O parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal brasileira de 1988 diz que “todo poder emana do povo”. A própria Assembleia Nacional Constituinte, no preâmbulo da Lei Maior, diz que estes promulgam a Constituição como “representantes do povo”. Para mais, o artigo 3º, IV estabelece que é objetivo fundamental da República promover o “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Por fim, o artigo 4º, II elege como princípio “regente” da República a “prevalência dos direitos humanos”. Note-se o interessante termo usado: prevalência. Uma definição comum da palavra “prevalência” nos dicionários de língua portuguesa é: s.f.
Ressaltados estes aspectos acerca de pontos basilares sobre os quais se estrutura o Estado Democrático de Direito brasileiro é correto afirmar que a Constituição Federal carrega a importante missão de reunir em seus enunciados os valores do povo que nela tem seus interesses representados. É também correta a afirmação de que alguns valores foram claramente priorizados, enaltecidos – prevalecem. Entre eles os valores relacionados aos direitos humanos, “bem de todos”. Destaque-se: TODOS. Com isso posto, observe o quadro a seguir. As proposições da coluna “Senso Comum” foram tiradas de comentários escritos nas redes sociais, blogs, sites de artigos que noticiavam fatos relacionados ao direito penal, ou foram extraídas de conversas que travei pessoalmente acerca dos mesmos temas.
Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados. Maioridade versus responsabilização penal, suposta impunidade do sistema penal brasileiro, causas da reincidência e a alegação de função ressocializadora do cárcere seriam alguns dos assuntos adicionais que colocariam as duas colunas em choque novamente. Note que o choque não se encontra apenas em face do texto da Constituição, mas também em face de toda a orientação paradigmática que ela projeta, em conformidade com o mencionado no primeiro parágrafo deste escrito. A questão que pretendo levantar é: por quê? Qual a razão de estarmos diante deste triste cenário onde o que a Constituição Federal diz se distancia enormemente do pensamento de tantos a quem ela afirma representar? Uma possível resposta que será ouvida é de que “na prática a teoria é outra”. Que os direitos assegurados na Constituição são muito lindos no papel, mas que a realidade exige outra abordagem. Rejeitamos de pronto esse argumento, por vários motivos. Um deles é trazido à atenção pelo Prof. Aury Lopes Junior (entre outros): a dicotomia apresentada é falaciosa. Não há prática sem prévia teoria. A questão real se estabelece sobre a seleção da teoria que dará vazão à prática a ser seguida. Em questões penais (na realidade em questões de direito como um todo) a teoria fundamentadora já foi selecionada – obrigatoriamente tem de ser aquela que obedeça não só o texto (obviamente também este), como também a lógica e estrutura da Constituição Federal de 1988. Ela foi promulgada com este objetivo. Serve de referencial para TODA a prática jurídica. Outra alegação comum para justificar o abismo apresentado é dizer que as garantias constitucionais precisam ser equacionadas entre os dois lados da questão. O “bandido” não respeitou garantias, limites, liberdades da vítima, então não se deve elevar as suas garantias de modo a “desequilibrar” a balança. A visão aqui é míope. A balança vem desequilibrada de antes. A enorme degradação social a que a maior parte, quase totalidade, da população carcerária foi submetida em sua vida antes de ser selecionada pelo sistema penal representa um desiquilíbrio muito mais profundo, que precisa entrar na suposta “equação” aristotélica de justiça aqui pretendida. A impossibilidade de satisfazer desejos naturais, constitucionalmente delineados como direitos inclusive(direito a moradia, a saúde, a um trabalho digno, ao livre desenvolvimento da personalidade) é o verdadeiro cerne em torno do qual grande parte dos delitos que geram a pena privativa de liberdade afloram. O fato é que toda tentativa de explicação etiológica do crime, como a elaborada pela Criminologia fenomenológica e positivista, com o intuito de explicar e eliminar as “causas” do crime, acaba resultando numa justificação (legitimação) para seleção punitiva dos delitos que afetam de modo direto o modo de vida das classes econômica e politicamente mais fortes. Lemos na obra Criminologia Radical, do Prof. Juarez Cirino dos Santos (pp. 25 e 28):
Um número mais extenso de linhas seria necessário para desenvolver uma descrição completa do quadro desanuviador que a Criminologia Crítica (radical) cria neste aspecto. O trecho acima mencionado é apenas uma pequena amostra deste verdadeiro “retirar de véu” praticado por ela, mas é suficiente para demonstrar que a visão de que o delito é meramente violação dos direitos de um indivíduo por outro, que delinque, quebrando o pacto social e a segurança coletiva é, no mínimo, grosseiramente imprecisa. Tentar equilibrar, utilizando-se para isso o direito penal,as relações (desigualdades) sociais em que se desenvolve o delito é como arrancar um braço de alguém que acaba de ter o outro decepado por acidente, acreditando que com isso se diminuirá o efeito trágico do ocorrido. A justificativa apontada não prospera ainda por outro motivo: o processo penal não coloca frente a frente o agente do delito e a vítima do mesmo para uma espécie de composição. Os bens jurídicos tutelados nem permitem, nem se adequam a esta visão “civilista” do direito. O agente é colocado frente a frente com o Estado, dotado de poder infinitamente maior do que o acusado. É por isso que as garantias dadas a ele pelo constituinte precisam tanto mais ser respeitadas. Ainda na voz do Prof. Juarez Cirino dos Santos, desta vez em Direito Penal – Parte Geral (p. 655):
Com respeito a estas duas possíveis justificativas ao distanciamento observado entre o texto da Constituição Federal e os conceitos que se enraizaram no senso comum acredito que os argumentos apresentados sejam suficientes para demonstrar que não justificam e nem contribuem para sanar esta chaga. A questão principal continua intacta (pretendo futuramente apresentar uma tese que pode explicar, não justificar, o distanciamento observado) e precisa ser objeto de nossa preocupação crítica, não meramente discursiva. Esta preocupação deve servir de base para a descoberta de novas propostas que possam renovar a relação, de conhecimento e reconhecimento, da população em geral com a Constituição. Que o caminho a ser percorrido seja no sentido de permitir que a cada passo nos aproximemos do ideal em que a Constituição Federal figure como a regra, não a exceção. O manual, não a fábula. O porto seguro, não o arco-íris. Direitos de TODOS, não de poucos. “A consulta que fazemos ao senso comum nada nos informa, portanto, a respeito do mundo, deixa ‘as coisas como estão’ e, a nós, no grau zero da filosofia” - Bento Prado Jr em “Por que rir da filosofia? “ Paulo Incott Acadêmico de Direito - Faculdades OPET Bacharel em Contabilidade pela Universidade Federal do Paraná Bibliografia: LOPESJr, Aury. Direito processual penal – 10ª ed. – São Paulo : Saraiva, 2013. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal : parte geral. 6ª ed. ampl. e atual. – Curitiba : ICPC Cursos e Edições, 2014. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Curitiba : ICPC : Jumen Juris, 2016. ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de direito penal brasileiro : parte geral. 11ª ed. rev. e atual. – São Paulo : Editora revista dos Tribunais, 2015. Comments are closed.
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