A competição está acirrada, já foram três as tentativas objetivando apagar a tocha olímpica! O quadro geral está assim: três tentativas, nenhuma medalha, três prisões! Primeiro caso - um cidadão utilizando-se de um balde, tentou jogar água na tocha olímpica que passava na cidade de Maracaju em Mato Grosso do Sul. [1] O homem foi preso em flagrante, e autuado como incurso no crime de dano ao patrimônio qualificado na forma tentada. Segundo caso - em Maringá, Estado do Paraná, "uma mulher se aproximou do condutor da tocha e tentou apagar a chama com um cartaz, onde estava escrito "Fora, Temer". Ela foi detida pela Guarda Municipal, encaminhada para a delegacia de Polícia Civil e liberada após pagar fiança correspondente a um salário mínimo. Ela foi autuada por tentativa de dano contra o patrimônio público e desacato a autoridade". [2] Terceiro caso - Quando a tocha passava por Cascavel, Paraná, "já no início do percurso um homem tentou apagar a tocha olímpica usando um extintor. Ele acabou detido pela polícia e foi levado à 15ª Subdivisão Policial". [3] Grandes eventos trazem grandes absurdos penais. Lembremos da Lei Geral da Copa que criminalizou temporariamente condutas bizarras para proteger o ganho publicitário de uma entidade específica, a FIFA! Mas, voltemos ao crime do momento: apagar a tocha olímpica! Três pessoas já foram presas em flagrante! Agora, inúmeros são os questionamentos: Tentar apagar a tocha olímpica é crime? Qual o bem jurídico tutelado? Existiu potencialidade de dano (água e cartaz)? Fogo é patrimônio? A intuição nos diz que não há crime, mas já que estão prendendo por aí, vamos à análise da conduta (apagar a tocha) e sua potencial adequação típica. O material utilizado na estrutura da tocha é formado por alumínio reciclado [2]. Desta forma, seria possível que a água arremessada ou um cartaz de papel pudessem causar algum dano ao alumínio? Obviamente que não. Sendo assim, caso a tutela penal recaia sobre o objeto de alumínio que compõe a tocha, a conduta praticada se revela crime impossível, pois, os meios empregados eram ineficazes a provocar o resultado pretendido. Explicando em outras palavras: o ato de jogar água em objeto de alumínio, ou esfregá-lo com um cartaz (pasmem!), não o coloca sequer em risco, não há potencialidade de dano, tratando-se, portanto, de conduta atípica, inexistindo tentativa pela inidoneidade absoluta do meio. E quanto ao "bem jurídico" fogo? E se a proteção recaísse sobre o fogo? Adentrar à discussão sobre a tutela penal do fogo é algo de todo cômico, talvez mais do que tentar apagar a tocha, mas toda reflexão é válida para tentarmos entender os absurdos penais contemporâneos. Alguns apontamentos são necessários. Primeiro, é preciso analisar o conceito de bem jurídico, pautado pelo princípio da intervenção mínima do Estado (análise superficial apenas para construirmos o argumento). Pode-se dizer que as condutas protegidas pelo Estado derivam da necessidade de proteção aos bens jurídicos. Bem jurídico (apesar de vasta divergência doutrinária), em seu sentido amplo, é tudo aquilo que se revela indispensável ao exercício de uma vida digna em sociedade. Neste ponto, destaca-se a importância da intervenção mínima estatal na esfera penal, pois nem todo bem jurídico deve ser tutelado penalmente pelo Estado, mas sim aqueles realmente relevantes para viabilizar o convívio em sociedade. Em síntese, o Direito Penal não deve se ocupar de irrelevâncias. O fogo da tocha olímpica não parece se enquadrar nos padrões de relevância! Segundo, outro conhecimento prévio necessário, diz respeito ao significado simbólico do fogo da tocha olímpica. Para isso, se faz necessária a rememoração da antiga lenda grega, de acordo com a qual um semideus chamado Prometeu roubou o fogo de Zeus e o entregou aos mortais. Tal fogo, foi reintroduzido nos jogos olímpicos da antiguidade, portanto, com um significado divino. Na era moderna, a chama olímpica serve para estabelecer laços entre os jogos olímpicos da antiguidade e os jogos contemporâneos, estabelecendo-se uma conexão entre o país sede (Grécia) e as demais sub-sedes olímpicas. Ainda, é preciso pontuar que com a tocha olímpica (objeto de alumínio com o “fogo da Grécia”), viajam lamparinas ou as chamadas lanternas, “também contendo o fogo da Grécia”, pois a tocha olímpica pode apagar, o que na prática já ocorreu diversas vezes. Ultrapassados tais apontamentos, percebe-se que o fogo da tocha olímpica é algo dotado de valor simbólico. Contudo, voltando ao caso, é preciso retomar o questionamento central: o ato de jogar água na tocha olímpica (ou usar um cartaz), tentando apagar o seu fogo, configura dano ao patrimônio público? Nos parece evidente que não, pois, ainda que se conseguisse apagar a tocha, esta seria facilmente (re)acesa com as lamparinas ou lanternas, sem qualquer dano real, pois o “fogo grego” continuaria na tocha olímpica. Ademais, a tocha já se apagou várias vezes, o que é até esperado, bem revelando ausência de lesividade da conduta. Outra questão importante se relaciona ao fato de que a tocha olímpica é preparada para enfrentar chuva, vento e as mais diversas condições climáticas. A tocha já foi conduzida até por mergulhadores! Desta forma, simplesmente arremessar água na tocha tornaria o dano impossível! A impressão que fica é que a repressão da conduta é meramente moral! Entretanto, a simples imoralidade da conduta não pode, por si, ser tida como crime, a exemplo do extinto crime de adultério. Fica a questão: Deveria movimentar-se o braço mais forte do Estado, que é o Direito Penal, para reprimir o ato de alguém que tentou apagar "um" fogo? Vai que a moda pega! Nos próximos festejos de São João teremos fogueiras cercadas por escolta policial para acabar com a ação de "vândalos"! E o que acontecerá com os bombeiros, contumazes "danificadores" do fogo? Desculpem o tom jocoso, mas a grande piada está, em verdade, na prisão de quem tenta apagar a tocha olímpica! Por derradeiro, o fogo é bem da humanidade, não tendo, portanto, um “dono” por assim dizer (a não ser que consideremos a antiga lenda grega, de acordo com a qual seu dono seria Zeus). Se o que se está querendo proteger é o significado que a tocha olímpica representa, o absurdo é ainda maior, pois a repressão se afasta significativamente do tipo que prevê o dano ao patrimônio público, já que o Estado não é detentor do patrimônio "significado da tocha olímpica”. Destaca-se inclusive que, caso o Estado queira tutelar o significado que a tocha olímpica representa, não pode enquadra-lo como dano ao patrimônio público, utilizando-se de construção linguística ilusória, mas sim, teria que criar um novo tipo penal (insanidade que iria na contramão do princípio da ultima ratio ou intervenção mínima do Estado). Além do mais, seria cômico (para não dizer trágico) um tipo penal com a redação: "Atentar contra o fogo da tocha olímpica". Mas, como dizem, na atual situação de anseio por punição e com mais de 1.600 tipos penais, é melhor não dar ideias. Basta lembrar da absurda redação da Lei Geral da Copa para ficarmos apreensivos. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminal Pós-graduando em Processo Penal e Direito Penal na ABDCONST. Pós-graduando em Direito Contemporâneo no Curso Jurídico. André Pontarolli Advogado Criminal Referências: [1]http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2016/06/homem-e-preso-ao-tentar-apagar-tocha-olimpica-com-balde-de-agua.html [2]https://www.google.com.br/amp/m.esportes.estadao.com.br/noticias/jogos-olimpicos,mais-duas-pessoas-sao-presas-por-tentar-apagar-a-tocha-olimpica-no-parana,10000060150.amp# [3]http://cgn.uol.com.br/m/noticia/182708/homem-tenta-apagar-tocha-e-e-preso [4]https://esportes.terra.com.br/lance/exclusivo-tocha-dos-jogos-rio-2016-sera-toda-de-material-reciclado,b265d9151f42293cfcd8dfab3ec2c6d4dtmyRCRD.html
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