Artigo do colunista Paulo Incott sobre o contraditório como direito de influência efetiva no processo penal, vale a leitura! "A afirmação de que o contraditório se resume a uma noção de bilateralidade, de cumprimento de um dever jurisdicional de notificação e informação, aliada ao fornecimento de oportunidade de se manifestar nos autos do processo, confere ao contraditório uma feição atrofiada, demasiadamente estática e formalista". Por Paulo Incott A concepção segundo a qual a regra do contraditório funciona como elemento fundamental de um processo penal genuinamente norteado pelo princípio acusatório parece de fácil assimilação. Afinal, soa razoável e coerente que apenas um embate aberto, guiado por regras processuais claras, contrapondo a pretensão acusatória a resistências efetivamente levadas em conta por um magistrado ou por um órgão colegiado, a quem se ofereceu a real instrumentalidade para operar de modo imparcial, possa emitir uma decisão capaz de gerar acolhimento racional.
Quando se volta atenção, porém, para apreciação do conceito de contraditório em si, conforme tratado em diversos manuais de processo ou mesmo de direito constitucional, percebe-se um desconfortante simplismo. A afirmação de que o contraditório se resume a uma noção de bilateralidade, de cumprimento de um dever jurisdicional de notificação e informação, aliada ao fornecimento de oportunidade de se manifestar nos autos do processo, confere ao contraditório uma feição atrofiada, demasiadamente estática e formalista. O ponto máximo em que se aventura alguma doutrina é afirmar o princípio da paridade de armas como complemento dessa noção de oportunidade de manifestação. Naturalmente é preciso fazer justiça à parcela da doutrina que não se restringe a essa versão atrofiada de contraditório. Merece menção a doutrina de Gustavo Badaró, que na esteira do conceito de contraditório “pleno e efetivo” leciona que essa forma de se conceber o contraditório “traz como consequência a necessidade de reação que deve ser estimulada, não mais se satisfazendo com a mera possibilidade”. (BADARÓ, 2018, p. 59). O autor afirma, nessa linha de raciocínio, que no processo penal tal compreensão sobre o contraditório deve ter como desdobramento a exigência de que o magistrado, antes de se manifestar sobre “qualquer questão que apresente relevância decisória, seja ela processual ou de mérito, de fato ou de direito, prejudicial ou preliminar”, conceda real oportunidade às partes para que influenciem o teor de tal manifestação (idem, p. 60). Permite-se com isso uma espécie de ressignificação do conceito de contraditório, para que se avance daquela noção formalista para uma concepção substancial, entendendo a regra do contraditório como direito de influência. Mesmo dentro da doutrina processual civil encontra-se desenvolvida essa linha de pensamento, como se observa no magistério de Fredie DIDIER JR (2008, p. 45) quando afirma que: “Não adianta permitir que a parte, simplesmente, participe do processo; que ela seja ouvida. Apenas isso não é o suficiente para que se efetive o principio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado. Se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a decisão do magistrado – e isso é poder de influência, poder de interferir na decisão do magistrado, interferir com argumentos, interferir com idéias, com fatos novos, com argumentos jurídicos novos; se ela não puder fazer isso, a garantia do contraditório estará ferida”. Para além de questões conceituais ou meramente teóricas, essa acepção do contraditório como direito de influência, já há bastante tempo sedimentada no direito processual em outros países, mas aqui ainda não igualmente solidificada, permite uma série de conclusões importantes sobre questões sensíveis para o processo penal brasileiro contemporâneo. Para ficar apenas com dois exemplos, um já bastante discutido na jurisprudência nacional e outro mais recente, ainda mantido sob certa indefinição: primeiro, a possibilidade de rejeição tardia da denúncia após oferecimento da resposta a acusação, como forma de mitigar a desobediência a regra do contraditório tornada estruturante com a alteração legislativa que permitiu, no rito comum ordinário (e daí se espraiando para outros ritos), o recebimento da denúncia sem prévia manifestação da defesa. Nesse sentido, ainda que sem uma construção argumentativa efetivamente calcada na visão aqui defendida sobre o conceito de contraditório, o STJ decidiu, ao julgar o HC 294.518/TO, reverberando o voto da Min. Laurita Vaz no Resp 1.218.030/PR, que “o recebimento da denúncia não impede que, após o oferecimento da resposta do acusado (arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal), o Juízo reconsidere a decisão prolatada e, se for o caso, impeça o prosseguimento da ação penal”. Um segundo exemplo, mais recente e gerador de maiores discussões em sentido contrário inclusive, diz respeito a decisão da 2ª turma do STF no HC 157.627, em que se estabeleceu o direito do corréu delatado de oferecer alegações finais por último (após o corréu delator). Embora a maioria dos votos, quer na tese vencedora, quer na tese vencida, mencione o contraditório em seus argumentos, pouco se aprofundaram as manifestações acerca da natureza jurídica e do conceito substancial desta regra constitucional estruturante do devido processo legal. Exceção seja feita ao voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que relembrou digressão do Min. Cezar Peluzo no MS-25.627/MC, onde este afirmou que “o princípio do contraditório implica possibilidade de a uma ação real, a produção de prova, por exemplo, corresponder reação real, isto é, produção de outra prova tendente a infirmar a prova anterior”. Luis Greco e Alaor Leite (2019), ao cuidarem da questão do status processual do corréu delator, chegam a conclusão de que ao corréu delatado deve ser dado o direito de manifestar-se após a versão definitiva do corréu delator, assim argumentando em virtude do fato de que “nunca se poderá excluir a hipótese de que o confronto com a versão definitiva do corréu delator possibilite ao delatado chance de influir na decisão sobre a formação da sua culpa...” (grifos do original). Esse direito a não ser surpreendido e a falar por último (influir na decisão) é colhido pelos autores a partir de uma série diversificada de argumentos, calcados na própria lei processual penal, na jurisprudência do STF, nas ideias estruturantes do processo penal e na vocação específica da colaboração premiada. Dentre esses elementos, apontam especificamente Greco e Leite para ampla defesa (tecnicamente diferenciada pela doutrina do contraditório, mas topograficamente conectada ao mesmo em nossa constituição e guardando com este uma relação de recíproca necessidade, como continente e conteúdo), percebendo que a noção de “ampla” defesa demanda uma interpretação que confira a seu significado força capaz de “equilibrar a vacilante balança processual”, resultando na conclusão de que “se a manifestação do delator está vocacionada a interferir na esfera jurídica do delatado, e se essa manifestação encontra seu ápice nos memoriais finais, em que se alegam questões de fato e de direito... parece integrar o conceito de ampla defesa o direito do delatado à manifestação derradeira...”. (grifos do original) Dessa forma, concluindo essa breve manifestação acerca do conceito de contraditório, tem-se que este não pode ser concebido apenas em seu caráter formal, procedimentalista, visto como mero dever de informação e oportunidade de manifestação regularmente concedida, mas precisa ser compreendido também em sua acepção mais desenvolvida, configurada para melhor servir ao devido processo penal constitucional, tendo como parte de seu conteúdo semântico a noção de contraditório pleno, substancial, “pleno e efetivo”, visualizado em termos práticos na oportunidade de influenciar as decisões jurisdicionais de modo significativo, equilibrando a balança processual e moldando todo o desenvolvimento dos atos processuais segundo o princípio acusatório, afim de que qualquer sentença ou acórdão de natureza penal seja verdadeiramente o resultado de um procedimento em contraditório, um embate entre uma tese acusatória e todas as possíveis resistências a ela oponíveis. Paulo Incott Mestre em Direito Especialista em Direito e Processo Penal Professor de Direito e Processo Penal do Centro Universitário Santa Cruz de Curitiba/PR. Referências: BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2008 GRECO, Luis; LEITE, Alaor. O status processual do corréu delator. In: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/o-status-processual-do-correu-delator-30092019.
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