pesquisas de caráter empírico, que apreciaram os resultados positivos extraídos dessas mesmas práticas em outras unidades da federação. Portanto, a justiça restaurativa enseja, possivelmente, uma reflexão distinta acerca da dimensão constitucional do processo penal, levando em conta a participação efetiva, como dito, dos personagens realmente envolvidos na prática ilícita. Muito embora não se descuide da lógica de tutela de bens jurídicos específicos na estruturação material do direito penal, em sua dimensão processual há, de fato, espaço para incidência de alteridade, conformando uma nova trilha para o desenho constitucional do processo penal. Rafael Corrêa Professor de Direito Constitucional Mestre em direito das Relações Sociais [1] Faz-se necessário apresentar, mesmo que brevemente, a ideia central que permeia a perspectiva que apreende o criminoso como inimigo da sociedade, em regra associada com as proposições do chamado “Direito Penal do Inimigo”. Segundo Zaffaroni, tal perspectiva, apesar de ter sido desenvolvida de modo mais aprofundado na Alemanha a partir da década de 1980, já havia sido lapidada, de modo embrionário, muito antes, surgindo com a própria noção de delito e pena. Em suas palavras: “[...] pré-história da legitimação discursiva do tratamento penal diferenciado do inimigo pode ser situada na antiguidade e identificada em Protágoras e Platão. Este último desenvolveu pela primeira vez no pensamento ocidental a ideia de que o infrator é inferior devido à sua incapacidade de aceder ao mundo das ideias puras e, quando esta incapacidade é irreversível, ele deve ser eliminado. Protágoras sustentava uma teoria preventiva geral e especial da pena, mas também postulava um direito penal diferenciado, segundo o qual os incorrigíveis deviam ser excluídos da sociedade.” ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 87. [2] Nada obstante, é necessário remarcar que o próprio autor reconhece que “justiça restaurativa” não guarda um significado unívoco, gozando, pois, de uma acepção plural. Na introdução de sua obra, André Giamberardino assim dispõe: “Por fim, uma quinta ressalva diz respeito ao próprio conceito de justiça restaurativa, cuja univocidade simplesmente não existe, e sua relação com o direito e o sistema penal. Se não há um conceito ou modelo, o que há são princípios e valores fundados na desconstrução de alguns mitos legitimantes do sistema penal tradicional e que buscam conferir uma nova perspectiva, um “outro olhar” sobre a resolução do conflito: para alguns, uma forma efetivamente não punitiva; para outros, apenas mais uma “alternativa penal”, mais suave, reconduzível às justificações retributivistas ou utilitaristas. Cada modelo ou prática pode se aproximar ou se distanciar, nos fatos, dos princípios fundamentais da justiça restaurativa.” GIAMBERARDINO, André. Crítica da Pena e Justiça Restaurativa. A censura para além da punição. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 5. [3] GIAMBERARDINO, André. Crítica da Pena e Justiça Restaurativa. A censura para além da punição. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 51. [4] Nas palavras do autor: “Redefinir o conceito de “crime” como uma violação de direitos individuais e relações interpessoais conduziria à maximização das possibilidades de participação ativa dos envolvidos. Não se trata de excluir toda e qualquer intervenção do Estado, mas sim de retirar seu lugar de “vítima primária”. A crítica de HULSMAN é pertinente, nesse sentido, ao destacar o sistema formal de justiça penal como uma organização cultural e social de caráter constitutivo, no que tange à redução do caso em tela em diversos sentidos, “reconstruindo” a realidade.” Ibidem, p. 43. [5] GARGARELLA, Roberto. As Teorias da Justiça depois de Rawls. Um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 191. [6] GIAMBERARDINO, André. Op. Cit. p. 89. [7] Conteúdo disponível em: <http://www.mppr.mp.br/modules/noticias/article.php?storyid=5238> Acesso em 28/03/2016. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |